Este artigo de Alexey Voloshinov foi escrito para o veículo de comunicação on-line russo 7 x 7. A Global Voices o traduziu, editou para maior clareza e republicou com permissão.
A maioria dos budistas russos vive nas regiões da Buriácia, Tuva e Calmúquia, e também foram afetados pela guerra da Rússia na Ucrânia. A intensa mobilização e os horrores da guerra causaram uma divisão na comunidade budista. Muitos se opõem publicamente e emigram ao exterior, enquanto outros vão à linha de frente, desafiando seus valores.
A religião mais pacífica em guerra
Em 2022, as autoridades da Buriácia e da Calmúquia, duas das três regiões russas com grandes populações budistas, realizaram o recrutamento militar de emergência de forma particularmente severa. Segundo ativistas buriates, nos três dias seguintes a 21 de setembro de 2022, cerca de 7.000 homens foram levados aos escritórios de alistamento militar na Buriácia, com o plano de mobilização do Ministério de Defesa definido em 300.000 pessoas para todo o país.
A Calmúquia tornou-se uma das poucas regiões da Rússia em que a cota de mobilização foi excedida. De acordo com vários relatórios, em vez do 1% exigido, 2% a 3% dos reservistas foram convocados.
Ao mesmo tempo, conforme uma análise conjunta da Mediazona e da BBC, pelo menos 1.500 habitantes da Buriácia, com uma população regional de 972.000 pessoas, morreram durante a guerra na Ucrânia. Em Tuva, com uma população de 338.000, pelo menos 618 soldados morreram.
Em 22 de setembro, um dia após o início do recrutamento militar, testemunhas começaram a postar vídeos de longas filas na fronteira entre a Rússia e a Mongólia.
Os primeiros a chegar foram residentes de assentamentos fronteiriços na Buriácia e em Tuva, regiões vizinhas à Mongólia. Mais tarde, Ulan Bator, capital do país, também se tornou um destino popular para os calmucos. Além da localização geográfica, isso se deve ao fato de os calmucos, buriates, tuvanos e outros fazerem parte dos povos mongóis que vivem na Rússia. Na Mongólia, eles são considerados “um dos seus” e são recebidos como se estivessem em casa, explicam os moradores locais.
É difícil avaliar a escala da emigração budista da Rússia no contexto da guerra. De acordo com dados fragmentados fornecidos pelo governo, trata-se de milhares de pessoas. Segundo autoridades da Mongólia, nos dez dias seguintes ao anúncio da mobilização, 6.200 russos entraram no país. Ao mesmo tempo, a Rússia informou que, em 2022, os russos quebraram o recorde de cinco anos de entradas na Mongólia e em vários outros países vizinhos.
Lamas na zona de combate: como líderes espirituais budistas apoiam a guerra na Ucrânia
Na zona de guerra ucraniana, o budismo não é representado apenas por budistas convocados na Buriácia, Tuva, Calmúquia e outras regiões. Em meados de 2023, por exemplo, a mídia estatal russa começou a informar ativamente sobre o único “lama militar” da Rússia, que foi à linha de frente para apoiar os soldados. Trata-se do Lama Bair Batomunkuev, da Buriácia, membro do conselho público do Ministério da Defesa da Rússia.
Em comunicados à imprensa, o Ministério da Defesa descreve o trabalho de Batomunkuev da seguinte forma: “Ele ajuda os militares a fortalecer sua fé, responder a questões espirituais complexas e a se mobilizar ao realizar tarefas para defender a pátria”.
No final de 2023, a mídia escreveu sobre a abertura de dois templos de campo, um ortodoxo e um budista, na “zona de operação militar especial”, que é como o governo russo permite que a guerra na Ucrânia seja chamada. “Os buriates não fugirão do campo de batalha se ainda houver uma iurte que tenha se tornado um dugan (templo)”, disse o líder da Sangha Tradicional Budista da Rússia, Pandito Khambo Lama Damba Ayusheev.
Geshe Yonten (Sergey Kirishov), presidente da Administração Espiritual Central dos Budistas, parabenizou Vladimir Putin após as eleições de março de 2024. Yonten não apoiou diretamente a guerra na Ucrânia, mas ficou satisfeito com o fato de o Estado russo ter, nos últimos anos, “dado atenção especial à preservação e ao fortalecimento de nossos valores espirituais e morais tradicionais” (a ideologia da Rússia de “preservar os valores tradicionais” desempenha um papel importante na justificativa do governo para a guerra na Ucrânia e as repressões internas).
Em conversa com a revista on-line People of Baikal, um soldado da Buriácia relembrou como padres ortodoxos e lamas budistas visitavam seu acampamento na zona de combate antes das batalhas.
I first went to the priests, and then to the lamas. Because at the front, you believe in everything, to be honest. Our lamas read prayers and told us to go to the enemy without anger and aggression. Well, like, you shoot at a Ukrainian soldier and don’t rejoice if you hit him, but feel compassion for him. Because that’s the Buddhist way.
Primeiro procurei os padres, depois os lamas. Porque na linha de frente, para ser honesto, você acredita em tudo. Os lamas liam orações e diziam para irmos ao encontro do inimigo sem raiva ou agressividade. Ou seja, você atira em um soldado ucraniano e não fica feliz em atingi-lo, mas sente compaixão por ele. É a filosofia budista.
