Quando a Câmara dos Representantes dos EUA aprovou a legislação que obrigou a ByteDance a vender o TikTok, um aplicativo popular de criação e compartilhamento de vídeos, para uma empresa local, sob a ameaça de banimento do aplicativo no país com a justificativa de preocupação com a segurança nacional, o governo chinês criticou a medida como um “ato intimidatório”.
Por ironia, o TikTok, assim como outras redes sociais, também é banido na China. Há, no entanto, uma versão feita sob medida para o público local, o Douyin, para cumprir com as severas regras de censura do governo. De fato, o TikTok não é um fato isolado: o app de mensagens do Alibaba, Ding Talk, também é banido na china; a sua versão local chama-se Ding Ding.
No relatório recente sobre a censura chinesa na App Store da Apple, “Isolation by Design”, conduzido pelo projeto App Censorship do grupo radicado na China GreatFire, indica que mais de 605 dos 100 aplicativos mais populares de todo o mundo não podem ser acessados no país. Entre os afetados, estão: Google Maps, YouTube, Instagram, WhatsApp, Telegram, Facebook, Messenger e Twitter [NT: agora, X].
Na verdade, entre as 10 aplicações mais baixadas em todo o mundo, 5 estão indisponíveis, e o resto tem o seu acesso bloqueado na China.
Tanto a censura quanto as versões locais dos aplicativos na China resultaram num “isolamento particular” entre os usuários chineses do sistema iOS e o ecossistema de aplicativos global. Embora a China tenha desencorajado a quebra de relações comerciais com o Ocidente, o sistema de censura do país foi projetado para isolar a nação do resto do mundo, como destacado pelos pesquisadores.
Onde a censura mais incide: jogos
A pesquisa aponta que, em março de 2023, 11.026 de um total de 40.049 aplicativos não estavam disponíveis na App Store chinesa. A taxa de indisponibilidade foi de 27,53%, a mais alta entre as 175 App Stores regionais administradas pela Apple, de acordo com o relatório App Censorship.
As dez categorias mais censuradas são: 1) jogos (5.532); 2) utilitários, incluindo VPNs (501); 3) educação (355); 4) produtividade (326); 5) redes sociais (324); 6) entretenimento (302); 7) leitura (283); 8) estilo de vida (234); 9) notícias (205); e 10) finanças (193).
Os jogos são o tipo mais censurado, muito provavelmente porque há mais apps de jogos do que qualquer outro tipo na App Store. Além disso, as autoridades chinesas exigem uma verificação de identidade das contas de usuários de jogos virtuais desde 2007 como parte de seu programa contra o vício em jogos. O governo chinês prescreveu, ainda, em 2016, que todos os jogos devem passar por um processo de licenciamento e aprovação antes de ficarem disponíveis na China; e, desde novembro de 2019, também há uma política de proibição do acesso de menores de 18 anos a jogos durante a noite dos dias de semana.
Todas essas políticas acarretam uma dificuldade extrema para a entrada de aplicações de jogos estrangeiros nas lojas de apps chinesas, apesar do crescimento significativo do mercado local de jogos, com projeções que indicam um aumento de US$ 66,13 bilhões em 2024 para US$ 95,51 bilhões em 2029. Por outro lado, segundo a China Briefing, uma agência de notícias de negócios chinesa, embora os jogos estrangeiros enfrentem barreiras para entrar no mercado chinês, os jogos desenvolvidos lá são responsáveis por 47% da receita global de jogos mobile.
Oito categorias sob a mira da censura
Fora os jogos, o relatório identificou oito categorias ameaçadas na lista de apps banidos.
- Virtual private network – VPN: 240 aplicativos indisponíveis, incluindo Lantern VPN, ProtonVPN, ExpressVPN, Nord VPN.
As VPNs são redes virtuais privadas que criptografam e redirecionam o tráfego de internet, assim sendo usadas para uma comunicação mais segura, uma vez que não é possível localizar o endereço original do usuário; isso significa que também podem ser utilizadas para contornar a censura da internet, já que criam um caminho alternativo que permite o acesso a conteúdos banidos localmente. Em 2017, o Ministério da Indústria e da Tecnologia da Informação da China (Ministry of Industry and Information Technology, MIIT) aprovou uma regulamentação que exige aprovação do governo para o funcionamento dos serviços de VPN no país, e a Apple removeu 674 aplicativos de VPN da App Store local.
- Privacidade e segurança digital: 29, incluindo Signal, ProtonMail e DuckDuckGo.
Apps nesta categoria propõem serviços de proteção de privacidade, como o bloqueio de anúncios, navegação segura, proteção contra vírus, comunicação criptografada, entre outros.
- LGBTQ+ e relacionamentos: 67, entre eles Hinge, Adam4Adam, weBelong e Grindr.
Esta categoria compreende redes sociais e aplicativos de relacionamento, mas também de livros e jogos, com conteúdo LGBTQ+.
