A realidade das mulheres e o aborto legal no Brasil: uma situação de desterro.

Um cartaz durante um protesto no Rio de Janeiro, em 13 de junho de 2024. Foto de Fernando Frazão/Agência Brasil, usada sob licença

Em meados do mês de junho, milhares de mulheres brasileiras foram às ruas em diferentes cidades para protestar contra um projeto de lei que pode dificultar ainda mais o acesso ao aborto seguro e legal, criminalizando vítimas de estupro e retirando direitos que já são garantidos a elas na legislação atual.

O projeto de Lei n° 1904/24 foi proposto por um deputado evangélico, Sóstenes Cavalcante, do Partido Liberal (PL), o mesmo do ex-presidente Jair Bolsonaro, e contou com a assinatura de outros 56 parlamentares da Câmara dos Deputados do Congresso Nacional.

No dia 12 de junho, a Câmara aprovou um requerimento para que o projeto seja votado com urgência, permitindo que a votação ocorra sem que o projeto passe por discussões nas comissões. Uma pesquisa no próprio site da Câmara, que durou até 17 de maio, mostra que 12% dos votantes estavam a favor da proposta, enquanto 88% eram contra.

Caso o projeto seja aprovado, um aborto após 22 semanas teria a mesma pena de um homicídio no Brasil, mesmo para mulheres vítimas de violência sexual. Isso significa que elas podem até receber uma sentença mais longa do que seus estupradores.

Outro cartaz no protesto no Rio contra o projeto de lei. Foto de Fernando Frazão/Agência Brasil, usada sob licença

Atualmente, o Brasil permite o aborto em apenas três situações: em casos de anencefalia, se a gravidez representar risco à vida da mulher ou se for resultado de estupro.

Conforme divulgado pela Agência Brasil em 2023, foram registrados 74.930 casos de estupro no país. Desses, 56.820 foram contra pessoas vulneráveis, ou seja, quando a vítima é menor de 14 anos ou tem um problema de saúde mental, conforme definido pela lei. No total, o Brasil registrou 2.687 casos de aborto legal no ano passado, sendo 140 de meninas menores de 14 anos e 291 envolvendo jovens de 15 e 19 anos.

Para entender o que está em jogo agora, a Global Voices conversou com Debora Diniz, antropóloga, pesquisadora e especialista no debate do aborto legal, que teve que deixar o Brasil há seis anos devido a ameaças relacionadas à sua postura sobre o tema. Diniz é associada à Universidade de Brasília (UnB) e à ONG Instituto Anis, esta última também assinou uma ação apresentada no STF, em 2017, para descriminalizar todos os abortos até 12 semanas de gravidez.

Segundo Diniz, a proposta do novo projeto é um movimento da extrema-direita brasileira para pressionar o Supremo Tribunal Federal em relação à sua decisão sobre o aborto e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e suas promessas aos evangélicos. Em 2022, durante a eleição em que Lula enfrentou Bolsonaro, citações que sugeririam uma postura pró-aborto dele foram espalhadas como forma de incutir medo e reduzir o número de votos, especialmente entre os eleitores religiosos.

Na época, Lula reforçou uma posição que vem tomando há anos: declarar-se, individualmente, contra o aborto, mas defendendo-o como uma questão de saúde pública. Desta vez, diante da proposta desse projeto de lei o presidente classificou a questão como “uma insanidade“.

Poucos dias depois, em entrevista, ele comentou sobre a desigualdade social que apresenta maiores riscos para mulheres pobres que precisam interromper uma gravidez e questionou o deputado Cavalcante: “Quero saber se a filha dele fosse estuprada, como ele ia se comportar. Não é uma questão simples”.

Mulheres marchando na Avenida Paulista, São Paulo. Foto de Paulo Pinto/Agencia Brasil, usada sob licença.

Global Voices:  Como você avalia o que está proposto no Projeto de Lei n° 1904/24?

Debora Diniz: O que está proposto é um retrocesso de quase 100 anos. É uma tentativa de criar ainda mais barreiras ao acesso ao serviço de aborto legal, em particular, para as meninas vítimas de estupro, mulheres em risco de vida. Acho que os proponentes não esperavam tamanha reação da sociedade brasileira. Na verdade, quando digo que a questão do aborto é que está sendo proposta, ela é o que está na superfície. Na profundidade, está uma queda de braço com a Suprema Corte, está um cheque de lealdade do presidente Lula a suas promessas com a bancada evangélica e o poder médico se movimentando. Mas, em termos de consequências concretas, é a criação de barreiras para as mulheres e as meninas, em particular as mais vulneráveis.

GV: Quais seriam os efeitos imediatos de uma legislação como esta? 

