Cairo teme “efeito bumerangue” de protestos pró-Palestina

Manifestantes egípcios manifestam-se na icônica Praça Tahrir, no Cairo, dizendo que organizarão uma ocupação até que as fronteiras com a Faixa de Gaza sejam abertas. 20 de outubro de 2023. Captura de tela de um vídeo da AFP News Agency. Uso autorizado.

Esta publicação de Haneen Shoukry foi originalmente postada por Raseef 22 em 8 de maio de 2024. Esta versão editada e republicada na Global Voices faz parte de um acordo de compartilhamento de conteúdo. Nossa equipe MENA adicionou os links para fornecer mais esclarecimentos.

Na terça-feira, 23 de abril, manifestantes no Cairo foram detidos enquanto participavam de uma manifestação pacífica em apoio às mulheres do Sudão e de Gaza. Ironicamente, este evento coincidiu com o Dia da Libertação do Sinai, um feriado que celebra o regresso da Península do Sinai de Israel ao Egito.

As detenções eram previstas, dado o histórico de repressões de protestos no Egito desde 2013, sob o governo do presidente Abdeh Fattah el-Sisi. Esta não é a primeira vez que ativistas são presos por demonstrarem apoio à Palestina desde o início do conflito em outubro passado. No início de abril, os manifestantes se reuniram em frente ao Sindicato dos Jornalistas, no centro do Cairo, para denunciar a agressão sionista à Palestina. O governo acusou os manifestantes de espalharem informações falsas e de pertencerem a um grupo terrorista. Acusações essas que são utilizadas em quase todos os casos em que o governo reprime a liberdade de expressão.

Nesta onda de detenções mais recente, os manifestantes eram unicamente mulheres, que protestavam em solidariedade com as mulheres nas zonas de conflito. Entre as manifestantes estavam figuras conhecidas da sociedade revolucionária egípcia, como Eman Ouf, Rasha Azab, Mahienour El-Masry, Ragia Omran‌ e Lobna Darwish. As ativistas feministas envolvidas reuniram-se fora da sede regional da ONU Mulheres no Cairo, que é responsável por promover igualdade de gênero e capacitar as mulheres como entidade das Nações Unidas.

No Egito, as mulheres protestaram em solidariedade às mulheres de Gaza e do Sudão ontem, 23/04. Elas realizaram o protesto em frente ao escritório da ONU Mulheres no Cairo.

Pelo menos 19 manifestantes e transeuntes foram presos pelas autoridades egípcias. https://t.co/Opu6r4ltPk

— Data for Democracy (@Elephrame) 24 de abril de 2024

As detentas foram liberadas no dia seguinte.

O custo humano do bloqueio a Gaza

Apesar de expressar desaprovação pelas repetidas declarações públicas de Israel sobre a realocação dos deslocados de Gaza para o Egito, e de solicitar maior assistência aos EUA na segurança da fronteira, o Cairo não tomou medidas diretas contra a agressão israelense, desde que começou, há mais de seis meses. Isto gerou  frustração e ressentimento consideráveis entre os egípcios.

Embora afirme o contrário, o Egito desempenhou um papel no bloqueio aos habitantes de Gaza. A maioria daqueles que conseguiram atravessar as fronteiras possui dupla cidadania tanto na Palestina como no Egito. Outros tiveram que pagar uma quantia exorbitante para sair de Gaza e entrar no Egito, por conta das ações de Ibrahim Al-Organi, líder de uma milícia aprovada pelo governo na região do Sinai. Desde o início da guerra em Gaza, Al-Organi tem tido um controle significativo sobre o movimento de pessoas e mercadorias entre Gaza e o Egito por meio das suas empresas. Uma dessas empresas, a Hala, cobra dos palestinos milhares de dólares para ajudá-los a sair de Gaza. A Hala tem fortes laços com as forças de segurança egípcias.

A maioria dos árabes considera Israel uma representação da tirania. Os egípcios manifestaram a sua desaprovação contra seu governo por conceder a Israel qualquer controle no transporte de ajuda crucial para Gaza através de uma passagem fronteiriça egípcia. Sisi teme o efeito bumerangue, já que falar abertamente sobre a questão palestina durante os protestos pode motivar o público a se manifestar contra ele, o que de fato correu em outubro passado.

Protestos controlados pelo Estado?

Em Outubro, o regime autoritário de Sisi permitiu que o público expressasse as suas frustrações, apelando às pessoas para se reunirem nas ruas. Contudo, os manifestantes se deslocaram rapidamente para a Praça Tahrir, o local icônico da revolução egípcia de 2011 e da renúncia do presidente Hosni Mubarak.

De acordo com o artigo do Instituto Tahrir para Política do Oriente Médio de 12 de dezembro de 2023:

State-controlled media called on people to congregate in certain locations on October 20, to show support both for Gaza and the president. However, at least one of the demonstrations strayed from this state-approved scenario, as it made its way to the iconic Tahrir Square, after starting at Al Azhar Mosque. Videos of the demonstrations showed police trying, to no avail, to prevent people from reaching Tahrir Square. It was the first time demonstrations had reached the iconic square in 10 years.

