A recente proposta do governo tcheco para dificultar aplicações de obtenção de cidadania para pessoas de nacionalidade russa gerou grande controvérsia. No início de setembro de 2024, o partido liberal tcheco STAN (Prefeitos e Independentes propôs, durante uma coletiva de impressa, uma emenda à chamada lei Lex Ukraine 7 para impor condições mais restritas a cidadãos russos que procuram obter cidadania tcheca.
Essa proposta surge durante um momento político decisivo, já que a República Tcheca está se preparando para eleições parlamentares em 2025. O STAN é parte do governo liderado por uma coalisão que aparenta vender uma retórica populista para solidificar sua posição em face a uma queda nos índices de aprovação. Além disso, a presença de mais de 350.000 refugiados ucranianos no país aumentou a sensibilidade pública em relação aos problemas de migração, cidadania e segurança. Críticos argumentam que, embora o governo tcheco tenha expandido o suporte aos refugiados ucranianos de forma considerável, a emenda proposta revela um duplo padrão no que diz respeito ao tratamento de cidadãos russos.
O ministro do interior e presidente do STAN, Vít Rakušan, compartilhou nas redes sociais uma postagem que simbolizava a proposta com uma imagem de bonecas matrioska com o título: “Nós não queremos Matrioska na República Tcheca”. Essa afirmação foi comparada ao slogan populista feito anteriormente por um grupo islamofóbico: “Nós não queremos islã na República Tcheca”, que alcançou seu pico de popularidade há uma década.
Sob a nova emenda, cidadãos russos devem renunciar à sua cidadania para serem elegíveis para obtenção de cidadania tcheca. Martin Exner, vice-presidente do STAN, justificou tal medida como uma suposta necessidade para a segurança nacional, afirmando:
We cannot allow that at a time when Russia is taking hostile actions not only against Ukraine, but also against us and other EU countries, its citizens can acquire Czech citizenship, and therefore all the rights related to it.
Não podemos permitir que no momento em que a Rússia está tomando ações hostis não apenas contra a Ucrânia, mas também contra nós e outros países da UE, seus cidadãos possam obter cidadania tcheca e, portanto, todos os direitos atrelados a ela.
Em uma outra declaração para a Rádio Praga Internacional, ele acrescentou que “o direito à cidadania tcheca não é um direito humano”.
Embora preocupações com a segurança nacional sejam justificativas válidas para certas políticas, críticos argumentam que essa proposta levanta sérios questionamentos sobre o compromisso da República Tcheca com princípios democráticos e o seu tratamento de minorias. Ao combinar as vozes dos indivíduos afetados com o entendimento de comentaristas, as implicações da lei vão além de preocupações com segurança, revelando falhas problemáticas no liberalismo tcheco e a natureza oportunista do seu atual establishment político.
Vozes da comunidade russa
A emenda deixou muitos dos quase 40.000 residentes russos da República Tcheca com sentimentos de alienação e traição. Essas não são faces anônimas, mas membros bem integrados da sociedade que construíram vida, família e carreira no país.
Alguns membros da comunidade russa na República Tcheca são exilados que escaparam da Rússia por conta de desacordos com o regime de Putin.
O grupo ativista Jsme Lidé (Nós somos pessoas) criou um website e organizou petições contra tal emenda, afirmando que “Não somos marioskas. Nós somos pessoas”. Além disso, eles realizaram manifestações pacíficas e eventos públicos, defenderam a causa, levantaram doações e comunicaram com advogados e jornalistas.
A Global Voices entrevistou um dos ativistas que conscientizaram sobre os perigos humanitários de tal emenda, revelando o medo, incerteza e ressentimento que ela despertou dentro da comunidade.
Daria, uma contadora que vive em Praga há 10 anos, se sente descartada pelos políticos e destaca a impraticabilidade da emenda e as suas implicações morais:
I love it here. This is my home. I work, pay taxes, and have built my life here. Mr. Exner says that “ordinary Russians don’t need to be afraid of anything, they can perfectly fine live with a permanent residence permit in the Czech Republic,” however, he then mentions that in the case of conflict escalation with Russia, Russian citizens may and would be send out back to Russia. To the country I have no literal ties with. You cannot do the same thing with a Czech citizen. Mr. Exner, do you still think there is nothing to be afraid of? Do not answer, please, I already know what you are about to say.
Eu amo aqui. Essa é a minha casa. Eu trabalho, pago impostos e construí a minha vida aqui. O Sr. Exner diz que “russos comuns não precisam temer a nada, eles podem viver perfeitamente com uma permissão de residência permanente na República Tcheca”, contudo, ele menciona que no caso de agravamento do conflito com a Rússia, cidadãos russos podem ser mandados de volta para a Rússia. Para o país com o qual não tenho laços. Você não pode fazer a mesma coisa com um cidadão tcheco. Sr. Exner, você ainda pensa que não tem nada a temer? Não responda, por favor, eu já sei o que você está para dizer.
