“O racismo é uma trava à nossa República”, diz a antropóloga brasileira Lilia Moritz Schwarcz

Anthropologist Lilia Moritz Schwarcz. Photo: Leonor Calasans/University of São Paulo, used with permission.

No Brasil, cerca de 72 por cento das vítimas de homicídio são pessoas negras, de acordo com estatísticas de 2018. Em 2016, o total de mortes violentas chegou a 61.283. Esse número espantoso é o equivalente a média anual de mortes na guerra da Síria, como aponta a antropologista Lilia Moritz Schwarcz em seus esforços para chamar a atenção para o problema do racismo em seu país.

Professora da Universidade de São Paulo e participante do programa Global Scholars na Universidade de Princeton, Moritz Schwarcz é uma grande historiadora e antropologista, reconhecida por trazer à tona o passado escravocrata do Brasil.

Sua extensa obra inclui uma “biografia” de 808 páginas do Brasil – que abrange cerca de 500 anos de história – a qual ela co-escreveu com Heloisa Starling, e um canal popular no Youtube, onde mergulha nas questões contemporâneas mais urgentes do país. O seu novo livro, sobre as raízes históricas do autoritarismo no Brasil, chega às livrarias em maio deste ano.

Enquanto o autor austríaco Stefan Zweig se encantou pela “democracia racial” brasileira – como mostra em seu ensaio “Brasil: Terra do futuro”, escrito durante sua viagem pelo nordeste do país em 1936, Schwarcz mostra como as feridas deixadas por cerca de 400 anos de escravidão continuam abertas até hoje.

Um lembrete do problema racial no Brasil ocorreu recentemente, no dia 14 de fevereiro, quando um segurança matou um jovem negro desarmado em um supermercado no Rio de Janeiro. O incidente foi filmado com um telefone celular e compartilhado nas redes sociais.

Para entender como o racismo foi no Brasil, e como continua enraizado na sociedade, o Global Voices entrevistou Moritz Schwarcz por telefone. A conversa abaixo foi editada para maior brevidade e clareza:

Global Voices: Assim que as notícias sobre um jovem negro assassinado por um segurança em um supermercado se espalharam, parte do público reclamou que o caso não provocou a mesma reação de quando um cachorro foi espancado até a morte, também em um supermercado, em dezembro. Como podemos explicar isso?

Moritz Schwarcz: Está gerando, eu vi muita reação. Eu acho que o que explica a pouca reação por parte de alguns setores é isso que chamamos de racismo estrutural. A gente chama de racismo estrutural porque ele pode ser percebido na área da saúde, na área da educação, na área da moradia, do transporte, do lazer, nos índices de mortalidade. Um racismo que é de fato estrutural, ele é tão enraizado, que ele passa a ser naturalizado pela sociedade, no sentido de que a sociedade não se comove mais. Dito isso, acho que estamos mudando. Acho que não são mais tão invisíveis como eram.

GV: Você quer dizer naturalizar no sentido de que a sociedade brasileira cria narrativas que justifica, a violência contra as vítimas?

Moritz Schwarcz: Nós sabemos que temos índices de violência contra jovens negros nas periferias, como é o caso que vimos agora, de genocídio. Eu faço uma comparação em um livro que vou publicar em maio. Os índices de morte no Brasil são índices da guerra na Síria. O que é a invisibilidade? A população brasileira já pensa: olha, essa pessoa, com essa idade, com esse cabelo, com essa cor, já explica tudo. Não explica! É dessa maneira que a naturalização age. Você acha que é tão natural, que não é preciso nenhuma comoção mais forte. Esse é o lado perverso desse racismo estrutural.

GV: Dias após a morte de Pedro Henrique (o jovem negro), nós temos visto vários brasileiros negros compartilhando seus testemunhos sobre como é viver constantemente sob suspeita. Nossas forças de segurança sempre tiveram esse tipo de atitude com pessoas negras?

