
Imagem de Aladdin, do filme “Aladdin”, da Disney. Captura de tela do trailer oficial do canal do YouTube do Walt Disney Studios. Uso justo.
Este artigo, escrito por Zizi Shusha, foi originalmente publicado na Raseef22, no dia 29 de janeiro de 2024. Uma versão editada é republicada na Global Voices sob um acordo de compartilhamento de conteúdo.
A atual guerra de Israel contra Gaza pôs em evidência uma série de questões complexas, que provavelmente persistirão durante anos. Entre elas está a imagem estereotipada do Oriente e do povo árabe na mente dos ocidentais.
Em seu artigo da revista Time “Gaza e o fim da fantasia ocidental”, Bruno Maçães, ex-secretário de Estado dos Assuntos Europeus em Portugal, analisa a guerra contra o povo de Gaza por meio de uma perspective política e cultural. Em conclusão, ele desconstrói a imagem que o Ocidente tem sobre os árabes e o Oriente, afirmando que ela já não existe.
O que é essa fantasia ocidental, e que perigo ela representa para os árabes? Para responder a tal pergunta, é necessário explorar a ideia do “outro”.
Antes da formação do continente europeu, a ideia do outro não existia da forma como a entendemos hoje. Segundo o intelectual palestino Edward Said, em seu livro Orientalismo, os pensadores ocidentais acreditavam que a cultura do Ocidente ganharia mais poder e clareza de identidade ao posicionar-se contra os árabes e o Oriente. Nesse sentido, o povo árabe foi particularmente enfatizado como o outro.
Se o poder do Ocidente deriva do confronto com o outro, é de seu interesse enfraquecer, colonizar, distorcer e falsificar a história e as crenças do outro, acabando por desumanizá-lo.
As fantasias ocidentais têm contribuído de forma crucial para a distorção e falsificação da identidade e da cultura árabes. Hollywood desempenhou o papel mais perigoso na consolidação de uma imagem horrível dos árabes. Aqui, exploramos as várias representações desse povo no cinema americano para revelar as diferentes maneiras como eles têm sido desumanizados pelo Ocidente.

Jack Shaheen foi um escritor e palestrante árabe-americano especializado em combater estereótipos raciais e étnicos. Captura de tela do documentário “Filmes ruins, árabes malvados: como Hollywood vilificou um povo” do canal do YouTube de Abe Berry. Uso justo.
Jack Shaheen (1935-2017), crítico de cinema de origem árabe-americana, recebeu uma bolsa que lhe permitiu viver em mais de 15 cidades árabes nas décadas de 1980 e 1990. Ao voltar para os Estados Unidos, falou sobre as terríveis injustiças contra os árabes e se perguntou como o cinema americano havia transformado esse povo gentil e pacífico em selvagem.
Foi então que a ideia de seu projeto enciclopédico sobre a imagem maléfica dos árabes no cinema americano tomou forma no livro “Filmes ruins, árabes malvados: como Hollywood vilificou um povo“.
A tradução para o árabe foi publicada em duas partes pelo Centro Nacional de Tradução no Cairo. Shaheen levou vários anos para concluir o livro, no qual criticou e analisou mais de 900 filmes americanos, desde a era do cinema mudo até a era dos filmes de alta tecnologia.
De todos os filmes que analisou, citou apenas doze que retrataram os árabes de forma positiva. A grande maioria criou uma imagem extremamente negativa, bárbara e agressiva, considerando-os uma fonte de ameaça. Assim, justificava-se que o personagem árabe fosse morto sem dó nem piedade.
Quem são os árabes retratados por Hollywood?
De acordo com Jack Shaheen, ao longo da história, os cineastas retrataram os árabes como fanáticos religiosos hostis, selvagens, bárbaros e obcecados por dinheiro. Culturalmente, eles representavam o outro, responsável por aterrorizar os ocidentais civilizados, especialmente cristãos e judeus.
Apesar das guerras, da ascensão e queda de nações inteiras e das conquistas culturais relacionadas à liberdade e aos direitos humanos que ocorreram desde 1986, segundo Shaheen, “a caricatura hollywoodiana do árabe tem rondado as telas de cinema em busca de presas. E segue assim até hoje, repulsiva e não representativa como sempre.
O crítico sugere que não foram os cineastas americanos que criaram uma imagem estereotipada dos árabes, mas que a herdaram dos europeus, que foram os primeiros a divulgar tais caricaturas. Ele explica:
In the eighteenth and nineteenth centuries, European artists and writers helped reduce the region to a colony. They presented images of desolate deserts, corrupt palaces, and slimy souks inhabited by the cultural other—the lazy, bearded heathen Arab Muslim. The writers’ stereotypical tales were inhabited with cheating vendors and exotic concubines held hostage in slave markets.
Nos séculos 18 e 19, artistas e escritores europeus ajudaram a reduzir a região a uma colônia. Criaram imagens de desertos desolados, palácios corruptos e bazares imundos habitados pelo outro cultural, o árabe muçulmano pagão, preguiçoso e barbudo. As histórias estereotipadas dos escritores eram repletas de vendedores trapaceiros e concubinas exóticas mantidas em cativeiro nos mercados de escravos.
Essas representações de estrangeiros e bárbaros que oprimem e “subjugam donzelas do harém” eram vistas pelo público como verdadeiras, até que os estereótipos ficaram gravados na mente dos ocidentais e perduraram na cultura popular europeia.
Shaheen analisou a enorme influência dos contos das Mil e Uma Noites na percepção do Ocidente sobre o povo árabe. Em 1979, os contos haviam sido traduzidos para mais idiomas do que qualquer outro livro, exceto a Bíblia, e seu impacto foi muito maior do que apenas moldar as percepções. Atiçaram a imaginação e a fantasia ocidental sobre os árabes, levando à criação de diversas imagens e histórias.
De acordo com o crítico, no início do século 20, “cineastas, como o francês Georges Méliès, apresentavam imagens de dançarinas de harém e árabes feios”. Eles montavam camelos, empunhavam espadas curvas e matavam uns aos outros, além de babar pelas personagens europeias e ignorar as suas próprias esposas. O crítico observa que no filme “O palácio das mil e uma noites” (1905), de Méliès”, donzelas submissas entretinham um rei entediado, ganancioso e de barba negra, enquanto um guarda corpulento do palácio o refrescava, abanando um enorme leque de penas.

