Rick Azevedo ligou a câmera do seu celular e, por um minuto e sete segundos, falou a respeito de como ele se sentia indignado com a sua escala de trabalho exaustiva que coloca empregados para trabalhar oito horas por dia, seis dias na semana, com apenas um dia de folga.
“Continuo a pensar, eu vivo sozinho, não tenho filhos e não consigo fazer nada; você consegue imaginar alguém que tem filhois, marido e casa para cuidar? Eu quero saber quando nós, da classe trabalhadora, revoltaremos contra essa escravidão ultrapassada chamada escala 6/1?”, disse em 12 de setembro durante uma livestream.
Seu vídeo foi interpretado como um chamado para agir por algumas pessoas na internet. O clipe, postado no TikTok no dia seguinte, tem cerca de 1 milhão de visualizações um ano depois e desencadeou um movimento no Brasil chamado VAT (Vida Além do Trabalho).
O movimento está tentando desafiar as leis trabalhistas do país, que determinam oito horas de trabalho em dias úteis, mais quatro horas aos sábados, totalizando 44 horas de trabalho por semana. Isso para receber, geralmente, um salário mínimo de R$ 1.412 (cerca de US$ 250) no Brasil.
Trabalhadores de indústrias como comércio, restaurantes, supermercados e call centers, entre outros serviços, têm maior probabilidade de se sujeitarem a esse tipo de escala. Algumas categorias possuem exceções e têm os seus próprios regimes de trabalho.
Na seção de comentários do vídeo de Azevedo, um seguidor disse: “Geralmente, a sua folga é aos domingos, e você não pode ir ao médico ou ao dentista ou resolver qualquer coisa”. Outros também reclamaram: “Eu odeio isso; parece que a minha vida está sendo sugada”. Um outro usuário afirmou que as pessoas te chamarão de preguiçoso, caso você não goste dessa escala porque “elas acham normal perder sua vida por uma empresa”.
O próprio Azevedo, de 30 anos, trabalhou 12 anos na escala 6/1 como atendente de farmácia, conforme sua fala no podcast Lado B do Rio. Ele alega que a rotina o adoeceu, causando ansiedade e depressão, além de impedi-lo de estudar ou tentar qualquer coisa que pudesse ajudá-lo a desenvolver sua carreira.
Ele diz que deixou esse tipo de trabalho por um tempo, mas em julho de 2023, teve de voltar por falta de outra alternativa. Desesperado com a sua situação, ele ligou a sua câmera para gravar o vídeo que trouxe ovação a ele e ajudou a inspirar um movimento.
Em 6 de outubro, Azevedo foi eleito para a Câmara Municipal do Rio de Janeiro pelo partido PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), o mesmo partido de Marielle Franco, vereadora assassinada em 2018 após enfrentar e denunciar grupos paramilitares locais.
Rick, que recebeu 29.364 votos, agora trabalhará com a viúva de Marielle, Monica Benicio.
VAT e a lei
O panfleto do VAT diz que o movimento está lutando pela redução da jornada de trabalho sem redução dos salários ou direitos trabalhistas. Eles também mantêm um canal ativo no Telegram que coleta histórias de trabalhadores.
Para um seguidor no X (antigo Twitter), que disse que seu poder como vereador não permitiria mudanças além das leis trabalhistas de servidores públicos, Azevedo compartilhou que ele tinha desenvolvido uma “PEC”, um projeto de lei que altera a Constituição, com a deputada Erika Hilton (também do PSOL). A proposta foi anunciada por Hilton em maio e precisa de um número específico de assinaturas dos parlamentares.
Também em maio, Hilton e Azevedo se reuniram com Luiz Marinho, ministro do trabalho e emprego do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT, Partido dos Trabalhadores), e entregou a ele as demandas do movimento e uma cópia da mesma petição direcionada ao Congresso Nacional.
A petição obteve 1.329.085 assinaturas até a metade de outubro de 2024 e foi um chamado para discutir melhorias das condições de trabalho dos brasileiros. Entre as sugestões estão: uma revisão do modelo de escala 6/1 e uma jornada de trabalho mais equilibrada; um debate público sobre as leis trabalhistas e como melhorar as condições atuais; políticas para garantir o direito dos trabalhadores a férias, licença parental e limite de horas extras.
A CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas), lei trabalhista brasileira, está ativa há mais de 80 anos, mas passou por mudanças nos últimos anos.
Em 2017, durante a presidência de Michel Temer, que começou após o impeachment da presidente Dilma Rousseff (também do Partido dos Trabalhadores), uma reforma das leis trabalhistas foi introduzida. Isso alterou algumas regras da CLT, tornando facultativa as contribuições sindicais, permitindo a divisão de férias em três períodos, e possibilitando a extensão da carga horária de trabalho para 12 horas, intercaladas com 36 horas de repouso.
A chamada Lei da Terceirização, promulgada no mesmo ano, aumentou o tempo permitido para trabalhos temporários e permitiu que empregadores contratassem trabalhadores para suas atividades primárias sob esse sistema.
A CLT foi assinada por Getúlio Vargas em 1943, durante o seu regime ditatorial do Estado Novo, que foi instaurado após um golpe, levando a sua aprovação sem passar pelo Congresso Nacional. Desde então, foi garantida uma escala de trabalho de oito horas por dia aos trabalhadores, descanso remunerado, pagamento de horas extras, proteção contra demissão, seguro desemprego, entre outros direitos. Por um tempo, foi dito que a inspiração veio da Carta del Lavoro do fascista Benito Mussolini na Itália, mas alguns alegam que isso é um mito.
No Brasil, como em outros países, muitas pessoas estão lidando com situações precárias de trabalho por causa da flexibilidade das leis trabalhistas e o surgimento da gig economy. Isso levou a um aumento significativo no número de pessoas que pararam de procurar por empregos tradicionais, de 1,46 milhão para 4,98 milhões entre 2014 e 2019, de acordo com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas).
A agência de notícias do Senado observou que o Congresso Nacional tem discutido propostas para reduzir a jornada de trabalho desde 1995, mas apenas no último ano a mudança começou a parecer provável. Em dezembro de 2023, o projeto foi aprovado em uma das comissões para incluir na CLT a possibilidade de reduzir a jornada de trabalho sem cortes na remuneração, caso determinado por meio de um acordo prévio.
O Senador Paulo Paim (PT), que também trabalhou na proposta dos anos 90, disse:
É preciso que todos entendam que a redução de jornada só representará uma vitória se for fruto de um grande entendimento não só no Congresso e no Executivo, mas também entre empregados e empregadores. Esse entendimento é que aponta caminhos, pois o país que queremos está baseado na humanização da relação de trabalho.