
Um casal núbio assistindo à cultura núbia sendo representada na TV. Imagem por Noran Mosri para a Global Voices.
Este conteúdo é parte de uma série que examina a livre expressão e o acesso à informação em espaços cívicos em seis comunidades linguísticas na região do Oriente Médio e Norte da África (na sigla em inglês, MENA).
Servos, porteiros, ajudantes de guarda-roupa e motoristas. Para muitos núbios, suas identidades individuais são negligenciadas e desrespeitadas. Em vez disso, a sociedade ignora seus nomes e trata todos como se fossem iguais, usando um nome comum impessoal como otomanos, para se referir a todos coletivamente.
O equívoco sobre essas ocupações vai longe, levando a falsa crença de que esses papéis definem os núbios, com muitos supondo que a maioria dos avós núbios trabalharam como servos no passado.
Como uma criança núbia, eu internalizei essa narrativa distorcida perpetuada no cinema egípcio, na mídia e na sociedade, a despeito do forte contraste com a rica e diversa realidade da cultura e patrimônio núbio.
Infelizmente, o povo núbio continua a enfrentar o racismo, a deturpação ou redução a estereótipos simplistas, em ambos, os meios de comunicação tradicionais e as mídias digitais, refletindo a discriminação contra uma comunidade racializada na região.
Embora aparentemente inofensivos na superfície, esses estereótipos frequentemente carregam subtextos subjacentes que categorizam os núbios como os “outros”. O racismo e o discurso de ódio, em suas formas implícita ou explícita, podem cultivar um ambiente inóspito e hostil, dissuadindo potencialmente os núbios de se engajarem ativamente no discurso público e de se expressarem na comunidade.
Em um notável incidente de 2016, Mortada Mansour, um proeminente advogado e apoiador do presidente Abdel Fattah El-Sisi, referiu-se ao jogador de futebol núbio Ahmed Al-Marghany, como um “bawab” (porteiro) durante uma entrevista de TV. Esse termo foi usado de forma pejorativa, em resposta a Al-Marghany ter expressado uma opinião negativa sobre El-Sisi.
A maneira pela qual Mansour retratou Al-Marghany como meramente um porteiro serve para reforçar o mito duradouro propagado pela mídia egípcia, sugerindo que os núbios são adequados somente para empregos de status social inferior.
Esse caso ressalta a importância de combater o racismo on-line e midiático, no qual palavras aparentemente inócuas como “bawab” , usadas em contextos do dia a dia, são frequentemente instrumentalizadas de uma forma racista contra egípcios de pele mais escura.
A menos que plataformas incorporem moderadores capazes de diferenciar entre uso inofensivo e intenção humilhante, o discurso de ódio e o racismo on-line irão persistir, fazendo com que essas plataformas falhem no cumprimento de suas próprias diretrizes comunitárias.
Representações negativas, positivas e exageradas na cultura pop

Uma vila núbia no Alto Egito. Foto por Doaa. Usada com permissão.
Centrado no tema do “bawab” e suas implicações, o filme egípcio “El-Beih El-Bawab” (Mr. Doorman), estrelado pelo falecido ator Ahmed Zak, me deixou completamente envergonhado quando criança. O filme seguia a jornada de um homem do Alto Egito para o Cairo, começando como um porteiro e depois acumulando riqueza como corretor de imóveis. Apesar do seu potencial como um clássico, uma questão gritante solapou seu impacto: a representação humilhante dos núbios.
No filme, os porteiros eram consistentemente retratados como indivíduos de pele escura com um árabe pobre, frequentemente representados balbuciando o que deveria se assemelhar ao núbio. Embora sua intenção fosse ser uma comédia, o filme reforçou estereótipos negativos sobre a minha comunidade. Não pude deixar de me preocupar com a forma como meus colegas de classe perceberiam os núbios após assistir ao filme.
Ironicamente, não fiquei menos envergonhado quando os núbios foram retratados de maneira excessivamente positiva, no filme Máfia, de 2022. O longa foi predominantemente filmado em uma vila núbia, onde o protagonista buscava recarregar, desconectar e encontrar equilíbrio, inicialmente apresentando uma representação positiva. Entretanto, em uma das cenas, toda a vila espontaneamente explodiu em música e dança, perpetuando um estereótipo irrealista sobre a vida cotidiana dos núbios.