Moritz Schwarcz: O Brasil foi o último país a abolir a escravidão nas Américas, depois de Estados Unidos, Cuba, e Porto Rico. Se pensarmos que recebemos quase metade dos africanos e africanas que saíram do seu continente de origem, se pensarmos que a escravidão estava tão disseminada que não havia território no Brasil onde não tivesse escravos, a gente vai pensando que um sistema que pressupõe a posse de uma pessoa por outra pessoa já produz uma sociedade muito violenta. Violenta por parte dos senhores, que compunham uma minoria que tinha de oprimir e controlar uma maioria, e também por parte dos escravizados e escravizadas. Desde a época da escravidão, o Estado criou aparatos de repressão às manifestações dessas populações. Nós sabemos que a polícia dá mais flagrantes em negros, quer dizer, as batidas se dão sobretudo com negros. Não vemos negros circularem em alguns espaços de sociabilidade brancos. Eles são abordados em shoppings. O fato de não repararmos que existem espaços de sociabilidade distintos, são facetas disso que chamamos de racismo estrutural.

GV: O que há de diferente neste racismo à brasileira?

Moritz Schwarcz: O fato de o Brasil ter convivido por tantos anos com um sistema que foi abolido com uma lei curta e conservadora, que não previu a inclusão [dos negros libertados]. Isso criou uma espécie de racismo à brasileira que, todos os racismos são ruins, mas o nosso acomoda a ideia de inclusão cultural com absoluta exclusão social. Isso também fez com que os brasileiros dissessem, durante muito tempo, que aqui não havia preconceito, que vivíamos em uma espécie de democracia racial, quando acontecia o oposto. Esse tipo de preconceito retroativo produz mais dificuldades no que se refere à construção de movimentos sociais, de inclusão, de sociedade, porque se supõe que não existe o preconceito.

GV: Nós estamos entrando em um novo contexto, com um novo governo que está propondo um pacote de leis anti-crime que, de acordo com especialistas, permitirá que as autoridades tratem algumas populações de forma ainda mais desigual. Por outro lado, o governo endossa a retórica do “somos todos iguais”

Moritz Schwarcz: Essa ideia da igualdade universal só existe se partisse do mesmo patamar. O que não existe. É preciso que existam políticas de ação afirmativa, que não são para sempre, mas a ideia é que é preciso desigualar para depois igualar. Como é que em um país que é campeão em desigualdade social, em concentração de renda, de terra, como você transporta um conceito se a situação é absolutamente distinta? O Brasil entrou tarde na discussão dos direitos civis, no final dos anos 1970, começo dos anos 1980, graças ao ativismo negro, indígena, das mulheres, das mulheres negras, que mostram que é balela legislar igualdade em um país tão desigual quanto o Brasil.

GV: Como você essas questões diante deste pacote de leis anti-crime? 

Moritz Schwarcz: O país é muito violento, não só contra negros, mas que pratica feminicídio, campeão em estupros. É um país onde a violência se apresenta de uma forma disseminada. Acho que esse foi um governo eleito em cima do clamor correto dos brasileiros por mais segurança, por menos violência. Se de um lado é preciso isso, é preciso tomar muito cuidado com o tipo de medida que vai se estabelecer. Eu não sou especialista nessa área, mas a ideia da livre defesa, em um país como o nosso, num país em que um dos grandes medos da população é a polícia, segundo pesquisa recente, que tem números da população encarcerada imensos, não se pode legislar sobre a violência sem pensar com que país você está lidando.

GV: Existe alguma forma de mudarmos como a sociedade brasileira percebe as vidas de pessoas negras?

Moritz Schwarcz: Claro que tem que ser respeitado o lugar de fala, mas acho que a sociedade brasileira também precisa de grupos brancos contra o racismo, porque é uma questão da vida brasileira. Transformar esses episódios em episódios politicamente relevantes é um papel que cabe a todos nós. Evitar que eles caiam no véu do obscurecimento, de uma sociedade que costuma baixar o véu sob essas questões. Acho que esse é um papel de todos nós.

GV: Estamos conseguindo fazer isso diante da morte de Pedro Henrique?

Moritz Schwarcz: Eu penso que sim, penso que estamos conseguindo finalmente dar visibilidade a esse problema. Penso que não existe sociedade democrática com racismo. O racismo é uma trava à nossa República, uma trava forte. Quanto mais a população brasileira, de forma geral, reagir a esses episódios de violência, quanto mais politizar esses crimes, melhor para todos nós.

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