O que revela o debate sobre a legalização do aborto na Argentina?

Foto: Emergentes (CC BY-NC 2.0)

No dia 06 de março, em uma histórica Semana da Mulher, foi apresentado ao Senado argentino o Projeto de Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez [Interrupción Voluntaria del Emparazo – IVE], encabeçado pela Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal e que conta com a assinatura de 71 deputados de distintos partidos políticos.

Após décadas de adiamento e seis apresentações fracassadas desde 2005, este ano o governo argentino deu sinal verde para debater o projeto a partir do dia 20 de março. Dada a grande diversidade de opiniões, inclusive dentro de um mesmo grupo partidário, o governo concedeu liberdade absoluta de consciência e ação aos legisladores para que votem de acordo com seus princípios e convicções.

No dia 1º de março, em seu discurso de abertura do período de seções ordinárias do Congresso, o presidente argentino Mauricio Macri afirmou:

Hace 35 años que se viene postergando un debate muy sensible que como sociedad nos debemos: el aborto. Como más de una vez dije, estoy a favor de la vida. Pero también estoy a favor de los debates maduros y responsables que como argentinos tenemos que darnos. Por eso, vemos con agrado que el Congreso incluya este tema en su agenda de este año. Espero que se escuchen todas las voces y se tomen en cuenta todas las posturas.

Faz 35 anos que se vem adiando um debate muito sensível, que como sociedade devemos fazer: o aborto. Como disse mais de uma vez, sou a favor da vida. No entanto, também sou a favor dos debates maduros e responsáveis que como argentinos devemos realizar. Por isso, vemos com bons olhos que o Congresso inclua este tema em sua agenda deste ano. Espero que todas as vozes sejam escutadas e que se leve em consideração todas as opiniões.

Além disso, Macri introduziu outros temas de interesse para a agenda da igualdade de gênero: a extensão da licença paternidade, que hoje é de apenas dois dias, e a promessa de diminuir a diferença salarial entre homens e mulheres, que já conta com um marco legal, mas que continua muito distante da prática real.

Chama a atenção o fato de que a iniciativa de realizar esse debate na Assembleia Legislativa seja de um governo de reconhecida tendência conservadora e de direita, após ter sido adiado e evitado durante os dois períodos de mandato da ex-presidenta Cristina Fernández de Kirchner, de orientação política oposta. Tal adiamento esteve ligado, na verdade, à opinião pessoal da ex-presidenta e sua própria experiência pessoal.

O aborto é uma polêmica transversal na Argentina. Não distingue militâncias nem afinidades políticas. Geralmente, é analisado em função das experiências e crenças pessoais, morais e religiosas de cada pessoa. As diversas opiniões a favor e contra a descriminalização encontradas dentro do partido do governo também estão presentes dentro dos partidos de oposição.

O debate na Internet: um espelho da divisão dentro da sociedade argentina

A possibilidade de descriminalização do aborto acentuou as divisões da opinião pública argentina, dividida entre sua trajetória progressista e sua herança conservadora e religiosa.

Como era de se esperar, e dias antes da Greve das Mulheres pelo Dia Internacional da Mulher, ocorrido no dia 08 de março, comentários e memes que revelaram as diversas opiniões (algumas bastante extremas) explodiram nas redes sociais.

Não há dúvida de que se trata de um tema que desperta tanto debates profundos e de consciência quanto reações emocionais muito intensas, visto o número de insultos, agressões, desqualificações e piadas. Algumas das hashtags mais usadas são #abortolegal, #AbortoLegalYA, #NOalAborto e #Sialavida:

Nossos corpos. Nossos territórios. #AbortoLegalYapic.twitter.com/WdX7Kk9cxf

— #AbortoLegalYa! ♀ (@PorAbortoLegal) 28 de fevereiro de 2018

Se oferecem #AbortoLegal gratuito para quem transa sem se cuidar, quero que também existam Bypass gástrico e lipoaspiração grátis, para a gente poder comer sem se cuidar e ficar magro de novo. Na verdade morre mais gente por obesidade que por aborto. Ou não? #BuenViernes

— Ave Nocturna (@MalbecYQueso) 2 de março de 2018

Desumanizar o feto pode tranquilizar sua consciência, mas não mudar a realidade. É uma vida como a sua! Deixe-o viver! #SiALaVida

— Ori Göttig (@oriana_gottig) 2 de março de 2018

A discussão não é ‘aborto sim’ ou ‘aborto não’, a discussão é aborto legal ou aborto clandestino. O resto são posições e decisões pessoais, todas respeitáveis, nenhuma discutível. #AbortoLegalYa

— ★ Re Gi Na ☮ (@ReginaGrisolia) 2 de março de 2018

Figuras políticas e do meio artístico também expressaram suas opiniões frente ao debate sobre a descriminalização durante os dias posteriores ao seu anúncio. A deputada federal Elisa Carrió, principal aliada do Cambiemos (partido do governo), deixou clara sua posição contra o aborto pedindo que “respeitem aos que creem em Deus”. A vice-presidenta do país, Gabriela Michetti, acompanha essa linha de pensamento, ainda que esteja de acordo com a necessidade de debater o tema.

O ministro da Ciência e Tecnologia, Lino Barañao, por sua vez, se pronunciou a favor da despenalização. O ministro da Cultura, Pablo Avelluto, também apoiou a despenalização, mas pediu para que o tema seja debatido ‘sem demonizar’ aqueles que pensam diferente. A atriz Mercedes Funes compartilhou uma carta emocionada, na qual manifestou sua opinião a favor do aborto legal e seguro:

Conozco varias mujeres que han abortado. Todas ellas cuando me lo contaron, me lo contaron hablando desde la huella que a cada una les dejó. No me lo contaron con liviandad, como una anécdota más, como si hubieran ido a hacer un trámite, o a sacarse una muela.

Conheço várias mulheres que abortaram. Todas elas quando me contaram sobre isto, me contaram sob o ponto de vista do impacto deixado em cada uma delas. Não me contaram com leveza, como uma história a mais, como se tivessem ido fazer um procedimento qualquer, ou tirar um dente.

Controvérsias e realidades

“Grito Global pelo aborto legal, seguro e gratuito”
Foto: Emergentes (CC BY-NC 2.0)

Além dos debates na internet e das opiniões pessoais, o projeto de lei não apenas mexe com os valores da sociedade argentina, mas também força a consideração de realidades distintas. De acordo com a divisão argentina da ONG Anistia Internacional, estima-se que 450 mil abortos clandestinos são feitos por ano, e segundo coletivos como Varones Antipatrarcales de Rosario Corriente La Colectiva, na plataforma de notícias Medium:

…las prácticas de abortos no solo existen en el tejido social con una cotidianeidad mayor a la que imaginamos, sino que se distribuyen [y son atravesadas] por vectores de racialización, sexo, género, clase, posiciones políticas, ideológicas, religiosas, éticas y fundamentalmente, por los intereses económicos de corporaciones médicas y farmacéuticas.

… as práticas de aborto não apenas existem no tecido social como um fato cotidiano maior do que imaginamos, como que também se distribuem [e são atravessadas] por vetores de racialização, sexo, gênero, classe, posições políticas, ideológicas, religiosas, éticas e, fundamentalmente, por interesses econômicos de corporações médicas e farmacêuticas.

A propósito da apresentação do projeto de lei no Senado, a Comissão pelo Direito ao Aborto Legal convocou um ato para o dia  06 de março, em frente ao Congresso Federal e nas principais cidades do país. A manifestação contou com a presença e o apoio de distintos grupos civis, feministas e de direitos humanos, alguns deles discutindo online ao vivo.

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