
Julieta Inés Hernández Martínez. Imagem: Arte sobre foto em redes sociais e imagem Freepik.
Este texto foi escrito por Dominique Maia e publicado originalmente no site do MigraMundo em 15 de outubro de 2024. Ele é republicado aqui em acordo de parceria com o Global Voices, com edições.
Em janeiro de 2024, o corpo da artista venezuelana Julieta Inés Hernández Martínez foi encontrado no município de Presidente Figueiredo, a 124 km de Manaus, no estado do Amazonas, região norte do Brasil.
Desaparecida desde o dia 23 de dezembro de 2023, Julieta havia sido vista pela última vez quando comunicou à família que passaria a noite na cidade antes de seguir viagem para Rorainópolis, em Roraima.
O desaparecimento mobilizou buscas e investigações que, mais tarde, levaram à prisão de um casal de suspeitos, indiciados mais tarde pela Polícia Civil do Amazonas. O caso chocou o Brasil e a Venezuela, e teve grande repercussão nas redes sociais e entre organizações artísticas — Julieta era figura ativa em movimentos sociais e culturais.
Passados nove meses, porém, a morte dela, ainda levanta questões sobre a violência de gênero na região amazônica, além da luta pelo reconhecimento do caso como feminicídio.
Quem era Julieta?
Artista circense e feminista, Julieta chegou ao Brasil em 2015 e, ao longo de oito anos, transformou sua vida em uma verdadeira jornada de movimento e criatividade. Nas redes sociais, ela se apresentava como “migrante nômade, bonequeira, palhaça e viajante de bicicleta”.
Ela também interpretava a palhaça Miss Jujuba, viajando a vários lugares do Brasil com a peça “Viagem de Bicicleta de uma Palhaça Só… Sozinha?”. Além de suas performances, Julieta também produzia artesanato e confeccionava bonecos por encomenda, e oferecia oficinas de arte para crianças, estimulando a criatividade e a imaginação em novas gerações.
Parte do grupo circense Pé Vermêi (pé vermelho, em português coloquial), que reunia artistas e ciclo-viajantes, Julieta usava a bicicleta como meio de transporte para percorrer o Brasil e se conectar com diferentes comunidades.
Como foi o crime
A Polícia Civil do Amazonas iniciou as investigações logo após o registro do desaparecimento de Julieta, no início de janeiro. A partir das informações sobre seu último paradeiro, foram realizadas buscas em pousadas da região do município de Presidente Figueiredo, um lugar com 30.668 habitantes.
Na manhã de 5 de janeiro, Thiago Agles da Silva foi localizado em um refúgio e afirmou que a venezuelana havia pernoitado no local antes de seguir viagem. No entanto, no mesmo dia, um morador encontrou partes da bicicleta da vítima, levando a polícia a confrontar Silva, que tentou fugir.
Durante os interrogatórios, ele e sua companheira, Deliomara dos Anjos Santos, apresentaram versões contraditórias até admitirem a autoria do crime. De acordo com o delegado Valdinei Silva, Silva disse ter atacado Julieta enquanto ela dormia, para roubar seu celular. Segundo o portal G1, após uma luta corporal, ele teria abusado sexualmente dela.
Durante o depoimento, a mulher dele confessou que, ao presenciar a cena, foi tomada por ciúmes do companheiro, jogou álcool e pôs fogo em ambos. Julieta teria sido enforcada e enterrada em uma cova rasa. Na época, a polícia disse suspeitar ainda que ela teria sido enterrada com vida.
O casal foi detido no dia 5 de janeiro. Com o auxílio do Corpo de Bombeiros Militar do Amazonas e seus cães farejadores, o corpo de Julieta foi localizado em uma cova no quintal do refúgio, junto com outros pertences.
Por que feminicídio
A família de Julieta lidera uma mobilização para que o crime seja tipificado como feminicídio pela Justiça brasileira, argumentando que a violência sofrida por Julieta carrega traços de misoginia e xenofobia, considerando que era uma mulher e migrante venezuelana.
O movimento é realizado em colaboração com a União Brasileira de Mulheres (UBM) e destaca problemas na condução do caso, que foi enquadrado pelo Ministério Público do Amazonas como latrocínio, estupro e ocultação de cadáver.
Durante sessão plenária na Assembleia Legislativa do Amazonas, em junho, Sophia Hernández, irmã de Julieta, afirmou que o caso foi rapidamente encerrado sem uma apuração aprofundada e questionou a classificação como latrocínio ou roubo seguido de morte.
Ela ressaltou que, embora os pertences de Julieta não tenham sido roubados ou vendidos, foram ocultados para encobrir o crime, reforçando o pedido para que a Justiça reconheça a motivação misógina e xenófoba do crime.
“Primeiro, porque quando é latrocínio são menos anos de condenação, segundo, e mais importante, é porque foi um feminicídio e não podemos chamar por outro nome um crime de gênero. Julieta morreu por ser mulher, migrante e por viver uma vida em liberdade, como nós mulheres devemos viver”, declarou Sophia ao portal Amazônia Real na época.
Denise Motta Dau, secretária Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, do Ministério das Mulheres, que também participou da sessão, disse: “O crime não tem nada de roubo. Mas houve violência sexual, houve tortura, houve crueldade, que são manifestações bem explícitas de ódio, de misoginia e xenofobia”.
Em uma nota divulgada no dia 6 de junho, o Ministério das Mulheres já havia expressado apoio à ação da família. Nela, a pasta declara que “reconhece a preocupação dos familiares e advogados de Julieta pela ausência do devido tratamento jurídico ao caso como uma grave violação de direitos humanos das mulheres e dos migrantes”.
O ministério diz ainda que “reforça a crença nas instituições brasileiras para que este caso e o de todas as mulheres que recorrem à Justiça não fiquem impunes, por suas vidas e pelo direito à memória”.
A lei brasileira
O advogado Carlos Nicodemos, que representa a família, também defende que há elementos no crime que sustentam a tese de feminicídio. “Existiu ali uma evidência em relação a intencionalidade de agredir, violar, praticar misoginia e xenofobia. Isso só se evidencia na legislação penal como crime de feminicídio, o que não foi efetivamente apresentado pelo Ministério Público, nem recepcionado pelo Poder Judiciário”, declarou à imprensa.
Nicodemos lembrou ainda que o caso Julieta infringe tratados internacionais de direitos humanos, como a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, conhecida como “Convenção de Belém do Pará” (1994), da qual o Brasil é signatário.
A classificação de um crime como feminicídio não é apenas uma questão semântica ou jurídica, trata-se de reconhecer a especificidade da violência de gênero e o contexto social em que ocorre.
No Brasil, desde 2015, uma lei alterou o Código Penal o reconhecendo como qualificadora de crimes de homicídio. Em outubro de 2024, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou uma nova lei que aumenta para até 40 anos a pena para casos do tipo.
Em muitos casos, como o de Julieta, a violência de gênero é motivada por discriminação e desigualdade que afetam as mulheres, com um risco diferenciado às migrantes, que também sofrem com a xenofobia.
Para mulheres migrantes, a luta pelo reconhecimento do feminicídio pode ser ainda mais complexa. Isso porque estão frequentemente à margem do sistema de proteção, muitas vezes sem acesso a redes de apoio, e enfrentam mais dificuldades em acessar a justiça devido à sua condição migratória, barreiras linguísticas e falta de informações sobre seus direitos.
Reconhecer o assassinato de Julieta como feminicídio pode criar um precedente importante para o tratamento de outros casos semelhantes.