Humor e rock & roll contra o assédio político na Argentina

Colagem de imagens do clipe “Fanático” por Lali Espósito no YouTube, feita por Global Voices.

Há apenas alguns dias do seu lançamento, um vídeo com letras sarcásticas e um ritmo cativante que denuncia o assédio ao qual a artista foi submetida por mais de um ano pelo presidente argentino conseguiu entrar no Top 5 de vídeos mais assistidos do mundo, e é o número um na Argentina.

É “Fanático,” o single mais recente da cantora, compositora, atriz e ativista Lali Espósito, lançado no final de setembro de 2024 e com o qual ela parece ridicularizar o presidente e estabelecer uma posição política firme de oposição ao governo de Javier Milei, que está no cargo há dez meses.

Com uma estética cuidadosamente planejada — carregada de simbolismos, humor e referências lúdicas à carreira da artista, seu ativismo e seus fãs — o vídeo apresenta um personagem com costeletas falsas e uma jaqueta de couro que grita coisas sem sentido, provavelmente Milei. Há também inúmeras referências, algumas mais sutis que outras, aos insultos, acusações e discursos de ódio que Espósito tem recebido.

A letra de “Fanático,” simples e bem travessa, poderia muito bem ser sobre qualquer fã que se torna obcecado por seu ídolo preferido, mas as imagens e o contexto do confronto entre Milei e Espósito deixam a referência bem clara.

Em 13 de agosto de 2023, quando o resultado das eleições primárias a favor do candidato libertário Javier Milei foi publicado, Lali Espósito tuitou as palavras “Tão perigoso. Tão triste”. As respostas e os ataques de Milei não tardaram a chegar, e assim começou um confronto midiático intenso, parecido com o de Donald Trump contra Taylor Swift.

Música e humor como ferramentas políticas

O fato é que você precisa conhecer a cultura argentina, o contexto político recente e a carreira de Lali Espósito para entender as referências que aparecem no vídeo.

As cenas foram gravadas num depósito, o que pode ser uma referência por si só, já que Milei a chamou de “Lali Depósito”, afirmando que a artista vivia às custas do dinheiro público em troca de fazer propagando do kirchnerismo. No depósito, Lali lidera uma seleção de elenco com um grupo de personagens diferentes: fãs que a imitam como alguns de seus personagens em programas infantis e adolescentes e como cantora.

Uma das pessoas que aparece na seleção e que chama a atenção de Lali é um rolinga (fã dos Rolling Stones) vestindo uma camiseta que diz “quem diabos é LALI?”, uma referência a camiseta que Keith Richards usou para provocar Mick Jagger. Além disso, quando perguntado sobre ela, Milei foi enfático ao dizer que não a conhecia, afirmando “eu só ouço os Rolling Stones”. 

On the left: a person with a white T-shirt that says "Who the fuck is Lali?". On the right, Keith Richards wearing a T-shirt with the text: "Who the fuck is Mick Jagger?"

Referência à camiseta no vídeo e a original de Keith Richards. Esquerda: captura de tela do vídeo “Fanático.” Uso livre. Direita: Imagem de docteurcarter no Flickr. Wikimedia Commons, CC BY 2.0.

Um homem que claramente se parece com Milei também aparece na seleção de elenco. Ele grita e se descontrola, enquanto Lali parece estar entediada. Ele é rapidamente retirado de cena, mas volta logo depois para continuar gritando insistentemente, apesar da pouca atenção que recebe dos demais, como se estivesse fazendo birra.

E quem diabos é Lali?

Mariana “Lali” Espósito, nascida em Buenos Aires em 1991, é uma cantora, compositora e atriz que estreou na televisão argentina aos 10 anos de idade. Ela participou de diversos programas e séries infantis, continuou atuando em séries adolescentes, e foi o rosto de diversas propagandas. 

Ela fez um dos personagens na série espanhola Sky Rojo, da Netflix em 2021, que recebeu críticas excelentes da mídia internacional por abordar os problemas do tráfico sexual.

Em sua carreira musical, apareceu nas trilhas sonoras de séries de TV e de uma novela, e integrou os Teen Angels, uma banda pop formada a partir de um série argentina, com quem ela gravou seis álbuns. Em 2013, Lali começou sua carreira como artista solo, apesar de ter dividido o palco com grandes figuras da música e do entretenimento internacional.

Lali Espósito durante o Fénix Awards em 2018, com seu lenço verde, um símbolo da luta feminista pelo aborto legal e seguro na Argentina. Imagem por Milton Martínez para a Secretaria de Cultura CDMX via Wikimedia Commons (CC BY 2.0).

Em seu lado político, Lali participou desde muito nova de inúmeras campnhas de conscientização e justiça social ao lado de diversas fundações, ONGs e artistas. Ela se descreve como uma “feminista aprendiz”, reconhecendo suas próprias falhas e hipocrisias, e se propôs a trabalhar nelas para se tornar uma feminista melhor.

Ela é membro do coletivo Actrices Argentinas (Atrizes Argentinas), criado em 2018 para apoiar o direito ao aborto na Argentina, e tem sido muito consistente em seu ativismo pela causa, o que a tornou o alvo de muitos ciberataques, ameaças e assédio, inclusive do atual presidente da Argentina.

Num contexto de pobreza crescente, declínio dos direitos humanos e vozes dissidentes sentindo-se cada vez mais ameaçadas, o humor apimentado do vídeo de Lali enche seus seguidores com risos e otimismo. E para o desgosto de seus críticos, o clipe permitiu que ela entrasse no Top 5 de vídeos mais assistidos do mundo pela primeira vez.                                                              

Em 3:07 minutos de música, Lali Espósito fez e disse muito mais que a oposição em 9 meses.

Obrigado Rainha.

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