Esse artigo foi publicado pelo jornalista nicaraguense Octavio Enríquez no CONNECTAS, e foi republicado na Global Voices devido a um acordo de parceria de mídia.
Como se prisões arbitrárias, privação e banimento de nacionalidade não fossem o suficiente, a ditadura de Daniel Ortega e Rosario Murillo, na Nicarágua, alcançou outro marco repressivo. Em um único dia, ordenou o fechamento de 1.500 organizações não governamentais (ONGs) confiscando seus ativos.
Murillo, esposa de Ortega que atua como vice-presidente, fez o anúncio em 16 de agosto, logo após assinar a medida estatal que previa um novo modelo para essas organizações. As ONGs não mais irão receber benefícios de isenção de impostos e suas relações para com o Estado deverão ser limitadas a “respeito”e “solidariedade”, o que, na língua da ditadura, significa que elas não poderão exercer nenhuma função que implique críticas ao governo. O endurecimento é tão severo que mesmo igrejas terão de pagar taxas sobre as doações que recebem.
De acordo com a ativista de direitos humanos nicaraguense, Amaru Ruiz, a ditadura eliminou cerca de 72% dos espaços civis ao fechar 5.220 organizações nos últimos seis anos. Esse ataque sistemático se intensificou com a aprovação da lei de “agentes estrangeiros”, que entrou em vigor em outubro de 2020. A lei é conhecida localmente como “lei de Putin” por causa de uma legislação russa similar, do final de 2012, que parece ter servido de modelo para esse mecanismo repressivo.
Hoje, Ortega representa o caso mais extremo de uma classe de políticos latino americanos que consideram o trabalho das ONGs como uma agressão contra a “soberania nacional”. Entre eles há líderes no México, El Salvador, Brasil, Venezuela, Peru, Bolívia e Paraguai.
Record of attacks on NGOs in the region
Governments of different ideological signs have shown their displeasure with associations and independent journalism. Why do political leaders hate these social organizations so much, and what are they really after?
Registro de ataques às ONGs na região
Governos de diferentes matrizes ideológicas mostraram seu descontentamento com associações e com o jornalismo independente. Por que os líderes políticos odeiam tanto essas organizações, e do que eles realmente estão atrás?
De onde vem o conceito de soberania e com qual significado ele vem sendo utilizado na América Latina? Primeiramente, a soberania é a capacidade de um Estado de exercer controle absoluto sobre as instituições políticas em seu território, e de tomar suas próprias decisões. O cientista político José Antonio Peraza, um antigo prisioneiro político de Ortega, explica que os romanos chamavam a soberania de “principatus”.
Peraza afirma que o ditador da Nicarágua tomou medidas repressivas contra as ONGs porque considera inaceitável que elas intervenham e deem suas opiniões sobre assuntos sociais, políticos e econômicos. Ele alerta que:
Todo aquel que se sale de ese control interno se vuelve un enemigo del Estado y por tanto de la soberanía.
Qualquer pessoa que transgrida esse controle interno se torna um inimigo do estado, e , portanto, da soberania.
A soberania reside no povo, como colocado por Jean Jacques Rousseau no século 18. Anos depois, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão estabeleceu que esse princípio também reside na nação. As duas visões são essenciais para entender os Estados, que são caracterizados por suas estruturas institucionais.
Porém, alguns regimes antidemocráticos na América Latina, e ao redor do mundo, entendem a si mesmos como o “povo”. Eles ignoram a independência dos poderes do Estado, subordinando-os à sua própria decisão.
Por exemplo, a ditadura de Nicolás Maduro na Venezuela tem reprimido os protestos contra a fraude eleitoral desde o fim de julho, sob o pretexto de que os manifestantes agem como inimigos do “povo”. E, conforme o esperado, o chavismo tornou as ONGs alvo dessa repressão. Em 15 de agosto, o partido de Maduro aprovou uma lei para controlar as finanças e atividades dessas associações. A lei coincide com o padrão de perseguição que afetou a Cruz Vermelha, em 2023, e outras organizações de direitos humanos como a Provea.
