Grupos de ex-guerrilheiros timorenses questionam a legitimidade do Estado

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Nas últimas semanas, Timor-Leste tem vivido um clima de alguma apreensão social depois de a Polícia Nacional (PNTL) ter iniciado operações de busca e captura de membros de dois grupos liderados por ex-veteranos acusados de criar instabilidade política e de porem em causa as instituições do Estado.

O Estado timorense aprovou unanimemente, no passado dia 3 de Março, uma resolução que visa pôr fim às actividades destes grupos – o Konsello Revolusionariu Maubere (KRM) e o Conselho Popular Democrático da República Democrática de Timor-Leste (CPD-RDTL) – e incumbiu a PNTL de fazer cumprir a resolução.

Mauk Moruk e L7 escoltados pela PNTL depois de julgamento em Dília, 14 de Março de 2014. Foto de António Dasiparu partilhada no website sapo.tl com licença de reutilização

Mauk Moruk e L7 escoltados pela PNTL depois de julgamento em Díli, a 14 de Março de 2014. Foto de António Dasiparu partilhada no website sapo.tl com licença de reutilização

Mauk Moruk (nome de guerra de Paulino Gama), ex-guerrilheiro e primeiro comandante da brigadas vermelhas das FALINTIL (movimento armado da resistência à ocupação indonésia), é o líder do recém-criado KRM que regressou a Timor-Leste em Outubro de 2013 depois de um longo período a viver na Holanda. Em declarações aos meios de comunicação afirmou que voltou a Timor-Leste com o objectivo de fazer uma revolução para retirar a população da pobreza, pedindo a demissão do governo e a dissolução do parlamento e o restabelecimento da Constituição aprovada em 1975 (primeira declaração, unilateral, da independência).

No dia 14 de Março, os líderes do KRM Mauk Moruk e Labarik Maia, acompanhados por L7 (nome de guerra de Cornélio Gama, irmão de Mauk Moruk), negociaram a sua entrega à Polícia durante várias horas no quartel geral do movimento em Fatuhada. No fim das negociações, L7 declarou aos media que iria cooperar com o Estado para garantir a paz e o bem-estar da população, deixando o aviso que se ele pretendesse “Díli inteiro estaria a arder”.

Os dois primeiros foram presos preventivamente [tet], enquanto que L7 está sujeito a termo de identidade e residência. Por outro lado, António Ai-Tahan Matak, ex-veterano e líder da CPD-RDTL, entregou-se voluntariamente às autoridades, tendo o tribunal decretado igualmente termo de identidade e residência.

Dias antes, a operação policial em Lalulai, uma povoação no distrito de Baucau onde membros do KRM estavam a viver, resultou num tiroteio entre a polícia e os revolucionários e num polícia ferido por um cocktail molotov. A divulgação de um video publicado pelo jornal Tempo Semanal, que mostra cenas da actuação policial nesta povoação, provocou [tet] a consternação de parte do público timorense. O vídeo mostra cenas de casas incendiadas pela polícia, bem como de um polícia a disparar para o interior da casa de onde se vê sair, segundos depois, uma mulher com o filho ao colo.

A sucessão de acontecimentos que levou à operação policial começou em Novembro de 2013, quando membros do KRM foram vistos [en] a marchar com fardas e insígnias militares num campo de futebol em Laga, no distrito de Baucau, suscitando [tet] uma onda de preocupação entre a população e a classe política. Mauk Moruk desafiou então Xanana Gusmão, actual primeiro-ministro e ministro da defesa e segurança timorense, para um debate sobre a história da luta armada na qual os dois foram protagonistas de divergências sobre o comando da luta. O debate decorreu no dia 11 de Novembro de 2013 no Centro de Convenções de Dili, ao qual Mauk Moruk não compareceu. Xanana e outros antigos membros da resistência timorense discutiram [tet] os eventos e divisões durante a guerrilha nos anos 80, que a população pode assistir em directo na televisão pública (RTTL).