DD: Seriam o que estamos vendo. Neste caso, teria um aumento da gravidez infantil, por estupro presumido, para quem tem menos de 14 anos. Mulheres em risco de vida sendo obrigadas a morrer, porque a proibição é por tempo gestacional, e o risco à vida é aumenta em estágios avançados, da gravidez.

GV:  Um estudo da Universidade Federal de Santa Catarina aponta que, na prática, 3,6% das cidades têm serviços de aborto legal e cerca de 10% das mulheres que são estupradas no país recorrem ao procedimento. Isso significa que temos uma legislação que garante um direito, mas, na prática, vemos um cenário diferente. Qual a realidade das mulheres que precisam desse serviço no país?

DD: Ou seja, você tem uma legislação que garante, mas tem o outro cenário que é o acesso. Havia uma concentração de acesso no estado de São Paulo, o estado de São Paulo desmantelou esses serviços. E a realidade das mulheres que têm que recorrer aos serviços no país é uma realidade de desterro. Elas têm que atravessar fronteiras, buscar recursos financeiros, enfrentar, além de sobreviver a uma brutal violência, porque para as mulheres em risco de vida, atravessar fronteira é algo praticamente impossível. Mas hoje, além de sobreviver a uma violência, ela vai ter que buscar recursos financeiros, ausentar-se do trabalho, buscar soluções para o cuidado dos filhos. São barreiras que tornam intransponíveis o acesso ao aborto legal.

GV: Historicamente como se deu o debate em torno da questão do aborto no Brasil? Ele sempre foi interrompido ou houve avanços?

DD: Esse PL é uma resposta a um momento único na sociedade brasileira que é ação no Supremo Tribunal Federal que pede a descriminalização do aborto nas primeiras 12 semanas. É uma resposta ao que é a onda verde na América Latina, com a descriminalização na Argentina, na Colômbia, no México, no Uruguai. Ou seja, essa fúria da resposta é também uma fúria de uma intimidação de um momento único de transformação da sociedade brasileira. Mas, ao mesmo tempo, a política representativa, da qual não corresponde, não representa, o vivido pelas mulheres, pelas meninas que podem gestar, é uma política feita pelo patriarcado mais tradicional de homens, que vão fazer do aborto um nicho da política extremista, um nicho da extrema-direita, que achou que teria um termômetro de força com o fanatismo. E não teve.

GV: O que explica a diferença em relação a outros países da América Latina? A religião desempenha um papel nisso? 

DD: Eu diria, primeiro, que Colômbia e México estavam com uma Suprema Corte forte para tomar decisões relacionadas a direitos individuais e fundamentais. Na Argentina, quando se decide a nova lei do aborto, foi em um momento de uma mudança de configuração do Parlamento, com novas representações, especialmente com juventude diversa. Essa é uma diferença, porque no Brasil, como nos Estados Unidos e na Hungria, a questão do aborto se configura como um nicho da extrema-direita e como um nicho extremista. E, particularmente pela política representativa brasileira que tem uma sobreposição com as religiões, de uma maneira instrumental das religiões, o que é muito singular da sociedade brasileira.

GV: A declaração do presidente Lula sobre o aborto, colocando-o como favorável à descriminalização, foi explorada por adversários nas eleições de 2022. Ele chegou a afirmar que era pessoalmente contra e jogou o debate para o Legislativo. Como você interpreta essa discussão no ambiente político?

DD: Este PL não é sobre aborto. Ele é um teste de lealdade para o presidente Lula, um desafio, uma queda de braço com ele, como é uma queda de braço com a Suprema Corte, com a liminar concedida pelo ministro Alexandre de Moraes, na ação que nós apresentamos, em que derrubou a ação do Conselho Federal de Medicina (CFM), que impunha restrições [para interromper gravidezes resultantes de estupro e com mais de 22 semanas de gestação]. É importante explicar que esse PL vem de um extravasamento de poderes, de um abuso de poder do CFM sobre o aborto.

GV: Você pode contar um pouco mais sobre sua experiência pessoal, como alguém participando dessa discussão no Brasil há bastante tempo, incluindo o impacto pessoal?

DD: Eu trabalho na questão do aborto como pesquisadora, coordeno a Clínica Jurídica, na Universidade de Brasília (UnB), que apresentou com o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) a ação que pede a descriminalização do aborto, quanto a atual ação, que ganhou a liminar e derrubou a ação do CFM. A minha atuação é de pesquisa, de incidência política, em particular com litígio estratégico. Desde a propositura da ação, que pede a descriminalização, eu saí do país por questões de ameaça, por questões de fundamentalismo e extremismo.

GV: Quais são os caminhos possíveis no Brasil hoje para discutir racionalmente questões como essa? 

DD: A Suprema Corte decidir a ação. Seja para ganharmos ou perdemos, a gente recomeça esse debate público.

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