Esperando Berilo na Jamaica

Imagem de abacates via Canva Pro.

Em “Esperando Godot” de Samuel Beckett, frequentemente descrita como ‘a peça em que nada acontece’, os dois personagens principais basicamente conversam sob uma árvore sem folhas enquanto esperam a chegada do misterioso Godot, que nunca aparece. Quem dera terminasse assim no Caribe, durante a temporada dos furacões.

Em vez disso, os personagens, porque parece a cena de um filme apocalíptico, amontoam-se sob abrigos, muito apreensivos para conversar enquanto esperam a chegada da tempestade do dia, que quase sempre chega. Para essas ilhas, na linha de frente da crise climática, é tempo de peregrinação anual até a árvore sem vida de Beckett, supondo que exista alguma árvore que se mantenha de pé.

Esse ano, que tem a distinção duvidosa do prognóstico de ter uma das mais ativas temporadas de furacões no Atlântico da história, viu o furacão Berilo bater toda sorte de recordes, e com isso, também ter afetado muitas vidas.

Enquanto a tempestade de Categoria 4 avançava em direção a Jamaica na noite de 2 de julho (prevista para atingir o país na quarta-feira, 3 de julho),  após assolar as iIlhas caribenhas de Barlavento, a escritora e ambientalista Diana McCaulay escreveu eloquentemente no Substack sobre a experiência de esperar por uma tempestade que, com certeza, vai chegar.

“O dia antes da tempestade tem certas características’, disse. “É quente, sem ar e parado que parece impossível que venha uma tempestade. As estradas estão abarrotadas por causa do tráfego, pessoas tentando chegar em casa, estocar água e comida, comprar suprimentos. A conversa é sempre sobre a esperança de que a tempestade desvie no último minuto fazendo com que nós fiquemos a salvo. A Jamaica tem sorte. É especial. Todo mundo sabe disso. As pessoas nas redes sociais vão se posicionar contra a negatividade e os pensamentos ruins. Vamos rezar. Contatos com a família e amigos vão ser feitos. Está mais calmo? Está fora da estrada? Pegou seus remédios? E em todo lugar pessoas vão transformar coisas sérias em piadas.”

A própria McCaulay admitiu ter ficado presa no tráfego. E o trânsito estava tão ruim que a fez pensar que tinha acontecido um acidente, mas, as estradas estavam apenas lotadas por causa do estresse da tempestade; as pessoas estavam ansiosas para garantir suprimentos e para se prepararem para as consequências impossíveis de prever.

Ainda sim, ela disse, você faz o que pode : “As estações de rádio emitem boletins. Várias empresas estão fechadas, a limpeza dos bueiros está quase concluída, as empresas de serviços públicos e de comunicação estão prontas para o furacão. Os sites meteorológicos mostram pequenas diferenças de rota e intensidade, mas agora os modelos parecem estar de acordo. O furacão Berilo é um grande furacão, no momento em que escrevo este artigo é reportado que ele se manterá na Categoria 4 enquanto atinge ou passa perto da Jamaica. E, nesse momento, parece que vai atingir diretamente o país. Será um ataque direto. As palavras “devastador” e “catastrófico” estão sendo usadas em todos os canais de notícias, acompanhadas de “risco de morte”.

Em meio ao caos, MacCaulay se perguntava como o abacateiro no seu quintal vai sobreviver. Ela não o podou esse ano porque estava dando frutos, e quando se deu conta de que deveria ter podado, já era tarde: “Todos os cortadores de árvores, carpinteiros, reparadores de telhado, eletricistas e encanadores estavam ocupados. Talvez amanhã a pereira caia. Talvez caia sobre um de nós, ou sobre nós dois. E se ela aguentar, as peras terão se perdido”.

Em meio a todas questões e emoções ela declarou não estar com medo – mesmo estando consciente de que sua vida poderia mudar completamente em questão de horas: “Nossa casa poderia ser severamente danificada, ou até destruída, nós poderíamos perder tudo o que temos. Nós poderíamos ser feridos, mortos, transformados em estatística. Eu digo a mim mesma: isso poderia acontecer também em qualquer outro dia. Eu estou cansada e dolorida de todos os preparativos, mas também sinto uma pequena satisfação ao concluir as tarefas. Nós fizemos o que podíamos. E estou feliz que o Berilo está se movendo rápido e vai nos acertar durante o dia, um furacão durante a noite é muito assustador”.

As emoções dela também alcançam os outros, mais vulneráveis, morando em “áreas propensas a inundações, margens de rios, a costa, ao lado de ravinas, em colinas íngremes, em lugares remotos que vão acabar sendo isolados pelo furacão. A paisagem da ilha será refeita, eu sei disso por causa de furacões passados: árvores vão cair, encostas vão deslizar, a linha costeira será redesenhada. E vamos ver danos, talvez danos desastrosos, para a infraestrutura da ilha e para muitas, muitas casas”.

Acima de tudo, McCaulay sentia raiva. Ela se recordou de uma interação, acontecida no escritório da Jamaica Environment Trust, uma Organização Não Governamental (ONG) fundada por ela, na qual ela perguntou ao CEO de uma empresa petrolífera “como você pode participar dessa indústria horrível?” ao que ele respondeu “Bem, se nós não o fizermos alguém mais vai fazer”. Ela desvendou a realidade da situação climática que enfrentamos.

“Os governos do mundo se reuniram e falharam em agir em relação à ameaça da crise climática, sobre a qual os cientistas têm nos alertado há décadas, e do aquecimento global, que gera furacões mais intensos. Por meses ouvimos sobre a elevação da temperatura marinha do Oceano Atlântico e o Mar do Caribe. Eu estou com raiva das empresas petrolíferas, aquelas corporações multibilionárias lideradas por homens e mulheres comuns que mentiram e ofuscaram a verdade dizendo para calcularmos nossas pegadas de carbono porque era o nosso uso do produto deles o problema. Sim, o combustível fóssil construiu a nossa civilização, eu aceito isso. E sim, eu uso os produtos deles, estou usando um agora (melhor dizer antes de começar a receber comentários furiosos), mas, eles também comprometeram a atmosfera do nosso planeta, o clima da terra e a própria civilização que gerenciaram.”

“E aqui estamos”, concluiu, enquanto se preparava com seus compatriotas para níveis desconhecidos de devastação. Parece que nós,  a humanidade, não podemos imaginar outro modo de viver na terra, melhor, mais justo, mais respeitoso, e devido a essa falha de imaginação vamos ver tudo queimar, inundar, derreter ou esvanecer no redemoinho.”

Assim como em “Esperando Godot”, o processo de ‘esperando Berilo’ revelou a crueldade da tragédia humana sussurrada nos ventos de cada temporada brutal de furacões. Os caribenhos, e outros residentes de ilhas pequenas em desenvolvimento, estão cansados de esperar que as coisas sejam diferentes.

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