Por causa de um livro, escritor sofre ameaças e intimidação em Moçambique

Lançamento do livro de Sérgio Raimundo (captado pelo Global Voices, Julho 2023)

Sérgio Raimundo, jovem escritor moçambicano,  tem estado a sofrer ameaças por conta da redacção de um livro que é visto como uma fonte de provocação política. O livro em referência leva como nome “As ancas do camarada chefe”, tendo sido lançado no dia 17 de Julho de 2023.

Foi através do próprio autor, por meio de uma publicação em seu perfil no Facebook, que se ficou a saber que este estava a ser ameaçado de forma anónima, por pessoas que julgavam que tal livro não devia ser lançado:

Amigos, temos um novo apresentador do livro: Álvaro Carmo Vaz. O Professor Jorge Ferrão não mais apresentará o livro por diversos motivos. Enquanto não chega o dia 17, peço-vos o que Evelyn Waugh pediu aos seus leitores: “rezem pela minha alma pecadora”. Nunca imaginei o que estou a viver nestes dias por conta deste livro: ameaças e intimidações todos os dias.
No contexto de Moçambique, a expressão ‘camarada’ é conotada com o principal partido político no poder, Frelimo. Tal pode ter sido entendido como que o livro fosse para esse partido dirigido. Em resposta contra as ameaças, várias foram as sensibilidades que tomaram posição em defesa do autor, para apelar o respeito ao livre pensamento:

Não há razões para se intimidar um escritor, não interessa a motivação; somos livres de pensar, metaforizar, ironizar, criticar e dizer que está errado o que muitos consideram correcto. Esta é a função do escritor, ver o invisível dentro de uma escuridão hermética.

André Cardoso, artista (rapper), também expressou sua solidariedade ao escritor:

No dia 17 de julho, Sérgio vai lançar o seu mais recente livro intitulado AS ANCAS DO CAMARADA CHEFE. Ainda não li, mas pelo que conheço deste jovem escritor, o camarada pode ter sido descrito com ancas bem salientes ao ponto se sentir erotizado de tal forma que o autor pede que “oremos por sua alma pecadora” até o dia do lançamento.

Estou orando caro Sérgio Raimundo – Militar mas também como lhe disse quando falámos, irei ao lançamento e comprarei o livro. Insto aos jovens artistas e outros a também fazerem o mesmo. Deve ser inspiradora a obra. Bem hajas mano. Até dia 17 no Camões.

Por sua vez, a Rede Moçambicana de Defesa de Defensores de Direitos Humanos (RMDDH) exprimiu sua indignação sobre o que sucedia contra o autor do livro:

No acto do lançamento que foi presenciado pelo editor do Global Voices Lusofonia, Sérgio Raimundo disse estar surpreso com as ameaças que recebeu, dado que para ele o livro não tem nada de alarmante, sendo apenas reflexões sobre o quotidiano dos moçambicanos.

Lançamento do livro de Sérgio Raimundo (captado pelo Global Voices, Julho 2023)

Das imagens do dia do lançamento, foi notória a presença massiva que encheu por completo o Centro Cultural Português (Camões), na cidade de Maputo:

Lançamento do livro de Sérgio Raimundo (captado pelo Global Voices, Julho 2023)

Como reacção, algumas vozes levantaram-se em defesa do escritor, tal como conta o também escritor Rassul Nobre:

Nuca pensei que obter o autógrafo do meu amigo Sérgio Raimundo – Militar se torna-se um desafio, ao ponto de adiar e decider-mos procurar por ele em Chamanculo nos próximos dias que se seguem. As Ancas da Camarada Chefe, tornara-se tão equívocas que deu para ver as sua curvas brozeadas de sofrimento, como uma brisa que endaga o amago.
Um rico livro e cheio de auspícios deste belo Moçambique. Para mi, uma obra de arte. Estiveram lá, figuras politicas, jornalistas, escritores, estudantes , académicos e curiosos. Foi uma grande festa, parabens Poeta Militar quero aqui manifestar a minha solidariedade pelas ameaças de morte.

Dois dias após o lançamento, Sérgio Raimundo era um escritor feliz, tal como revelou na sua publicação do Facebook:

Agradeço a todos que estiveram na apresentação pública do nosso livro “As ancas do camarada chefe”. Foi uma tarde maravilhosa cheia de abraços, apertos de mão e muita conversa. Um especial agradecimento ao Professor Álvaro Carmo Vaz, pela espinha que tem e pela belíssima apresentação, e ao CCP – Maputo, pela coragem que teve de abrir as portas para estas “ancas”.
Sublinho o meu agradecimento, com a tinta vermelha da minha sinceridade, a todos que de forma incansável rezaram e continuam a rezar pela minha alma pecadora.
A sessão foi tão boa que todas as “ancas” esgotaram: já não temos mais exemplares. Neste momento, amigos, já está a ser impressa a segunda edição para mais uma sessão e distribuição em diversas livrarias. Darei mais informações, em breve.

Passadas duas semanas, Sérgio Raimundo contou um episódio no qual detalha ter recebido um convite para falar do livro numa televisão local, mas sem mencionar a sua recente obra literária. O autor recusou tal convite:

Soube de dois grandes amigos jornalistas, de duas televisões, de que receberam “ordens” para não falar e nem divulgar nada sobre “as ancas do camarada chefe”.
Uma dessas televisões telefonou-me ontem a marcar uma entrevista, mas sugeriu-me uma espécie de autocensura: iria participar de um programa para falar da minha vida literária, livros, mas sem mencionar “as ancas do camarada chefe”. Claro: mandei tudo à fava.
Felizmente, há quem ainda abre espaço a este livro: ontem falei ao Media Mais, pela manhã, e gravei uma entrevista na Gungu TV e hoje estarei num bate-papo com Stewart Sukuma.
Mas não parou por aí, dado que inclusive a Rádio Nacional (primeira estação de rádio do país) pretendia boicotar a emissão de uma entrevista que fez com o escritor, tal como contou Sérgio Raimundo na sua página do Facebook:
Amigos, a direcção de programação diz que vai divulgar a conversa HOJE: a direcção vai passar por cima de todas as ordens. Houve partilhas, houve comentários, eles receberam e vão divulgar a conversa. Recebi milhares de telefonemas. Facebook tem poder… Obrigado a todos. Espero que nada seja cortado de tudo que disse. Espero e espero. A luta continua.
Sabe-se que o livro esgotou, tendo sido já preparada uma segunda edição que vai ser lançada em algumas cidades de Moçambique.

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