No mesmo artigo, People of Baikal citou o Lama Oleg Namzhilov, da Buriácia:
Now we, ordinary Buddhists, find ourselves in a situation where we don’t decide anything. Our guys went to war out of necessity. Our task is to support them. If we turn away from them, say they are traitors and scum, then who are we after that?
Agora nós, budistas comuns, nos encontramos em uma situação em que não decidimos nada. Nossos rapazes foram à guerra por necessidade. É nosso dever apoiá-los. Se lhes dermos as costas, dissermos que são traidores e escória, quem seremos nós?
Baldan Bazarov, ex-abade do Kyren Datsan, na Buriácia, que deixou a Rússia e foi para os Estados Unidos em meados de 2022, por causa de suas crenças pacifistas, acredita que as opiniões dos lamas budistas influenciam a atitude dos budistas russos em relação à guerra. Aqueles que apoiam a ação militar, segundo ele, se beneficiam de alguma forma. Em uma conversa com a 7×7, Bazarov disse:
Let’s say the Khambo Lama cannot ask for anything personally [Buddhist monks are forbidden to use money], but, for example, he asked Putin in the Kremlin to build a datsan in Moscow, which Buddhists themselves have not been able to do since the last millennium. Some lamas went to the war in Ukraine to support their compatriots. They [the lamas] are given money for the trip, so they can go there and back, stay in a hotel in Moscow — these are also ‘perks’ for them. They show that they care about the state, and after that, they can ask for something for their datsan.
Digamos que o Khambo Lama não pode pedir nada pessoalmente, pois monges budistas são proibidos de usar dinheiro, mas, por exemplo, pediu a Putin no Kremlin que construísse um datsan (templo) em Moscou, o que os próprios budistas não conseguem fazer desde o último milênio. Alguns lamas foram à guerra na Ucrânia para apoiar seus compatriotas. Eles recebem dinheiro para a viagem, para que possam ir e voltar, além de ficar em um hotel em Moscou, o que também são “vantagens”. Os lamas demonstram que se preocupam com o país e, assim, podem pedir algo para o datsan.
“Ajudar soldados gera carma negativo”: budistas contra a guerra
Bazarov disse que não planejava ir aos Estados Unidos, e sim à Ucrânia, “para ajudar os ucranianos a defender suas casas, filhos e entes queridos”. “Eu queria ir à Ucrânia para dizer a verdade aos meus compatriotas, buriates e mongóis, que acreditaram na propaganda de Putin”, disse o lama.
Ele acredita que não há contradição entre o espírito pacifista da fé budista e o desejo de ir a um país em guerra:
War is a manifestation of samsara [the world of suffering, passions, and lack of freedom, inseparably linked with the repetitive cycle of births and deaths in Buddhism]. Buddha explained that one must distance oneself from any manifestations of samsara. But at the same time, if someone comes to kill you in your home, you must protect your family, your loved ones… But in our case, our relatives went to kill, and we have to support this for the sake of some ephemeral state. This is wrong.
A guerra é uma manifestação do samsara, o mundo do sofrimento, das paixões e da falta de liberdade, inseparavelmente ligado ao ciclo recorrente de nascimento e morte no budismo. Buda explicou que devemos nos distanciar de qualquer manifestação do samsara. Mas, ao mesmo tempo, se alguém vier matá-lo em sua casa, você deve proteger sua família, seus entes queridos. No nosso caso, nossos parentes foram matar, e ter que apoiar isso em nome de um Estado efêmero é errado.
No entanto, Bazarov afirma que ajudar as tropas russas mobilizadas não está de acordo com os princípios budistas:
People went to Ukraine to kill people, and any help to them is negative karma
As pessoas foram para a Ucrânia para matar outras pessoas, e qualquer apoio a elas gera carma negativo.
Talvez a declaração antiguerra mais marcante no budismo russo veio do presidente da Associação de Budistas da Calmúquia, Telo Tulku Rinpoche (Erdeni-Basan Ombadykov). Ele declarou, em setembro de 2022, em uma entrevista ao canal do YouTube “Alquimia da alma”:
The Ukrainian side is, of course, right. They are defending their country, their land, their truth, their Constitution, their people.
É claro que a Ucrânia está certa. Estão defendendo o país, a terra, os valores, a constituição e o povo.
Alguns meses depois, as autoridades russas incluíram Rinpoche, que é cidadão americano, na lista de agentes estrangeiros, e ele renunciou ao cargo de lama supremo da Calmúquia. Ao comentar sobre a renúncia, disse:
To the people of Kalmykia and all followers of Buddhism in these difficult times, I wish courage, resilience, and commitment to the ideals of compassion, love, and non-violence, on which our teaching of Buddha is based.
Ao povo da Calmúquia e a todos os seguidores do budismo nesse momento difícil, desejo coragem, resiliência e compromisso com os ideais de compaixão, amor e não violência, nos quais se baseiam os ensinamentos de Buda.
O Ministério de Assuntos Internos da Calmúquia revogou a permissão de residência de Rinpoche na Rússia.
Em fevereiro de 2023, Tenzin Choedak, abade do principal templo budista do país, foi nomeado o novo lama supremo da Calmúquia. Nada se sabe sobre suas opiniões políticas.