Este artigo faz parte do Undertones, o boletim informativo do Observatório de Mídia Cívica da Global Voices. Assine o Undertones.
Quando em Lisboa, imagens de navios e referências ao passado de Portugal como nação de navegadores são onipresentes. Caravelas, os icônicos navios portugueses usados nas primeiras viagens do país para o oeste africano e para o Brasil, são vistas na bandeira de Lisboa, em nomes de restaurantes, nas calçadas de paralelepípedos, e também em ônibus turísticos e no Monumento aos Descobrimentos, construído durante a ditadura de Salazar em 1958. O enorme monumento, que retrata exploradores, cartógrafos, navegadores e missionários, exemplifica como Portugal vem reescrevendo a história da colonização.
Acadêmicos e ativistas consideram que narrativas que emergiram durante a ditadura de Salazar persistem na sociedade portuguesa. Elas sustentam o orgulho por um passado expansionista e colonialista enquanto negam qualquer racismo internalizado.
Incidentes recentes despertaram debates sobre o racismo em Portugal. Na capital Lisboa, a primeira instalação artística que comemora a vida de africanos escravizados em Portugal está enfrentando resistência das autoridades locais, o que, em julho, gerou críticas ao prefeito da cidade, acusado de “boicotar” o evento. Em setembro, o presidente Marcelo Rebelo de Souza, durante uma visita ao Canadá, descreveu a identidade portuguesa com palavras que, para alguns, evocou o slogan de Salazar: “Futebol, Fado e Fátima” (se referindo ao esporte, ao estilo musical português conhecido como Fado, e à aparição da Virgem de Fátima). Além disso, em outubro, um ativista negro antirracista foi multado por difamar um alto proclamado neonazista.
“[Para muitos], a visão positiva do período colonial está internalizada”, diz o pesquisador do Observatório de Mídia Civil (Civic Media Observatory), Leon Ingelse. “As narrativas advindas da ditadura de Salazar parecem ter sido normalizadas em todo o espectro político”.
Para ativistas antirracistas, a narrativa comum é que: “Portugal não enfrenta seu passado colonial”
Narrativa: “Portugal não entrenta seu passado colonial“
How this narrative moves online
Joacine Katar Moreira, a Portuguese politician born in Guinea-Bissau, shared her discontent with the Portuguese pride around colonial history on X.
She criticizes how “every national reference is linked to Portugal’s colonial past”, like the words “Navegadoras” (the nickname of the national Portuguese women’s football team). She asks whether the Portuguese are proud of anything else.
Most comments are hateful and racist, Ingelse notes. The comments say that the author is racist for saying such a thing, that she should be thrown out of the country, and that she is ungrateful as Portugal ‘took her in’. Some comments underline their pride in the colonial past of Portugal.
This item received the positive score of +2 out of +3 on our civic media scorecard, because the message is anti-racist and important for the discussions about racism in Portugal. However, there could have been more explanation and background information.
Como essa narrativa se dá on-line
Joacine Katar Moreira, política portuguesa nascida em Guiné-Bissau, compartilhou no X o seu descontentamento com o orgulho português sobre a história colonial do país.
Ela criticou como ‘todo tipo de referência nacional tem de estar associada ao passado colonial de Portugal’. Um exemplo é o time nacional de futebol feminino do país, nomeado de ‘Navegadoras‘. A política se pergunta se os portugueses não se orgulham de mais nada, afinal.
Os comentários que o tuíte recebeu foram, em sua maioria, de discurso de ódio e racistas, observa Leon Ingelse. Alguns deles chamaram a própria autora de racista, outros disseram que ela deveria ser expulsa do país, e, ainda, que ela é ingrata já que Portugal ‘a acolheu’. Além disso, alguns dos comentários enfatizavam o orgulho do passado colonial português.
Esse tuíte recebeu a nota de +2 ou +3 no nosso cartão de pontuação de mídia cívica, porque a mensagem é antirracista e importante para a discussão sobre Racismo em Portugal. Porém, deveria incluir mais explicação e informações básicas.
Joacine Katar Moreira menciona o “luso-tropicalismo”, um conceito adotado pela ditadura de Salazar para evocar o orgulho da identidade histórica de Portugal e defender a manutenção de suas colônias no continente africano. Em vista de, depois da segunda guerra mundial, Portugal estar sofrendo com pressões para responder por suas narrativas imperiais e afrouxar seu controle sobre seus territórios no exterior.
Portugal desempenhou um papel preponderante na história européia de colonização e tráfico humano. No século 15, Portugal lançou e dominou o tráfico transatlântico de escravos, capturando e levando cerca de 6 milhões de africanos para o Brasil, um número maior do que o de qualquer outra nação européia. O Brasil se tornou independente de Portugal em 1822, enquanto Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Angola, e Moçambique obtiveram a liberdade em 1974 e 1975 depois de guerras violentas.
Depois de duas décadas no poder, Salazar começou a abraçar o conceito de luso-tropicalismo, cunhado pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freyre. Antes disso, políticos portugueses e administradores coloniais pensavam, com grande frequência, no colonialismo como uma missão dos brancos para com “raças inferiores”. Era hora de uma revisão histórica acontecer.
O luso-tropicalismo afirma que o império português era mais humano que outros colonizadores europeus, especialmente os britânicos. Freyre e outros contemporâneos argumentavam que os portugueses eram inerentemente mais amigáveis, menos violentos e mais dispostos a se misturar com a população local.