O advogado da ONG “Acesso a la Justicia”, Alí Daniels, relatou ao jornal digital venezuelano, Efecto Cocuyo :
Se quiere tener una sociedad civil callada y sumisa. Domesticada. Este es el verdadero fin de la ley. No es la regularización de las organizaciones, porque ya estábamos regulados. Hacemos un llamado a los órganos internacionales para que se pronuncien sobre este tema.
Se querem uma sociedade civil calada e submissa. Domesticada. Esse é o propósito real desta lei. Não é regularizar as organizações, porque já estávamos regulados. Fazemos um chamado para que os órgãos internacionais se pronunciem sobre esse tema.#LaHoraDeVenezuela 🇻🇪🚨
Ongs na Venezuela denunciam que todos os detidos nos protestos foram acusados sob as mesmas queixas.
Qual é o padrão? Audiências coletivas, à distância e sem defesa particular.
Essa nota explica a questão.
Nos últimos tempos, outros líderes latino-americanos atacaram a sociedade civil organizada. Entre eles o presidente mexicano Andres Manuel Lopez Obrador. Em 19 de agosto, ele criticou o fato de a agência americana USAID ter financiado a ONG Mexicanos Contra a Corrupção, especializada em investigações jornalísticas. López Obrador disse que escreveu a Joe Biden sobre o assunto. O presidente mexicano argumentou:
Este proceder es completamente ofensivo y contrario a las relaciones de respeto a nuestras soberanías que tanto usted como yo hemos venido cultivando en bien de nuestras naciones.
Isso é completamente ofensivo e contrário às relações de respeito às nossas soberanias que tanto você quanto eu temos cultivado pelo bem de nossas nações.
Para o salvadorenho, especialista em relações internacionais, Napoléon Campos, a sociedade civil tende a assumir a promoção de direitos humanos e a participação civil em contextos democráticos. Práticas reconhecidas como valiosas, tanto pela Organização dos Estados Americanos (OEA) quanto pela Organização das Nações Unidas (ONU). Porém, essas organizações são confrontadas nos Estados pelos interesses do que Campos chama de “projetos tirânicos”.
#Entérate Esta semana el presidente @lopezobrador_ exhibió información fiscal de los donantes, proveedores y personal de MCCI. Durante el sexenio nuestra organización ha sido hostigada y difamada en 265 ocasiones.
Te contamos. 🎨 https://t.co/Bxzw3XgdpC pic.twitter.com/UzkYNz3Xx0
— Mexicanos Contra la Corrupción (@MXvsCORRUPCION) August 16, 2024
#Leia: Essa semana o presidente Lopes Labrador exibiu informações fiscais de doadores, provedores e funcionários da MCCI. Durante seu mandato de seis anos, nossa organização foi hostilizada e difamada em 265 ocasiões.
Campos concorda com o diplomata boliviano Jaime Aparicio Otero, antigo presidente do comitê jurídico da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Aparicio observa que o conceito de soberania se tornou um “pretexto” para atacar um setor que os líderes políticos vêem como ameaça ao seu controle absoluto. Aparicio diz:
Las organizaciones y movimientos de la sociedad suelen promover valores como la transparencia, la rendición de cuentas, la protección del medioambiente, derechos humanos y la participación democrática. Por lo tanto, son contrarios a los intereses de un gobierno que lo que busca es concentrar el poder y prorrogarse.
As organizações da sociedade civil e movimentos sociais tendem a promover valores como: transparência, prestação de contas, proteção do meio ambiente, direitos humanos e participação democrática. Portanto, elas são contrárias aos interesses de um governo que procura concentrar poder e perpetuar a si mesmo.
Aparicio aponta para a Nicarágua, Bolívia, Cuba e Venezuela como um grupo de nações vivendo sob um “populismo autoritário”. Mas não são só líderes que se identificam como esquerdistas que atacam as associações: o governo de direita do ex-presidente Jair Bolsonaro também perseguiu as ONGs no Brasil. Aliás, Bolsonaro tentou controlar as ONGs por meio de um decreto de 2019, e, além disso, acusou as organizações que trabalham com povos amazônicos de “manipular e explorar” as comunidades indígenas.
