Prezada esquerda internacional: pare de dizer aos venezuelanos o que devem pensar

 

Ilustração por Leonardo González (2014). Usado e editado com permissão.

Nota da autora: este texto está escrito na primeira pessoa, mas não é uma experiência individual e sim resultado de várias conversas com companheiros acadêmicos, ativistas e amigos queridos que vivem fora da Venezuela.

Falar sobre a Venezuela é impossível; mas é igualmente impossível não falar sobre a Venezuela. Para aqueles que, como eu, fazem parte da imensa diáspora composta hoje de mais de 8 milhões de venezuelanos no exterior, uma nova crise significa um novo ciclo marcado por confusão, por termos de presenciar de longe a complexidade do nosso conflito e por debates geopolíticos impraticáveis, tanto dentro quanto fora do plano virtual.

Estive fora da Venezuela por 15 anos e, durante este tempo, a crise na minha terra natal se provou uma presença constante e assustadora. Novamente, enquanto a Venezula ocupa os noticiários, a comunidade internacional continua, em grande parte, sem entender a complexidade e a intensidade de toda a situação.

Enquanto isso, os venezuelanos observam a crise se desenrolar à distância, lidando com a impotência da culpa de verem as suas famílias e entes queridos sofrendo sem poderem fazer nada de significativo para ajudar. A maioria de nós tenta ajudar financeiramente, ou mesmo de outras maneiras, os nossos que permanecem no país. Estamos no estrangeiro, mas nunca ausentes.

E isso sem contar as inúmeras discussões com amigos, colegas e desconhecidos que tentam nos explicar por que a Venezuela está passando por tudo isto. As narrativas internacionais, ditadas por vozes distantes das nossas realidades às vezes incrédulas, nos obrigam a ficar num estado perpétuo de ter de educar e explicar para as pessoas, e isso frequentemente sem resultado nenhum, ao mesmo tempo em que precisamos de tentar lutar de igual para igual na competição de narrativas herdada da Guerra Fria.

“Venezuelasplaining” e interpretações erradas da esquerda global

Ao longo dos anos, encontrei muitos indivíduos da esquerda internacional que se consideram aliados e defensores dos direitos humanos. Contudo, o entendimento deles sobre a situação venezuelana era muitas vezes superficial e equivocado. O “venezuelasplaining” acontece quando alguém, sob a sua perspectiva de fora, tenta nos explicar as particularidades da nossa própria crise, não raro ignorando ou simplificando demais as duras realidades que enfrentamos.

Figuras proeminentes e intelectuais, muitas das quais leio e admiro, têm elogiado a Revolução Bolivariana, o nome que Hugo Chávez deu ao seu projeto político, ao longo dos anos como uma oposição contra o imperialismo dos EUA e contra a expansão capitalista. Apesar da intenção compreensível de defender um movimento latino-americano, o silêncio deles após anos de violações abomináveis dos direitos humanos na Venezuela é doloroso. Celebrar a revolução sem admitir o sofrimento causado por ela revela uma cegueira seletiva que vai de encontro aos mesmos princípios que dizem ter.

Perdi as contas de quantos vídeos, artigos e pessoas defendendo ferrenhamente a tese de que a situação atual da Venezuela é causada pelas sanções impostas pelos Estados Unidos eu já vi por aí. A situação, claro, é um tanto complexa, e não são todos que concordam sobre a utilidade dessas sanções. O que posso dizer é que a economia venezuelana já sofria bastante antes delas; e que há vários outros aspectos que também merecem destaque, dos quais falarei logo abaixo.

A crise recorrente 

A Venezuela, ao contrário de seus vizinhos, continua a criminalizar o aborto; os direitos de pessoas LGBTQ+ estão num impasse. A legalização de casamentos entre pessoas do mesmo sexo está fora de cogitação. Estes são apenas alguns dos aspectos que parecem escapar àqueles que defendem o que acontece na Venezuela sob a bandeira da política progressista. E isso está longe de ser a história completa.

Em fevereiro de 2018, o Tribunal Penal Internacional iniciou uma análise preliminar sobre possíveis crimes contra a humanidade cometidos pelas autoridades venezuelanas desde pelo menos abril de 2017. A cada novo capítulo da nossa crise política, a lista de pessoas detidas, torturadas e assassinadas pelas autoridades só aumenta. Casas em várias cidades do país foram transformadas em centros de tortura, expandindo, assim, as práticas já conhecidas que ocorrem nas sedes de inteligência, popularmente conhecidas como El Helicoide.

Uma publicação compartilhada por Blanca Haddad (@blancahaddadstudio)

— Eu sofri tortura.
— Mas de quem foi: da esquerda ou da direita?

Ao mesmo tempo em que escrevo estas palavras, há gente tendo seus dados pessoais expostos, sendo detida arbitrariamente e desaparecendo do mapa. Aqueles que costumam ser ativos nas redes sociais começaram a ser mais reservados ao compartilharem notícias com contatos de fora, por medo de retaliação. Quem continua a partilhar informações publicamente contou que certos defensores dos direitos humanos de dentro e de fora do país tiveram os seus passaportes cancelados, um novo episódio numa longa série de controle de identidade que representa torna a vida e a circulação dos cidadãos venezuelanos num túnel sombrio.

Um dos aspectos mais angustiantes da situação atual é a “Operação Toc, Toc”, uma iniciativa do Estado que envolve buscas e prisões domiciliares de dissidentes políticos e que incentiva a denúncia. Do alto do púlpito, porta-vozes do governo ameaçam críticos com prisões, escassez, regulamentações nas redes sociais e desumanizam qualquer um que se oponha a eles. Pode parecer difícil de entender, mas o discurso em si faz parte desse sistema de abusos.

