Cobrindo Gaza: a guerra mais mortal para jornalistas

Veículo blindado da Reuters danificado por um ataque de míssil israelense em Gaza no ano de 2006. O operador de câmera da Reuters, Fadel Shana, e um jornalista local foram feridos no ataque. Dois anos depois Shana foi morto quando seu veículo (marcado como veículo de imprensa) foi atingido por um tanque israelense em Gaza. Imagem por Eric Huybrechts via Flickr. CC BY-ND 2.0.

Em 31 de julho de 2024 os jornalistas Ismail al-Ghoul e Rami al-Rifi do canal de notícias Al Jazeera foram mortos por Israel no campo de refugiados Shati no norte de Gaza enquanto reportavam o assassinato do chefe do gabinete político do Hamas, Ismail Haniyya no Irã.

O exército israelense admitiu ter matado os dois acusando-os de serem membros do Al Qassam, ala militar do Hamas, e de terem participado do ataque de 7 de outubro. Essa grave acusação, enfaticamente negada pelo canal, tem sido usada repetidamente por Israel para justificar o assassinato de jornalistas, o que tem o risco de normalizar  ataques direcionados a jornalistas sob falsas acusações.

Al Jazeera se pronunciou dizendo que Al Ghoul, que já havia feito cobertura dos ataques israelenses ao hospital Al-Shifa no norte de Gaza, tinha sido detido pelas forças israelenses em março e liberado 12 horas depois, o que desqualifica as reivindicações de sua associação com o Hamas ou outras organizações.

Nicola Perugini, professor associado do departamento de política e relações internacionais da Universidade de Edimburgo, alertou no X sobre o uso de tais acusações contra jornalistas:

The Israeli military crystal clearly affirming that Gaza journalists who are documenting its annihilation war are legitimate military targets. “Nukhba” has become a synonym for killable and torturable civilians. pic.twitter.com/qfmopfcY2A

— Nicola Perugini (@PeruginiNic) August 1, 2024

Um padrão perturbador

Conforme dados preliminares do Comitê para a Proteção dos Jornalistas (Committee to Protect Journalists, CPJ), pelo menos 113 jornalistas e outros trabalhadores de mídias foram mortos desde o começo da guerra em 7 de outubro de 2023. Três deles foram alvos confirmados dos ataques, com 10 outros sob investigação. Os números divulgados pelo departamento de mídia do governo de Gaza são de 165 palestinos, jornalistas e trabalhadores de imprensa, mortos.

De acordo com o Repórteres sem Fronteiras (RSF), “29 [dos 120 jornalistas reportados, pelo RSF, como assassinados] foram mortos em circunstâncias que apontam para eles como alvos intencionais, o que viola a lei internacional”. Três reclamações foram feitas junto à Corte Criminal Internacional (ICC) clamando por investigações independentes desses crimes de guerra. 

A rede Al Jazeera, banida por Israel desde maio de 2023, tem sido alvo constante, com cinco de seus jornalistas mortos em Gaza desde o começo da guerra. Hamza al-Dahdouh (filho de Wael al-Dahdouh, chefe do escritório da rede em Gaza), e Moustafa Thuraya foram assassinados em janeiro por um ataque aéreo. O exército israelense mais uma vez alegou que as vítimas eram “membros de uma organização terrorista baseada em Gaza”, o que foi igualmente refutado tanto pelo canal quanto por outras fontes.

Em fevereiro, um ataque de drone feriu Wael al-Dahdouh e matou o operador de câmera Samer Abu Daqqa. A esposa de Wael, sua filha de sete anos de idade, e um filho de quinze, também foram mortos por um ataque aéreo israelense em 28 de outubro de 2023.

“Esses ataques mortais aos funcionários da Al Jazeera são feitos simultaneamente a uma campanha de difamação pelas autoridades israelenses”, de acordo com a Repórteres Sem Fronteiras. Sobre isso a organização alerta: “associar o jornalismo com terrorismo coloca os repórteres em risco e ameaça o direito à informação”.

“O assassinato de al-Ghoul e al-Rifi é o último exemplo dos riscos de documentar a guerra em Gaza, o conflito mais mortal para jornalistas de que a organização tem registro em 30 anos”, disse a CEO do Comitê para a Proteção dos Jornalistas, Jodie Ginsberg. Ela também enfatizou que o assassinato de jornalistas por Israel tem sido um padrão perturbador ao longo dos últimos 20 anos. “Isso parece ser parte de uma estratégia mais ampla de Israel para sufocar as informações que saem de Gaza,”ela explicou, acrescentando que o banimento da Al Jazeera é parte dessa tendência.