Em El Salvador, o presidente Nayib Bukele também atacou grupos da sociedade civil. Com uma política conduzida à mão de ferro, ele estabeleceu um regime extremo de combate à gangues o que rendeu a ele imensa popularidade e a reeleição em 2024. A democracia, porém, morreu no processo. Desde então o governo vem perseguindo e promovendo campanhas de difamação nas redes sociais que são direcionadas aos jornalistas independentes e a membros de ONGs que vêm documentando seus abusos. Um exemplo foi a erupção raivosa de Bukele, em abril de 2022, na qual ele acusou ONGs, a mídia e outros partidos políticos de estarem por trás do “derramamento de sangue“causado pelas gangues.
O governo do presidente salvadorenho tem um projeto de lei direcionado a “agentes estrangeiros”. A lei propõe punir “interferências estrangeiras” e considera cobrar uma taxa de 40% de todas as organizações da sociedade civil e da mídia que o regime considere estar participando na política e perturbando a paz. A lei está pendente, mas, considerando o controle completo de Bukele no parlamento, pode ser aplicada a qualquer momento.
#PolíticaSV l No archivarán Ley de Agentes Extranjeros dice presidente de Asamblea
>> https://t.co/lZzVgJHfDJ pic.twitter.com/0MJxxc1Wrr
— Diario El Mundo (@ElMundoSV) August 6, 2022
#PolíticaSV l A lei de agentes estrangeiros não será arquivada, disse o presidente da Assembleia.
Bukele, visto como um político de extrema direita, já tomou medidas em defesa da “soberania” que o levam para perto do esquerdista Ortega. E, em três ocasiões, a delegação salvadorenha na OEA (Organização dos Estados Americanos) não endossou condenações multilaterais de abusos cometidos na Nicarágua. A delegação escreveu uma nota curiosa, afirmando que El Salvador não intervém em negócios internos de outros países.
Mas o conceito de soberania tem seus limites. Campos considera a posição de Bukele “hipócrita” e Aparicio apela para o compromisso dos Estados em respeitar os direitos humanos. Ele disse:
Respecto a la soberanía es bueno decir que se olvidan los países latinoamericanos como México, Colombia y otros que, al firmar la Convención Americana sobre Derechos Humanos y la carta de la OEA, hay un deber de injerencia asumido por los propios Estados que trasnacionaliza la obligación de cumplir con los derechos humanos.
Em respeito à soberania, vale mencionar que os países latino-americanos (como o México, a Colômbia, entre outros) esquecem que, ao assinarem a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o estatuto da OEA, assumem um dever pelos próprios Estados que acaba por transnacionalizar a obrigação de cumprir com os direitos humanos.
Na Bolívia, se avaliarmos os registros políticos de Evo Morales vemos que ele se esforçou para construir a imagem de um campeão de soberania na América Latina. Mas, na verdade, esses líderes latino americanos são frequentemente mansos quando as interferências alegadas vêm da China, Rússia ou Irã. Aparicio explica que os investimentos de milhões de dólares de Pequim, em tecnologia, infraestrutura e recursos naturais, não prevê nenhuma governança ou condições de direitos humanos aos seus parceiros.
Por exemplo, em 14 de outubro de 2023, Daniel Ortega elogiou o restabelecimento de relações diplomáticas com a China. Ele disse que era um “milagre” que eles agora possuem laços e destacou que o tratamento entre eles é de “respeito” e não possui “condicionamentos”. É o mesmo modus operandi com outras nações que estão enfrentando violações de direitos humanos. Afinal de contas, Pequim reconheceu a “vitória”de Maduro depois de uma “organização de sucesso” das eleições na Venezuela, apesar da fraude ter sido documentada pela oposição.
Claro, é evidente que ditadores que implementam o terror stalinista contra seus oponentes devem preferir ser amigos daqueles que não questionam seu comportamento. Autocratas locais não gostam de serem perguntados sobre assuntos desconfortáveis, exatamente as perguntas que as organizações da sociedade civil devem fazer. Assim, de forma mais ou menos agressiva, as ONGs vão sempre se encontrar na mira da repressão.