Além disso, foi desanimador observar que o único personagem núbio com falas no filme, foi ridicularizado por seu discurso. Esta representação reforçou estereótipos dolorosos, minando as intenções positivas do filme.
Representação da cultura núbia na mídia

Uma aldeia núbia no Alto Egito. Foto por Dooa. Usada com permissão.
Uma viagem à Núbia revela uma região cativante, com tradições vibrantes que se estendem calmamente às margens do rio Nilo. O encanto hipnotizante é inegável pelas casas de tijolos de barro lindamente coloridas e vestígios de reinos antigos. A hospitalidade genuína do povo núbio deixa uma impressão duradoura.
Originários da histórica região da Núbia, abrangendo partes do atual Sudão e sul do Egito, os núbios são um grupo étnico indígena com uma rica história que remonta a milhares de anos. Suas culturas diversas refletem várias comunidades núbias, cada uma possuindo línguas e culturas únicas.
Ao longo do tempo, a mídia tem distorcido a intricada cultura núbia, retratando os núbios como pessoas ingênuas, mas alegres, ao mesmo tempo em que perpetuam o discurso de ódio e a discriminação com base na cor da pele.
Os ativistas destacam a atual deturpação dos núbios na mídia como uma forma de discriminação que refletem preconceitos sistêmicos mais amplos na representação da mídia.
Um relatório de 2021 do Instituto de Diversidade da Mídia documentou os casos de racismo contra os núbios na televisão e demais meios de comunicação, incluindo casos de preconceito racial. O relatório apontou um aumento preocupante de racismo contra os núbios ao longo do tempo “por não se parecerem com a maioria dos egípcios”.
Iniciativas lideradas por organizações e membros das comunidades núbias enfatizam os equívocos recorrentes sobre os núbios.
Uma notável iniciativa de 2018 contou com um estudo de pesquisa supervisionado por Mohamed Azmy, um advogado, defensor dos direitos humanos e antigo presidente da General Nubian Union. A equipe de Azmy analisou minuciosamente 60 filmes, dezenas de programas de televisão nacionais e reportagens, revelando casos nítidos de representação preconceituosa. Representações midiáticas discriminatórias envolvem constrangimento de figuras públicas com base na cor da pele ou por viverem no Alto Egito, ocorrendo em programas de televisão e meios de comunicação on-line.
No entanto, membros da comunidade núbia têm confrontado ativamente essas representações discriminatórias. Em 2009, a cantora libanesa Haifa Wehbe incluiu a frase pejorativa “macaco núbio” em uma canção infantil, referindo-se à crianças núbias de pele escura como macacas. Os núbios tomaram medidas legais contra a cantora, alegando que a música estava alimentando atitudes racistas contra crianças núbias. O processo judicial resultou na remoção da frase ofensiva da música.
Embora esse caso tenha sido bem-sucedido, serve apenas como um exemplo entre muitos. Com quadros jurídicos limitados em vigor para combater o racismo e garantir uma representação precisa, a sociedade civil lida com a responsabilidade de proteger a cultura núbia. Isso requer abordar os desafios enfrentados na comunidade núbia e tomar medidas proativas para salvaguardar sua identidade cultural, língua e patrimônio.
As línguas núbias ameaçadas

Um mercado núbio. Foto por Doaa. Usada com autorização.
As línguas núbias descendentes do antigo núbio, formam uma família linguística falada pelos povos núbios. Historicamente, os núbios usaram seu sistema de escrita distinto (ortografia), para textos religiosos, registros oficiais e literatura antes de fazerem a transição para a escrita árabe, com a ascensão do islã, levando esse sistema de escrita único a desaparecer. Todavia, as línguas núbias resistiram através da tradição oral.
A construção da Barragem Alta de Assuã, em 1960, deslocou grande parte do povo núbio, levando a um declínio significativo da língua núbia. Atualmente, a língua núbia enfrenta uma grande ameaça de extinção, já que o número de falantes tem diminuído. Sem um reconhecimento formal como língua no Egito, não há estatísticas oficiais sobre o número de falantes da língua núbia.
No Egito, a ausência de ortografia núbia e políticas linguísticas discriminatórias resultaram na ausência de escola e universidades que ensinem a língua núbia. Essa negligência da educação formal contribuiu para uma transmissão cada vez menor às gerações mais jovens.
