A nova lei contra o assédio nas ruas da França realmente beneficiará as mulheres?

Foto de Magnus Franklin postada no Flickr, sob licença CC BY-NC 2.0.

Em 1º de Agosto de 2018, a Assembleia Nacional Francesa aprovou por unanimidade um projeto de lei que apoia a luta contra o assédio sexual e a violência. Um elemento-chave da lei, proposta pela ministra da Igualdade de Gênero, Marlene Schiappa, é a criação de uma política contra o assédio sexual ou “ultraje sexista”, definido como:

Imposer à une personne tout propos ou comportements à connotation sexuelle ou sexiste qui soit porte atteinte à sa dignité en raison de son caractère dégradant ou humiliant, soit créé à son encontre une situation intimidante, hostile ou offensante (Art. 621-1.-I.)

 Impôr repetidamente observações ou ações que tenham conotação sexual e que afetem a dignidade de uma pessoa, seja por sua natureza degradante e humilhante, ou por criar um ambiente intimidador, hostil ou ofensivo para essa pessoa. [Artigo 621 (1) 1]

Os “ultrajes sexistas” agora são puníveis, com uma multa de quarta classe (entre 90 e 750 euros, ou entre 104 e 867 dólares americanos), podendo chegar a uma multa de quinta classe (de 3.000 euros, ou 3.476 dólares) nos casos em que houver ofensas mais graves ou repetidas. Isso difere do assédio sexual, cuja pena pode chegar a 2 anos de prisão e uma multa de 30.000 euros (34.756 dólares).

Nova lei aplaudida no exterior

No Reino Unido, a jornalista Libby Brooks celebrou a aprovação da lei:

A nova lei francesa que proíbe o assédio nas ruas define o padrão. É lamentável que os @PoliceChiefs tenham optado por não registrar o crime de ódio misógino em todo o Reino Unido no início deste mês, mas quem sabe seja a hora de Westminster agir agora? https://t.co/FYrrDsTgZh  – Libby Brooks (@libby_brooks) 31 de Julho de 2018

Manal Faheem Khan, uma jornalista paquistanesa e fundadora da plataforma feminista Laraka Larki, pediu que fosse implementada uma lei similar no Paquistão:

A França acabou de aprovar uma lei em que os assediadores deverão pagar multas imediatas de até 870 dólares! Por favor, podemos ter algo assim no Paquistão? Por que esse tipo de assédio não é considerado crime aqui?

El Desconcierto, um site chileno de conteúdo independente, tweetou:

Quando isso acontecerá no Chile? Depois que um vídeo de uma universitária sendo atacada tornou-se viral, a França agora tem uma lei contra o assédio nas ruas.

Na França, a lei do assédio é questionada

Ativistas franceses criticaram a lei, apontando para as inúmeras deficiências e problemas contidos nela.

No programa de rádio Vrai-Faux, a jornalista Geraldine Woessner discutiu a ineficácia de leis semelhantes, adotadas em outros países europeus como Portugal, onde não existe uma única condenação desde 2015. Ela aponta para a Finlândia, onde ocorreram 550 casos em um ano e apenas 31 multas foram impostas.

A polícia também tem dúvidas sobre a aplicabilidade da lei. Em entrevista ao Le Figaro, a policial e representante sindicalista Linda Kebbab questiona como “policiais já sobrecarregados” seriam capazes de pegar um “abuso sexista” em flagrante:

The idea that we will be able to patrol for this kind of offense is totally idealistic.

A ideia de que podemos patrulhar esse tipo de ofensa é totalmente idealista.

Na verdade, Madmoizelle.com enfatizou que os policiais são parte do problema, conforme revelado em Paye Ta Police, um site do Tumblr que acompanha testemunhos de assédio sexual:

Screenshot of an anonymous post on Paye Ta Police on Tumblr

“Não se aborreça com isso. – Quando vejo uma moça bonita, eu digo o mesmo.” Eu estava em Bruxelas, voltando de um festival com meu namorado e um amigo dele. Ao passar por um grupo de jovens, um deles disse algo pra mim, e meu namorado reagiu. Dois policiais chegaram, meu namorado explicou a situação, e um dos policiais soltou essa frase.

