Essa reportagem, escrita por Leanderson Lima, foi publicada originalmente no site da Amazônia Real no dia 11 de janeiro de 2024. Ela é republicada aqui em um acordo de parceria com o Global Voices, com edições.
A história de Bitaté-Uru-Eu-Wau-Wau e Ivaneide Bandeira, conhecida como Neidinha Suruí, e a luta deles contra o desmatamento na Amazônia, contada no documentário “O Território”, ganhou o mundo e agora um prêmio Emmy.
O filme foi premiado na categoria Mérito excepcional na produção de documentários, no Creative Arts Emmy Awards, que premia categorias técnicas e especiais de séries e programas, no dia 7 de janeiro.
Na cerimônia além de Neidinha e Bitaté, subiram ao palco a ativista indígena Txai Suruí, produtora executiva e filha de Neidinha, e o diretor do filme, o norte-americano Alex Pritz, além de outros membros da equipe.
Para receber a estatueta em Los Angeles, Neidinha, 63 anos, enfrentou uma odisseia de mais de 40 horas de viagem desde seu território, no estado de Rondônia, até a Califórnia.
“Quando anunciaram [que ganhamos], a gente não acreditou. Ficamos chocados. Não conseguimos chorar porque estávamos em choque”, lembra a indigenista.
“[No discurso], falei sobre a importância desse filme para a nossa luta, para a luta dos povos indígenas de todo mundo, em especial do Brasil, de Rondônia, e da importância deste prêmio para o cinema brasileiro, para o cinema indígena”.
O documentário “O Território”, disponível no streaming Disney+, ganhou vários prêmios desde o seu lançamento. Antes do Emmy, venceu no Festival Sundance de 2023 prêmios do Público e Especial do Júri.
Para Neidinha, as premiações serviram para “furar a bolha”:
É uma vitória da luta da gente, da luta por direitos humanos e pela natureza, pela defesa da floresta contra o desmatamento, é a luta contra o marco temporal. A gente chegou muito longe. A gente vê pessoas dentro do avião conversando sobre o filme, querendo saber sobre a nossa luta. Pessoas que a gente nunca tinha visto falando sobre a nossa causa e comemorando. Às vezes, filmes como esse atingem um nicho, uma bolha, mas ‘O Território’ fez a gente furar a bolha.
Entre os produtores do filme está o cineasta Darren Aronofsky, diretor de “A Baleia” (2022).
Equipe indígena
O filme narra a história de luta dos indígenas da etnia Uru-Eu-Wau-Wau, do estado de Rondônia, no Norte do Brasil, para defender o território contra invasões, sob ameaças de grileiros e fazendeiros.
Ele mostra a apreensão dos indígenas em situações de perigo para a floresta e para as comunidades, além de momentos da rotina da aldeia Uru-Eu. Um dos momentos mais marcantes são as imagens com o líder Ari Uru-Eu-Wau-Wau, assassinado em abril de 2020.
As gravações ocorreram em um dos períodos mais sombrios da história recente do Brasil, durante o governo de Jair Messias Bolsonaro (2019-2022), que implementou no país uma política considerada anti-indígena, com a promessa de não regulamentar um território indígena sequer, durante sua presidência.
Foi durante a gestão de Bolsonaro que explodiu o número de invasões em territórios indígenas em todo o país, além do desmonte de políticas ambientais. Em Rondônia, onde se passa o filme, Bolsonaro teve 70% dos votos válidos na eleição vencida pelo atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A obra foi filmada durante a pandemia da Covid-19, que só no Brasil vitimou mais de 700 mil pessoas. Como não se podia entrar em áreas indígenas durante este período, os próprios indígenas foram os responsáveis pelas filmagens.
Neidinha contou à Amazônia Real que os equipamentos para as gravações eram deixados na divisa do território, em sacos plásticos, e tudo era desinfetado para evitar riscos de contágio. Os indígenas recebiam orientação online sobre como operar os equipamentos, além de receber instruções sobre o que filmar.
“O Bitaté [líder indígena] falou: ‘Olha, a gente sabe fazer melhor que isso, então vamos fazer do nosso jeito’,” diz Neidinha.
“O Território” narra ameaças e pressões sofridas pelos indígenas Uru-Eu-Wau-Wau que, em um cenário de ausência do Estado, resolvem criar um grupo para defender o próprio território de ameaças externas.