Apesar de a homossexualidade ter sido descriminalizada na China no ano de 1997, todo conteúdo que apresente relações entre pessoas do mesmo sexo ainda é considerado “vulgar” pelos censores. Desde a aprovação da Lei de Cibersegurança em 2018, o combate a conteúdo LGBTQ+ se intensificou nas plataformas de redes sociais. Em 2021, o conglomerado chinês Tencent, um verdadeiro gigante das redes sociais no país, removeu centenas de grupos LGBTQ+ no aplicativo de rede social e pagamentos WeChat. Todavia, alguns apps populares de temática LGBTQ+, a exemplo do aplicativo chinês Blued, ainda se encontram disponíveis.
- Notícias, mídia e informação: 170, entre os quais os apps NYTimes, BBC News e Reuters.
Além de portais de notícias, esta categoria também inclui leitores de feeds RSS e podcasts. O banimento de apps de notícias e informações é uma política da Grande Firewall da China (Great Firewall of China, GFW) — uma referência à Grande Muralha da China —, um sistema de censura que restringe o acesso dos cidadãos chineses a dezenas de milhares de páginas.
- Redes sociais e comunicação: 96, incluindo Skype, LinkedIn, Viber, Damus e Line.
O Twitter e o Facebook aparecem na App Store, mas estão bloqueados pela GFW. O governo chinês exige a cooperação com as leis de censura locais por parte dos provedores de serviços de redes sociais em 2018, o LinkedIn tentou permanecer no mercado chinês ao acatar as leis locais de remoção de conteúdo ilegal segundo a Lei de Cibersegurança promulgada no mesmo ano. Três anos depois, a empresa pôs fim à plataforma, substituindo-a pelo InCareer, que fornecia apenas informações sobre vagas de emprego, sem mais funcionalidades de rede social. Já no ano passado, o InCareer foi desativado, e a empresa encerrou suas operações na China por completo.
Em 19 de abril de 2024, a Apple removeu os aplicativos WhatsApp e Threads da App Store chinesa, sob a justificativa de preocupação com a segurança nacional. O enquadramento jurídico da China inviabiliza a entrada de aplicações estrangeiras de redes sociais no mercado chinês.
- Tibete e budismo: 41, com nomes como Himalaya Lib e MonlamGrandTibetanDictionary.
Os pesquisadores apontaram uma razão para a censura:
Any direct or indirect connection to the Dalai Lama is sufficient reason for an app to be banned from the App Store. This was the case with the MonlamGrandTibetanDictionary app. Initially, the app was available upon its release but was taken down between June and September 2022, shortly after the Dalai Lama inaugurated the new Monlam Grand Tibetan Dictionary, the source of the app’s content.
Qualquer conexão direta ou indireta com o Dalai Lama é motivo suficiente para que um aplicativo seja banido da App Store. Esse foi o caso do MonlamGrandTibetanDictionary. A princípio, ele ficou disponível logo após seu lançamento, mas foi removido entre junho e setembro de 2022, pouco depois de o Dalai Lama anunciar o novo Monlam Grand Tibetan Dictionary, a base para o conteúdo da aplicação.
- Uigur: 72, incluindo os aplicativos RFA Uyghur, Hayatnuri, Awazliq Kitap e UYGHUR MAN.
Dentro dessa categoria, aplicações de livros e de cunho educativo relacionados ao Alcorão estão censuradas, conforme apontado pela pesquisa.
- Religião: 144, entre eles: Bible App, da Olive Tree, Quran Majeed, TORAH e JW Library.
Os pesquisadores também apontaram que muitos dos apps banidos pertencem à categoria “leitura”, visto que a ausência de um código ISBN chinês poderia resultar na remoção na App Store.
Falta de compromisso da Apple com os direitos humanos
O grupo criticou a falta de responsabilidade e de transparência da Apple na sua prática de censura na China, uma vez que, muitas vezes, a empresa não especificava que conteúdo presente nos apps violava as diretrizes ou a lei chinesa. Além disso, o processo de recurso dificultou para os programadores o processo de revisão da decisão.
A cumplicidade da empresa no apoio à censura do governo chinês, que viola os direitos individuais à liberdade de expressão e à proteção da privacidade, violou a política de direitos humanos da própria Apple e o princípio orientador das Nações Unidas para os direitos humanos nas empresas. Os pesquisadores salientaram que a anuência da gigante Apple com os pedidos do governo chinês conduziria a “uma tendência crescente de isolamento digital dos utilizadores chineses do sistema iOS, criando ainda mais barreiras para os jornalistas estrangeiros e outros membros da sociedade civil”.
Com isso, o grupo apelou à Apple para que reforçasse as suas práticas de transparência, revelando pormenores sobre os pedidos de remoção por parte do governo chinês e o seu próprio processo de revisão, e para que reforçasse o seu compromisso com os direitos humanos, contestando pedidos arbitrários de remoção, bem como recorreu aos governos e legisladores para que examinassem as práticas da Apple e promulgassem leis para garantir a aplicação de princípios globais digitais e de direitos humanos.