Este relato de Saleh Jamal Safi foi inicialmente publicado em We Are Not Numbers, em 12 de janeiro de 2024, como uma narrativa pessoal em meio ao incessante bombardeio de Gaza por parte de Israel. A história não está editada, sendo apresentada como um depoimento sem filtros de uma testemunha de guerra e publicada como parte de um acordo de compartilhamento de conteúdos.
Monstros gigantes atacaram uma vila e uma mãe ficou com as pernas imobilizadas sob os escombros de sua casa destruída. Incapaz de caminhar, ordenou ao seu filho que a deixasse e fugisse com sua irmã para se salvar.
“Eren, pegue a Mikasa e fuja!”
“Eu quero fazer isso, então sai logo daí!”, disse Eren.
“Minhas pernas estão quebradas, mesmo que consigam me tirar daqui, eu não vou ser capaz de fugir correndo com vocês. Você entendeu?”
“Então eu vou te carregar!”, respondeu Eren.
“Por que você nunca escuta o que a sua mãe fala?! Me escuta pelo menos uma vez!”, disse a mãe.
Neste exato momento, um vizinho adulto chegou e, percebendo que não poderia salvar a mãe a tempo, agarrou as duas crianças e as levou dali. A mãe tapou a própria boca para não gritar e pedir que não a abandonassem.
Esta cena dolorosa é do primeiro episódio da popular série de anime japonesa, baseada no mangá Attack on Titan.
Poderia acontecer na realidade? Definitivamente não. Ao menos foi o que pensei quando vi a série pela primeira vez, alguns meses antes de 7 de outubro. Era muito surreal.
Muito surreal, mas real
Em 29 de novembro de 2023 foi o 53º dia do genocídio em Gaza pela ocupação israelense, sendo o quarto dia de um breve cessar-fogo. Estava no carro, dividindo carona com um desconhecido enquanto voltava para casa, em Rafah. Vinha de Khan Younis, onde fui comprar alguns itens que precisava, mas não eram vendidos nas proximidades.
Acontece que o homem do carro era um sobrevivente do massacre da rua Al-Hoja, ocorrido menos de duas semanas antes, em 18 de novembro. Ele me contou como foi horrível e assustadora a situação.
“Estávamos evacuando”, explicou. Mas as forças israelenses não permitiram que ele levasse nada, nem comida nem água, apenas seus documentos de identidade. “Caminhamos pelas ruas, desarmados”, quando a multidão foi atingida por um ataque aéreo israelense. “Muitas pessoas se tornaram mártires. Outras ficaram feridas. Algumas sobreviveram, mas as sobreviventes não puderam ajudar a maioria das feridas: muitas tinham perdido a capacidade de andar. Ninguém poderia ajudá-las, mesmo que tentassem”. Continuou:
An injured man gave his child to his wife, asking her to leave him behind so the two could make it out of there. The wife froze; maybe she was contemplating how she would look into the eyes of her children after leaving their father to die.
Um homem ferido entregou o filho à esposa, pedindo que ela o deixasse para que ambos pudessem sair dali. A esposa congelou; talvez ela estivesse pensando em como olharia nos olhos dos filhos depois de deixar o pai para morrer.
Isso me fez pensar que aquela cena terrível de Attack on Titan tinha se tornado realidade. Mas eu continuava sem acreditar que algo assim poderia acontecer comigo.
A história desse homem não terminou aí.
“Meu irmão e o filho pequeno sobreviveram e ficamos gratos por isso”, disse. “Sentimos uma mistura de felicidade, tristeza e confusão com culpa. Felizes por sobreviver e culpados por estarmos felizes enquanto outros tinham perdido familiares e partes do próprio corpo. Não demorou para que todos os nossos sentimentos se tornassem ruins”.
Ele continuou explicando que chegaram a um posto de controle da ocupação israelense onde os guardas verificaram seus documentos de identidade, a fim de se certificar de que ninguém estava relacionado ao Hamas. Então um soldado disse: “Vem aqui, cabra.”
He was calling my brother, who was holding his son. We were confused, wondering what was going on. My brother went to see what he wanted, which is when the soldier spit this insulting, savage sentence: ‘Goat, where do you think you’re taking your son? Get in the jeep because you’re going to prison.’ My brother didn’t even have the right to know why he was being arrested.
Ele chamou meu irmão, que estava com o filho nos braços. Ficamos confusos, imaginando o que estava acontecendo. Meu irmão foi ver o que ele queria e foi então que o soldado soltou essa frase insultuosa e selvagem: ‘Cabra, para onde pensa que está levando seu filho? Sobe no jipe, porque você vai para a cadeia’. Meu irmão sequer tinha o direito de saber por que estava sendo preso.
“Os soldados o fizeram tirar a roupa e ficar apenas com a roupa íntima. Como uma criança se sentiria ao observar como tratavam o próprio pai?
Um documentário sobre nossas vidas
Fui testemunha de outras coisas horríveis que me fazem sentir como se Attack on Titan fosse um documentário de nossas vidas.
Em 6 de dezembro de 2023, estava discutindo com minhas irmãs sobre comida. Tínhamos nos mudado para a casa da minha avó e perto dali havia um vendedor de faláfel. A única solução era comprar faláfel para saciar nosso apetite, mas quando fui lá eu encontrei uma fila muito grande. Fiquei esperando minha vez. Ao meu lado, havia uma menina de aproximadamente 10 de anos com sua irmãzinha.
De repente, alguns homens saíram de um beco próximo ao vendedor de faláfel. Eles carregavam uma criança com a cara coberta de sangue. Vi muitos mártires, mas aquele dia era diferente. Nunca tinha estado tão perto de um.
Não aguentei a cena. Tinha vontade de vomitar e me sentia muito mal. Lamentei esse sentimento que não conseguia controlar; como poderia me sentir assim quando estava vendo um rosto tão angelical?
Enquanto isso, a menina de 10 anos dizia para a irmã não olhar. Tentei distrai-las, ou talvez estivesse distraindo a mim mesmo, mas não funcionou. A menina me perguntou se eu tinha visto a criança. Acho que ela leu meu rosto, e ele definitivamente disse que sim.
Ela assentiu quando fiz a mesma pergunta, depois perguntou: “É tão pequena; ela será feliz no céu, não é?”
Eu disse que sim, mas não pude dizer mais nada.
Minutos depois, retiraram dos escombros outra criança e um homem que foram assassinados no mesmo atentado. Minhas emoções estavam bloqueadas e meus sentimentos, destruídos.