Os protagonistas da história são o jovem líder indígena Bitaté-Uru-Eu-Wau-Wau, de 23 anos, e a ativista Neidinha, a quem Bitaté considera como a sua segunda mãe.
Neidinha lembra que nem ela ou Bitaté imaginavam que o documentário fosse chegar tão longe:
O Bitaté me disse certa vez: ‘Mãe, eu achava que o povo nem ia nos assistir. Achei que não ia dar em nada o nosso filme’. A gente achava que seria só mais um documentário, que para nós seria importante, mas talvez não para o resto do mundo. E foi legal porque a National Geographic comprou o filme e a gente ficou de cara [espantados]. Andamos por vários países apresentando o documentário, palestrando, falando sobre a causa indígena, em pleno período Bolsonaro e de pandemia.
Celebração
Txai Suruí, filha dela e ativista de voz ativa em movimentos indígenas, escreveu em uma postagem no seu Instagram que a vitória no Emmy foi a “celebração e reconhecimento das vozes e das narrativas em defesa dos territórios, da resistência e luta que permeia a vida dos povos indígenas do Brasil”.
Ver essa foto no Instagram
O diretor do filme, Alex Pritz, também comentou sobre a conquista do Emmy, ao site Deadline:
To receive the recognition of our peers, alongside such an incredible group of nominees, is an unbelievable honor. We share this award with communities around the world who are standing up in defense of our planet’s continued habitability and fighting for a better future.
Receber o reconhecimento de nossos pares, ao lado de um grupo tão incrível de indicados, é uma honra inacreditável. Dividimos este prêmio com comunidades de todo o mundo que se levantam em defesa da habitabilidade contínua do nosso planeta e lutando por um futuro melhor.
Bitaté-Uru-Eu-Wau-Wau disse, também em seu perfil no Instagram:
Ganhamos, meu povo merece, principalmente minha comunidade, meu povo Uru-Eu-Wau-Wau, minha associação de Paú, trabalho que não é só meu, é nosso! Estou muito feliz por isso, representando minhas lideranças e é isso. Vencemos e tem mais por vir futuramente.
Por ser filho de mãe do povo Juma e de pai do povo Uru-Eu-Wau-Wau, Bitaté divide-se entre os dois territórios – um em Rondônia e outro no sul do estado do Amazonas. Ele é neto de Aruká Juma, um dos últimos de sua etnia. Mesmo com pouca idade, tornou-se liderança de seu povo.. Em 2021, como parte do grupo indígenas que fizeram parte do blog Jovens Cidadãos, ele escreveu sobre a relação com os avós.
O Jovens Cidadãos é um projeto criado pela Amazônia Real, iniciado nos anos de 2018 e 2019, e que resultou em uma seção no site da agência, no qual as próprias jovens lideranças narravam sua realidade.
Inspiração para a vida
Neidinha é uma das fundadoras da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, uma das organizações mais reconhecidas do país em defesa dos povos indígenas. Ela nasceu no estado do Acre e chegou em Rondônia com cerca de seis meses de vida. A mudança se deu porque o pai dela começou a trabalhar em um seringal dentro de onde hoje é a Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau. Daí a proximidade com o povo indígena daquela etnia.
Ela saiu do território aos 12 anos para estudar. Em revistas, aprendeu a ler sobre o velho oeste americano, e diz que vê o retrato daquelas histórias se repetir, de certa forma, no Brasil de hoje:
Na literatura os indígenas sempre eram mortos e os coronéis eram os ‘heróis’ para o avanço do Oeste, o que para mim é muito parecido com o avanço da colonização do Brasil. O avanço na Amazônia, não é diferente do faroeste americano”.
A ativista conta que o sucesso de “O Território” trouxe mais trabalho, mas também ameaças. Apesar disso, ressalta que o filme não cria heróis ou vilões.
Eu não queria um filme onde a gente fosse herói e o outro lado bandido. A gente queria a realidade. O filme consegue ver tanto a pressão em cima do povo indígena quanto a pressão em cima do pobre que é usado, manipulado para grilar terra para o grande ir tomar.
Fortaleceu em mim a certeza que não estou errada na minha luta, porque tem momentos que tu estás tão ameaçado, tão pressionado, que você pensa em maneirar, mas a reação das pessoas em todo o mundo fortaleceu as nossas convicções.