Cristina, uma profissional de 28 anos, que trabalha em uma empresa internacional apresenta as mesmas preocupações. “A emenda ameaça a minha capacidade de comunicar com a minha família na Rússia e a minha capacidade de viver no país que eu chamo de casa. “ Para ela, a cidadania russa é o seu laço com a infância e sua casa, mas “a República Tcheca se tornou a minha casa também”. Ela aponta que não existe garantia de que ela não será forçada a deixar o território tcheco e abandonar seu marido e criança.
Taisiia Fedorkova, uma médica de 26 anos, graduada na Universidade de Charles e que agora trabalha no departamento de medicina do Mulacova Nemocnice e que está casada com um cidadão tcheco, destaca as consequências sectárias da emenda, sentindo que ela retrata todas os russos como inimigos. Ela diz que, além de torná-la insegura a respeito do seu futuro e não ter a mesma cidadania de seus filhos, a família de seu marido não entende a necessidade disso.
Andrey, um profissional de análises de 42 anos com um PhD do Reino Unido, que se realocou na UE através do programa Cartão Azul e trabalha em uma das principais empresas de manufaturados da República Tcheca, receia que a emenda seja um sinal de uma tendência legislativa perigosa para outras minorias nacionais que também vivem na República Tcheca.
Populismo e fracasso do liberalismo tcheco?
A emenda atraiu fortes críticas de observadores e analistas; muitos a veem como um emblema de um amplo fracasso dentro do establishment da política tcheca.
O jornalista Ondřej Soukup argumenta que a emenda gera mais danos do que benefícios ao alienar aqueles que se opõem ao atual regime russo. Ele observou que a lei faz aquilo que a propaganda russa quer, ou seja, retratar o ocidente como hostil em relação aos russos.
Um comentário de Robert Havlíček, pesquisador da Associação de Assuntos Internacionais (AMO) destaca o fracasso do governo tcheco em defender os seus ideais liberais, citando que até mesmo o Gabinete da Ouvidoria Tcheca classificou a proposta como perigosa. Ele enfatizou que ela enfraquece a reputação da República Tcheca como defensora dos direitos humanos e da democracia.
Mesmo dentro do cenário político tcheco, a manobra tem sido criticada pela sua visão míope. “Em vez de abordar ameaças de segurança por meio de inteligência robusta e medidas direcionadas, o governo optou por uma política genérica que discrimina um grupo inteiro de pessoas”, observou um comentador da Rádio Praga Internacional.
Uma mudança para retórica de extrema direita
A emenda também reflete uma surpreendente mudança no establishment da política tcheca em direção à retórica de extrema direita. Embora o país tenha sido conhecido por um longo tempo como um bastião da democracia liberal na Europa Central, essa proposta sugere um abandono desses valores.
Mesmo assim, críticos argumentam que essa manobra é menos coligada à segurança e mais a respeito da conquista de votos, conforme Daria argumenta:
This isn’t about protecting the country — it’s the usual political populism. [The ruling party] is trying to win votes with such a cheap trick, understanding that it will lose the next elections.
Just in case Mr. Exner has never heard of it, when applying for citizenship, the candidate is checked up and down by the Czech secret services.
Isso não é sobre proteger o país; é a tradicional política populista. [O partido governante] está tentando ganhar votos com esse truque barato, sabendo que vai perder as próximas eleições. Caso o Sr. Exner nunca tenha ouvido isso, ao aplicar para obtenção de cidadania, o candidato é avaliado de cima a baixo pelo serviço secreto tcheco.
As declarações de Exner de que “russos comuns não têm nada a temer” são um grande contraste com a realidade enfrentada por residentes russos que temem a deportação ou a perda de suas casas. Christina, que estava ajudando alguns deles a expressarem suas preocupações por meio de tradução, explica que eles já enfrentaram hostilidade, com alguns recebendo mensagens de ameaça nas redes sociais.
Além de sua abordagem discriminatória, a proposta de emenda é, na maioria dos casos, impraticável. Para renunciar à cidadania russa, indivíduos são requisitados a viajar para Rússia e a completar o processo pessoalmente, o que é tarefa impossível ou perigosa para muitos. Muitos russos na República Tcheca são explicitamente ativistas anti-Putin, jornalistas — tais como Irina Dolinina, Farida Kurbangaleeva e Svetlana Prokopyeva — e dissidentes que procuraram refúgio nesse país devido ao medo de perseguição. Essa requisição aliena efetivamente aqueles que defendem ativamente valores democráticos e participam da sociedade civil tcheca.
A proposta de emenda para restringir a obtenção de cidadania para cidadãos russos representa um teste crítico para os valores democráticos da República Tcheca. O país defenderá os seus princípios liberais de inclusão e justiça, ou sucumbirá às pressões de populismo e medo?