A maioria das vítimas nas manifestações são jovens que foram às ruas movidos pela desesperança, protestando contra um regime que não parece oferecer futuro nenhum. Testemunhas eleitorais se escondem aos montes, já que muitas delas foram presas ou tiveram mandados expedidos contra si. A lista de vítimas segue crescendo e as suas histórias frequentemente se perdem no discurso global, apagadas à medida que acadêmicos, intelectuais e líderes políticos perpetuam a narrativa “direita versus esquerda”, colocando o governo como parte da nobre oposição ao imperialismo dos EUA e qualquer adversário como “cúmplice da extrema-direita”. Quanto a mim, considero-me incapaz de ver uma ideologia que vá além de ficar para sempre no poder.

A verdadeira história pouco tem a ver com essa narrativa reducionista. Cada vídeo, comentário e argumento que defende o governo venezuelano e desconsidera as suas violações de direitos humanos ao longo dos anos desconsidera um imenso sofrimento e só perpetua propaganda ideológica. A falta de nuances é enfurecedora, uma vez que a natureza caótica do conflito e as ideias ao seu redor continuam nos empurrando para frente e para trás, impondo-nos posições com que não escolhemos compactuar, confundindo valores e ideologias com alianças, dificultando qualquer debate produtivo, dada a ampla adesão ao discurso que esvazia palavras e conceitos de seu significado de forma implacável.

Neocolonialismo é tentar explicar para mim a minha própria história. Neocolonialismo é esperar que eu seja cobaia das suas utopias.

Há mais de 15 anos, acadêmicos, autores, jornalistas, ativistas, pesquisadores e outros especialistas venezuelanos, com cada crise, cada manchete e cada conversa com conhecidos curiosos, se veem na posição impossível de explicar tudo em termos que os outros possam entender. Tudo isso para descobrir, ao final, que, nas palavras de um grande amigo meu, “passamos décadas falando com as paredes”.

Eu não consigo enfatizar mais quão doloroso é isso.

Todas essas táticas se escondem atrás de um discurso de justiça social que muitos usuários de redes sociais aceitam com um único clique, ignorando o que poderiam facilmente perceber se escutassem o que aqueles que viveram esses abusos e repressões têm a dizer. Abusam de conceitos como o de objetividade para afirmar que é importante ver “os dois lados”, desconsiderando que essa história é a de um Estado que parece ser o principal adversário de seu próprio povo.

E, pior ainda: essas narrativas também empurram os venezuelanos para polarizações que não condizem com a realidade. Por mais difícil que seja ver a esquerda global falando sobre algo que não conhece, também é doloroso ver venezuelanos traumatizados pelo chavismo que se alinham a grupos conservadores e antidireitos, profundamente relutantes em ouvir qualquer narrativa que remotamente se assemelhe à do chavismo, tornando-os vulneráveis a leituras igualmente superficiais do conflito.

Olhar para o passado para olhar para o futuro

Um mês atrás, eu voltei para Venezuela pela primeira vez em tantos anos. Voltei para as incríveis montanhas e para as imagens da minha juventude, mas a visita teve um sabor agridoce. Meu pai, gravemente doente, viu mais de um dos seus filhos em pessoa ao mesmo tempo pela primeira vez em muito, muito tempo. Embora passasse pelo período mais desafiador de seus 80 anos de vida em meio às injeções, aos acessos venosos, aos diagnósticos imprevisíveis e estando numa maca na sua própria casa, onde o ritmo dos cuidados que lhe dávamos se definia pelas faltas de luz e água, ele me contou que aqueles também eram os seus dias mais felizes, pois estávamos todos juntos.

E isso é algo que fez muitos venezuelanos votarem. Eles recorreram às urnas apesar das grandes limitações, dizendo não só que queriam mudanças, mas que também queriam os seus entes queridos de volta. Em seus primórdios, o chavismo de fato representava todos aqueles que não se viam com poder suficiente para serem uma prioridade para o governo. Esses dias agora parecem muito distantes. O país está exausto, e há gente que se refere à Venezuela “de outrora”, sobre cuja natureza não creio que estejamos todos de acordo.

É claro, fico surpresa com a inacreditável resiliência de todos que votaram e depois foram às ruas protestar não obstante o medo, como também com o nível da organização entre civis, jornalistas e defensores dos direitos humanos de dentro e fora do país. Os vários terceiros-lugares no âmbito digital criados para espalhar esperança, solidariedade e ferramentas e mecanismos com os quais operar são, para mim, um fenômeno que observo com paixão; e são algo que me acalma e me permite continuar ativa e à disposição daqueles que necessitam de mim.

A luta para contar as nossas próprias histórias é uma luta contra o apagamento. A resistência contra nos removerem da nossa própria narrativa. Além disso, uma resistência contra as simplificações impostas por narrativas externas, por máscaras de hoje que escondem forças de ontem, encorajando o silenciamento de quem já sofreu o suficiente. Àqueles animados um pouco demais para serem chamados de aliados, só lhes peço uma coisa: ouçam antes de falar. Preparem-se para o desconforto, aprendam a rejeitar heróis e aceitar que há realidades mais complexas do que o parecem e que aqueles que as vivem lhes passarão uma imagem mais fiel delas do que discursos políticos ultrapassados.

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