Rui Braga, um pesquisador no Tamera – Centro de Investigação e Educação para Paz em Portugal, escreveu em 2020 que “Em 1950, num tempo em que os impérios colonialistas estavam colapsando em todo o mundo, o regime de Salazar se deparou com a necessidade de justificar sua presença colonial na África. Para isso, a narrativa de luso-tropicalismo foi amplificada para um senso imaginário de Portugal como uma nação multiracial, pluricontinental, com uma capacidade inata para uma colonização amigável e não violenta e uma atitude liberal de relações interraciais fossem elas sexuais ou matrimoniais”.
O jeito de Salazar implementar esse novo pensamento foi por meio da “supressão das realidades do racismo e do colonialismo pela propaganda estatal concretizada em estátuas, monumentos e livros de história”. Qualquer voz que se opusesse a essa nova identidade nacional era censurada.
Luso-tropicalism at Eurovision
In 1989, the Portuguese pop rock band Da Vinci sang “Conquistador” at the Eurovision contest. The song’s lyrics define luso-tropicalism in a nutshell.
Luso-tropicalismo no Festival Eurovisão da Canção
Em 1989, a banda portuguesa de pop rock, Da Vinci, cantou ‘Conquistador‘ no concurso da Eurovisão. A letra da música define o luso-tropicalismo em poucas palavras.
Rui Braga, e outros acadêmicos, como a antropóloga Cristiana Bastos, afirmam que essa narrativa continua viva nos dias de hoje. “Era de se esperar que o luso-tropicalismo fosse agora uma curiosidade do passado. Mas, ele segue reaparecendo”, ela escreve. Em 2021, o Conselho da Europa instou Portugal a confrontar seu passado colonial e o tráfico de escravos como uma forma de contribuir para a luta contra o racismo no presente.
A narrativa de que “Portugal era um bom colonizador” omite a crueldade da escravidão, tortura, exploração e do genocídio que foram infligidos por Portugal durante seu império colonial.
Narrativa: “Portugal foi um bom colonizador ”
“O luso-tropicalismo não só mascara a realidade amarga e dura do colonialismo, seja no passado ou presente, mas continua a prover uma linguagem, uma desculpa apelativa, que faz com que o sujeito se sinta bem e especial”, escreve a antropóloga, Cristiana Bastos.
How this narrative is alive online today
Five months ago, an anonymous Redditor published a meme on the thread “shitposting” (which has 2.6 million followers) comparing Portuguese and British styles of colonization.
The left image shows a famous Brazilian cartoon depicting an Indigenous woman “Kuruminha” in love with a Portuguese colonizer amidst a tropical backdrop. The image on the right recalls Iron Maiden’s cover of the song “The Trooper” depicting an inhumane British colonizer enacting genocide.
The post was upvoted 11 thousand times, but it is unclear whether the traction it gained was mainly in Portugal or abroad. The comments are a mixed bag of racist remarks, criticisms of “whitewashing”, and extensive discussions on “who was a better colonizer.”
Esse post no Reddit recebeu a pontuação de -3 on our civic scorecard, the lowest ranking possible, as the meme spreads misinformation to a wide audience about the Portuguese colonization being enjoyed by the local and enslaved population.
Como essa narrativa se sustenta nos dias de hoje
Cinco meses atrás, um usuário anônimo do Reddit, publicou um meme na thread ‘postandobosta’ (que tinha 2,6 milhões de seguidores) comparando os estilos de colonização inglês e português.
A imagem à esquerda mostra um desenho brasileiro que representa uma mulher indígena ‘Kuruminha‘ apaixonada por um colonizador português com um cenário tropical de pano de fundo. Já a imagem à direita lembra a canção ‘The Trooper’ da banda Iron Maiden, retratando um colonizador britânico desumano praticando genocídio.
Essa publicação foi curtida 11 mil vezes, mas não fica claro se essa resposta positiva foi majoritariamente portuguesa ou não. Os comentários são uma mistura de comentários racistas, criticas ao ‘embranquecimento’, e discussões extensas sobre ‘quem foi o melhor colonizador’.
Essa publicação no Reddit recebeu a nota -3 no nosso cartão de pontuação de mídia cívica, o mais baixo possível no ranking, já que o meme espalha desinformação para uma grande audiência ao afirmar que a colonização portuguesa era apreciada pela população indígena.
Essa narrativa leva a duas conclusões: “Portugal foi um bom colonizador, logo, os portugueses não são racistas” e “o racismo é uma questão política trazida pela esquerda“. Essa ultima narrativa tem estado cada vez mais presente com o crescimento de movimentos de extrema direita, representados por partidos como Chega! e Partido Ergue-te, que vem conquistando terreno em Portugal. Em 2020, o Chega até organizou uma demonstração reivindicando a ideia de que Portugal não é racista.
Outros partidos políticos, porém, pensam diferente. Em junho desse ano, o partido de esquerda PAN (Pessoas, Animais e Natureza) propôs um projeto de lei para estudar “as causas e consequências do racismo institucional” em Portugal. Com cinco partidos a favor, dois contra (incluindo o Chega e o Partido Socialista de centro-esquerda, que é maioria líder no país), e uma abstenção, a proposta não foi em frente. Chega tuitou sobre essa iniciativa com a narrativa de que o racismo é uma questão que está sendo politizada pela esquerda.
O próximo ano será marcado pelo aniversário de 50 anos da Revolução dos Cravos que pôs fim à ditadura e às guerras coloniais de Portugal. No entanto, para muitos, as narrativas do passado persistem.