Muitas falhas

Em setembro de 2017, Anais Bourdet, fundadora do Paye Ta Shnek (uma página do Facebook que coleta testemunhos de assédio sexual), apontou diversas falhas do projeto de lei, incluindo o ônus da prova, o medo do confronto e a possível caracterização racial.

Quinze pesquisadores também se manifestaram contra a criminalização do assédio de rua em um artigo de opinião publicado no Libération, argumentando que uma lei específica para o assédio verbal desvia a atenção do desafio maior, o de julgar adequadamente crimes como estupro e agressão sexual.

Depois que a lei foi aprovada, a associação Stop Harcèlement de Rue [Pare o assédio nas ruas], criticou a oportunidade perdida de trabalhar em direção a uma política de prevenção, educação e treinamento, voltada a devolver o espaço público às mulheres.

Caracterização racial?

No Slate, a jornalista American Christina Cauterucci advertiu:

In France, as in the U.S., police forces have brutalized and killed black men with impunity, making communities of color wary of giving officers of the law more reasons to make arrests. In all likelihood, police officers and prosecutors will disproportionately enforce any street-harassment law against men of color, as they do with every other civil and criminal offense.

Na França, bem como nos Estados Unidos, as forças policiais brutalizaram e mataram homens negros com impunidade, fazendo com que a comunidade negra tivesse receio de dar aos oficiais da lei mais motivos para fazer prisões. Com toda a probabilidade, os cidadãos e promotores públicos aplicarão desproporcionalmente qualquer lei de assédio moral contra homens negros, assim como fazem com todos os outros crimes civis e penais.

Em outubro de 2017, a plataforma feminista muçulmana Lallab publicou um artigo intitulado “Oito razões para se opor à criminalização do assédio nas ruas,” incluindo o perigo da caracterização racial.

Apontaram que o assédio sexual nas ruas é frequentemente associado às minorias sociais de baixa renda, as quais têm sido “duramente criminalizadas, vigiadas e brutalizadas pela polícia”. Há temor que essa lei possa desencadear o envio de policiais para fazer cumprir a lei em “bairros operários, e reforçar a vigilância policial das populações que vivem lá”.

We refuse to let feminism be used to reinforce the French government’s tendencies toward racism and over-policing.

Nós nos recusamos a deixar o feminismo ser usado para reforçar as tendências do governo francês em relação ao racismo e ao excesso de policiamento.

Revolucionários Queer e Trans, e o coletivo Afrofeminista Mwasi expressaram sua oposição à lei, citando que a polícia frequentemente rejeita os depoimentos de mulheres sobre estupro e agressão sexual. O grupo questionou como a polícia, profundamente sexista, racista, homofóbica e transfóbica, “acabará sendo encarregada de penalizar o assédio nas ruas”.

Além do assédio, a lei decepciona

Outras medidas da lei – particularmente crimes sexuais contra menores e prazos de prescrição para denúncias de estupro – também sofreram oposição de grupos feministas.

O Groupe F (Grupo F) listou as principais omissões da lei:

Hoje a Assembleia Nacional adotou o projeto de lei contra as violências sexuais. Análise geral.  #PJLVSS pic.twitter.com/X9LPoLk1fX

— Le Groupe F (@LeGroupe_F) 1 de Agosto de 2018

Nota contra a violência sexual:

  • limite de idade para proteger as crianças vítimas de estupro;
  • Treinamento obrigatório para todos os profissionais (saúde, polícia e justiça);
  • Educação sobre não-violência desde cedo;
  • Medidas contra o assédio no local de trabalho;
  • Medidas contra a violência doméstica (as mais comuns);
  • Obrigar os médicos a reportar casos de violência contra crianças.

Hoje, a Assembleia Nacional aprovou uma lei contra violência sexual. Boletim. #PJLVSS

veredito final:

[T]he text of the law, accompanied by large amounts of communication, turns out to be empty.

O texto da lei, acompanhado por uma ampla quantidade de veículos de comunicação, acaba por ser vazio.

A “Fondation des Femmes” (A Fundação Feminista) ecoou o sentimento em um comunicado de imprensa, chamando a lei de um texto “decepcionante“.

Em 24 de novembro de 2018, véspera do Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher, ativistas preocupadas organizaram o  #NousToutes [todas nós mulheres] nas redes sociais, visando o crescimento do movimento feminista.

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