Trauma e exaustão

Desde sete de outubro Israel não permitiu que nenhum jornalista estrangeiro entrasse em Gaza, exceto se integrado ao exército israelense. Essa proibição significa que os jornalistas locais são quem deve sofrer as consequências de cobrir o conflito, por sua conta e risco.

O trauma e a exaustão imensos que esses jornalistas locais enfrentam ao continuarem vulneráveis, mesmo tomando todas as precauções de segurança possíveis, foi bem expresso num relato tocante da jornalista Hind Khoudary do Al Jazeera em inglês que se tornou viral depois do assassinato de seus colegas.

‘Nós fazemos de tudo. Usamos nossas jaquetas da imprensa. Usamos nossos capacetes. Mas estamos sendo alvo em lugares comuns, onde os cidadãos comuns estão’.

É o que reporta a jornalista Hind Khoudary, do portal Al Jazeera, sobre o assassinato de seus colegas, o jornalista Ismail al-Ghoul e o operador de câmera Rami al-Rifee, que…

A correspondente do Al Jazeera em Jerusalem, Najwan Simri, escreveu um tributo para o colega, Ismail:

Era suficiente olhar nos seus olhos e contemplar suas feições para sentir a profundidade da tristeza de Gaza, e a repreensão destinada a nós. Eu sempre senti que ele nos repreendia com polidez excessiva… e muita esperança. Como se ele não tivesse perdido a esperança em nós em momento algum.

Enquanto isso, jornalistas em Gaza protestaram e fizeram vigília em resposta ao assassinado de al-Ghoul, expressando sua indignação pela situação precária em que se encontram diariamente, sem responsabilização pelos crimes cometidos contra eles, e sem proteção. Os funcionários da unidade árabe do Al Jazeera ficaram em silêncio, ao vivo, como forma de protesto.

Um vídeo tocante do momento em que o apresentador do Al Jazeera Árabe recebeu, e compartilhou, a notícia sobre o assassinato de Ismail Al Ghoul e Rami Al Rifi, viralizou.

Bayan Abusultan, uma jornalista em Gaza, tuítou :

They want to silence us.
They threaten all journalists who are still in Gaza city, and the north.

Covering the news here = Being targeted by the israeli forces.

Remember to keep talking about #Gaza even if they got every last one of us.

— Bayan (@BayanPalestine) July 31, 2024

Uma história de impunidade

Israel tem um histórico de fazer os jornalistas de alvo e sair impune, o que é evidenciado pelo caso da jornalista Shireen Abu Akleh, morta pelo exército israelense enquanto trabalhava em Jenim, na Cisjordânia, no dia 11 de maio de 2022. O assassinato de Abu Akleh põe em evidência os perigos enfrentados pelos profissionais de mídia palestinos devido à falta de responsabilização de Israel.

Leia mais em: Proeminente jornalista palestina, Shireen Abu Akleh, é morta por Israel com um tiro na cabeça

Carlos Martínez de la Serna, do Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ), criticou Israel por se recusar a colaborar com o FBI e bloquear investigações da Corte Criminal Internacional sobre a morte da jornalista. Serna também clamou pelo fim da impunidade de Israel diante do assassinato de jornalistas, que só cresceu durante a atual guerra em Gaza.

Tribute to Shireen Abu Akleh in London, May 14, 2022. Image by Alisdare Hickson via Flickr. CC BY-SA 2.0.

Em 2022, a família de Abu Akleh e o Al Jazeera fizeram um pedido para que a Corte Criminal Internacional investigasse sua morte, mas líderes israelenses, incluindo o antigo primeiro- ministro Yair Lapid, resistiram em interrogar os soldados envolvidos, e declinaram em abrir uma investigação criminal sobre a morte.

A escala do assassinato de jornalistas por Israel fica mais visível quando comparada a números globais. Mais de três quartos dos jornalistas assassinados em 2023 foram mortos em Gaza, de acordo com o CPJ. Esse número alarmante enfatiza a necessidade urgente de responsabilizar Israel e melhorar as medidas de proteção voltadas para jornalistas em todos os lugares, garantindo a segurança e proteção de todos os profissionais que, corajosamente, cobrem as frentes de conflito.

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