Na verdade, conforme as comunidades de língua núbia passam por processos de urbanização e enfrentam deturpação nos meios de comunicação, a língua núbia corre o risco de ser vista pelas gerações mais jovens como uma relíquia do passado ou associada a ambientes rurais.
“Os núbios abandoram sua língua, pois todos estavam zombando deles na TV e nos filmes”. Mohamed Azmy disse à Global Voices em entrevista. “A representação frequentemente adotava uma abordagem cômica, zombando dos núbios e retratando-os como falantes não árabes engraçados”, adicionou.
Azmy, um antigo morador de Assuã, no Alto Egito, ressaltou que atualmente, menos de 20% dos núbios transmitem sua língua para as gerações mais jovens. Essa escolha serve como uma medida protetiva para evitar que suas crianças experimentem o ridículo e trauma que sofreram em seu próprio passado.
I used to live in a Nubian village and people were saying: “Don’t teach your kid Nubian; do you want them to be seen as Barbarians?” This is the term used to describe non-Arabic speaking Nubians.
Eu vivia em uma aldeia núbia e as pessoas diziam: ‘Não ensine núbio a seus filhos. Você quer que eles sejam vistos como bárbaros?’ Esse e o termo utilizado para descrever falantes núbios não árabes.
Uma mudança promissora está em curso, à medida que uma juventude núbia conhecedora de tecnologia começa a liderar a autorrepresentação através de várias iniciativas on-line para defender e ensinar o próprio idioma. Por exemplo, Nobig Koro, (“aprenda núbio”) frequentemente compartilha vídeos educacionais nas redes sociais. Além disso, o aplicativo Nubi oferece recursos on-line para os interessados em aprender o idioma.
“Temos problemas, mas não reclamamos”

Uma casa núbia. Alto Egito. Imagem por Doaa. Utilizada com autorização.]
A ex-jornalista e escritora Reem Abbas, renomada por sua pesquisa em história e sociedade civil, destacou em uma entrevista para a Global Voices que a cultura núbia ganhou reconhecimento na televisão nas últimas décadas e, mais recentemente, nas redes sociais. Em 2012, em meio a divisão política no Egito, uma campanha publicitária televisiva bem-sucedida, apresentou os núbios como parte integrante da diversidade egípcia, abrangendo suas tradições e música. Abbas afirmou:
When I was younger living as a Nubian Sudanese in Egypt, I noticed a lack of awareness about Egypt’s cultural diversity, which includes Nubians as an integral part. However, there has been some improvements.
Quando eu era mais nova, vivendo como uma núbia sudanesa no Egito, percebia uma falta de consciência sobre a diversidade cultural egípcia, que incluísse núbios como parte integrante. Porém, alguns avanços ocorreram.
Abbas acredita que a comunidade núbia tenta lidar com o discurso de ódio, deturpação e discriminação. Ela observa que “a comunidade núbia é pacífica. Aprendemos a resolver nossos problemas internamente, contando com a solidariedade. Pessoas de fora da comunidade, podem pensar que não temos problemas, pois, não reclamamos. Sim, temos problemas, mas resolvemos nós mesmos”.
Lidar com a situação sozinha é insuficiente. Abbas defende medidas legais para combater o racismo com base na cor na mídia. Ela destaca a importância de usar as redes sociais como uma plataforma para que os núbios se representem de modo autêntico e desafiem estereótipos. Ela enfatizou: “Deveríamos usar as redes sociais para sermos nossos próprios embaixadores, em vez de esperar que os meios de comunicação tradicionais nos representem de forma precisa. As pessoas deveriam se tornar seus próprios agentes de divulgação”.
Os núbios lidam com o impacto prejudicial da discriminação na mídia, que causa sentimentos de invisibilidade, exclusão e autocensura. Essas representações marginalizam amplamente as comunidades núbias, obscurecendo suas ricas contribuições culturais e impedindo a livre expressão de suas perspectivas e experiências.
Apesar das disposições constitucionais do Egito contra a discriminação, é frustrante testemunhar a contínua discriminação contra os núbios, alimentada por influências sociais e culturais na mídia. Os setores público e privado possuem um papel crucial para lidar com o problema. Reforçar leis, que oficialmente reconhecem e protegem os núbios, ao mesmo tempo em que membros da comunidade e líderes em políticas específicas são envolvidos, pode ajudar a garantir a preservação, promoção e liberdade de expressão da cultura núbia.