Os meios de comunicação controlados pelo Estado apelaram às pessoas para se reunirem em determinados locais no dia 20 de Outubro, para mostrarem apoio tanto a Gaza como ao presidente. No entanto, pelo menos uma das manifestações desviou-se deste cenário aprovado pelo Estado, ao dirigir-se à icônica Praça Tahrir, depois de começar na Mesquita Al Azhar. Os vídeos das manifestações mostram a polícia tentando, sem sucesso, impedir que as pessoas chegassem à Praça Tahrir. Foi a primeira vez que manifestações chegaram à icônica praça em 10 anos.

O protesto pró-Palestina conseguiu chegar à praça #Tahrir contra todas as expectativas no #Egito, este é o maior protesto que a praça já viu desde 2013, os mais antigos sabem o que quero dizer https://t.co/MCbf6lAj60

— Zeinobia 🎙️📷📓 (@Zeinobia) 20 de outubro de 2023

Após as manifestações, as autoridades egípcias prenderam e acusaram ilegalmente inúmeros manifestantes pacíficos.

O povo do Egito apoia firmemente a Palestina e o movimento pela sua libertação. Como disse uma avó de Alexandria de 89 anos a Raseef 22:

A causa palestina está em nosso sangue. Assisti ao desenrolar da Nakba na minha juventude e fiquei confusa sobre o motivo de haver um número massivo de pessoas chorando em nossas ruas. Só quando cresci é que realmente entendi o horror de tudo isso. Vi o que a ocupação era capaz de provocar após ver o meu cunhado regressar da guerra em 1967, ensanguentado e com as roupas rasgadas, apenas para entrar no seu quarto e começar a chorar histericamente.

A erosão das liberdades artísticas

À medida que o Cairo aumenta o seu controle sobre os protestos pró-Palestina, a influência do controle estatal estende-se para além das ruas e atinge o próprio coração da vida cultural egípcia, impactando notavelmente o antigo cenário cinematográfico vibrante.

Outrora uma potência cinematográfica no Médio Oriente e no Norte de África, nos últimos anos o cinema egípcio morreu. El-Sisi fundou a United Media Services Company, que supervisiona toda a produção criativa de TV e de notícias do país. Está sob o controle da Agência de Inteligência Geral, dando aos militares um impacto significativo na criação artística.

Antes disso, muitos exemplos emblemáticos do cinema e da televisão egípcios abordaram a questão palestina.

Um dos filmes mais conhecidos do cinema egípcio contemporâneo que aborda o conflito palestino é “El Sefara Fel Omara”. Este filme acompanha a jornada de Sharif Khairi, que é obrigado a voltar ao Egito depois de duas décadas trabalhando para uma empresa petrolífera em Dubai. Para sua surpresa, ele descobre que a embaixada de Israel fica bem ao lado de seu apartamento. Inicialmente, ele tenta vender o imóvel, mas suas tentativas frustradas o levam a lidar com a situação de uma maneira diferente.

Por meio das lentes do cinema egípcio, a causa palestina tem sido um tema recorrente, com profunda ressonância no tecido cultural da nação. Filmes como “El Sefara Fel Omara” não só retrataram as lutas dos palestinos, mas também serviram como plataforma para explorar temas sobre justiça, resistência e solidariedade. Como Hossam El-Hamalawy articula num artigo para o Spectre Journal, a causa está profundamente enraizada na identidade cultural de muitos egípcios:

The Egyptian regime’s position is understandable if one takes into consideration how the powers in Cairo perceive the Palestinians: as a source of threat, instability, and inspiration for Egyptians to revolt. The Palestinian cause has always been a radicalizing factor for the Egyptian public. Most, if not all, turning points in the history of dissent of the most populous Arab nation were, either directly or indirectly, the product of a chain reaction triggered by Palestinian resistance and popular mobilization.

A posição do regime egípcio é compreensível se levarmos em consideração a forma como as autoridades no Cairo encaram os palestinos: como fonte de ameaça, instabilidade e inspiração para a revolta dos egípcios. A causa palestina sempre foi um fator de radicalização para o público egípcio. A maioria, se não todos, os pontos decisivos na história da dissidência da nação árabe mais populosa foram, direta ou indiretamente, o produto de uma reação em cadeia desencadeada pela resistência palestina e pela mobilização popular.

A recente repressão às manifestações pró-Palestina sublinha não só a determinação do governo em reprimir qualquer oposição, mas também a sua relutância em desafiar abertamente a agressão israelense. Esta supressão da liberdade de expressão repercute em toda a sociedade egípcia, afetando até a esfera cultural, onde a solidariedade histórica com a Palestina nos filmes também diminuiu sob o regime de el-Sisi.

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