O CPD-RDTL, por outro lado, é uma organização constituída em 1999 por uma facção dissidente da FRETILIN. Ao longo dos anos esta organização tem sido acusada [en] de utilizar fardas militares e da ocupação ilegal de terras para cultivação comunal contra a vontade das populações locais. Ambas as organizações estão ligadas ao grupo Sagrada Família, um grupo de resistência clandestina de carácter animista criado nos anos 90 por L7. Cornélio Gama ou L7, conhecido ex-guerrilheiro, beneficia de uma base de apoio popular considerável, tendo sido eleito para deputado no mandato parlamentar anterior pelo seu partido UNDERTIM. Apesar de Mauk Moruk não ser uma figura popular no país, alguns analistas [en] vêem nesta relação familiar um factor potencial de angariação de uma base de apoio mais forte.

O historiador Matheos Messakh explica a origem do conflito entre Xanana Gusmão e Mauk Moruk num artigo no blog de Satutimor [id]. Em 1985, Mauk Moruk desceu das montanhas e rendeu-se [pdf] às forças indonésias depois de ter sido expulso [en] por Xanana Gusmão das FALINTIL por liderar um grupo que se opunha à liderança de Gusmão. Na sua análise considera ainda que as acções do KRM são uma tentativa de capitalizar o crescente descontentamento da população com a falta de desenvolvimento económico, especialmente entre os jovens:

Sangat mungkin strategi Mauk Moruk adalah untuk menargetkan para pemuda yang semakin kehilangan hak-haknya dan gampang dieksploitasi. Moruk mungkin ingin mengisi kekosongan yang diakibatkan oleh larangan terhadap kelompok bela diri dengan warisan klandestin dan keterlibatan dalam kekerasan tahun 2006.

É muito provável que a estratégia de Mauk Moruk seja cativar os jovens que se sentem cada vez mais marginalizados e que poderão ser facilmente explorados. Moruk está a tentar preencher o vazio deixado pela proibição dos grupos de artes marciais, que foram criados no tempo da resistência clandestina e que estiveram envolvidos na violência em 2006.

No entanto, os timorenses têm expressado [en] nas redes sociais uma falta de simpatia pelo carácter ilegal das acções do KRM e do CPD-RDTL, defendendo a via da democracia e o respeito pela Lei e instituições do Estado. Apesar disso, estes acontecimentos têm servido de pretexto para criticar o governo e a classe política em Díli pela corrupção existente e pelo desequilíbrio crescente entre as elites e o resto da população. Um membro do grupo “Emerging Leadership in Democracy” (Liderança Emergente em Democracia) do Facebook, Gani Uruwatu, questionou publicamente no dia 19 de Março:

Husu Parlamento sira atu bele hasai mos Rezulusaun ba Koruptor sira !!!! ema hatai Farda deit hasai ona Rezulusaun maibe ida nauk osan tokon ba tokon nee nusa laiha rezulusaun ???

Vamos requerer ao parlamento que passe uma resolução também contra os corruptores! Fazem resoluções prontamente por causa de fardas [ao estilo militar] mas para aqueles que roubam milhões e milhões não existe uma resolução???

A propósito deste mal-estar social, a conhecida antropóloga Elizabeth Traube fala de “unpaid wages” (contas por pagar, em inglês) no seu trabalho etnográfico sobre Timor-Leste para se referir às exigências da população civil e dos ex-veteranos do grupo étnico Mambai em relação ao Estado timorense. De acordo com Traube, nesta região do país, o povo relembra os seus líderes que a “nação foi comprada com o seu sangue” e por esse motivo existe a expectativa que o novo Estado timorense recompense o seu sacrifício.

O regresso de Mauk Moruk ao país passados quase 30 anos da sua rendição aos indonésios está, de acordo com algumas opiniões [en], relacionado com a tentativa de reconhecimento do seu papel histórico na resistência timorense e com a expectativa de que se traduza numa posição de poder no contexto político actual.

Os acontecimentos recentes demonstram ainda que as alianças constituídas no período da resistência continuam a pôr à prova a legitimidade do Estado moderno constituído a partir de 2002 e que a história que envolve os actores da geração da resistência continua a dominar o jogo político contemporâneo em Timor-Leste.

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