Hollywood geralmente retrata as mulheres árabes como dançarinas do ventre vivendo em haréns. Captura de tela do documentário “Filmes ruins, árabes malvados: como Hollywood vilificou um povo” do canal de YouTube de Abe Berry. Uso justo.
Quanto às mulheres árabes em Hollywood, em mais de 50 dos filmes analisados, elas eram retratadas como vítimas de sofrimento, sendo humilhadas, subjugadas ou abusadas sexualmente. Em 16 desses filmes, havia mulheres meio árabes ou escravas silenciosas. Nunca as mostravam casando-se com um homem ocidental, e o contato físico entre homens e mulheres árabes era raro, o que levou Shaheen a concluir que o casamento entre uma mulher árabe e um ocidental parecia ser um tabu em Hollywood, pois isso só aconteceu em pouquíssimos filmes.
A imagem do palestino
Jack Shaheen observou que, embora vários filmes das décadas de 1980 e 1990 incluíssem palestinos entre os personagens árabes, eles não eram representados de forma autêntica, condenando veementemente a falsa imagem criada por Hollywood para os palestinos em particular. Os filmes que tratam do conflito entre Israel e a Palestina não apresentam o drama humano mostrando os palestinos como pessoas comuns.
Shaheen mencionou que os palestinos nunca foram retratados como vítimas inocentes da cruel opressão israelense. Os filmes nunca mostraram os colonos arrancando oliveiras ou matando civis com seus rifles em cidades palestinas. Também não retrataram as famílias lutando para sobreviver à ocupação ou vivendo em campos de refugiados, com a dificuldade de ter uma pátria ou um passaporte com o nome “Palestina”.
Apenas um ano após a criação do Estado de Israel, o filme “Adagas no deserto” mostrou a Palestina como uma terra sem povo, refletindo o famoso slogan sionista, apesar de que a maioria dos habitantes da região na época era formada por palestinos. O mito de que não há palestinos vivendo na Palestina foi repetido em “À sombra de um gigante“, de 1966.

Cena do filme “True Lies“, de 1994, em que terroristas são retratados como pessoas de pele escura, presumivelmente árabes, usando a kufiya palestina. Captura de tela do trailer do filme. Uso justo.
De acordo com o crítico, sete filmes, como “True Lies” e “Procurado vivo ou morto“, apresentam os palestinos como terroristas que usam gás nervoso. Em mais de 11 filmes, como “Uma intriga internacional“, “Terror em Beverly Hills” e “A date with death“, os palestinos ferem e torturam crianças e mulheres ocidentais.
Depois de testemunhar essas inverdades e distorções, Shaheen se perguntou se existia uma lei não escrita que obrigava Hollywood a retratar os palestinos como irracionais e maus, e os israelenses como racionais e justos. Há muito o que questionar sobre mentiras, desinformação e falsificação de fatos, mas o genocídio contínuo dos palestinos não é a resposta.