Em setembro de 2022, a morte de Mahsa Amini no Irã provocou protestos em todo o país, no maior clamor público desde 2009. Amini, uma mulher de 22 anos, perdeu a vida sob custódia policial por não usar um “hijab adequado”. Ela se tornou um ícone e símbolo para muitos, especialmente mulheres artistas iranianas, que aproveitaram o momento para falar sobre suas lutas e preocupações através da arte.
Zeynab Movahed, 41 anos, é uma dessas artistas cujas pinturas abrem uma janela para as complexidades da vida como mulher no Irã. Seu trabalho tem sido amplamente compartilhado para comunicar a luta constante pela igualdade de direitos em um país que pode ser descrito como um Estado de “apartheid de gênero”, apesar de que um grande número de mulheres é muito instruída.
Movahed começou a pintar quando era criança e passou a ter aulas em 1999, quando tinha 17 anos. Desde então, a pintura se tornou uma parte significativa da sua vida. Três anos depois, ela entrou na Escola de Arte e Arquitetura da Universidade de Teerã, onde mais tarde recebeu diplomas de bacharel e mestrado em pintura. Apesar de todas as deficiências e frustrações de frequentar a escola de arte no Irã, foi lá que abriu seus olhos para uma série de desenvolvimentos positivos, incluindo aprender sobre os principais artistas, livros e novas experiências. Essa educação a ajudou a encontrar seu caminho profissional.
Desde que se formou, fez 11 exposições individuais e participou de mais de 60 exposições coletivas em todo o mundo. Seu trabalho foi exibido em Teerã, Nova Iorque, Lahore, Kwait, Reino Unido, França, Grécia, entre outros.
Ela cita suas principais influências como: Robert Rauschenberg, Mark Rothko, Andrew Wyethe e Edward Hopper, embora todos sejam de diferentes escolas de arte; mas ela diz: “neste momento, o trabalho de jovens artistas iranianos contemporâneos me inspira e me faz sentir confiante sobre o que faço”.
Movahed ensina pintura figurativa no Teerã desde 2016 e já treinou mais de 150 alunos.
Seguem trechos da entrevista:
Omid Memarian (OM): Quanto da sua vida cotidiana é refletida em suas pinturas? Suas primeiras exposições, até a mais recente em Nova York, em abril de 2022, marcam diferentes períodos, crenças ou preocupações?
Zeynab Movahed (ZM): Eu acredito que sim. Desde a primeira série até a última, há referências a momentos específicos da minha vida e da minha experiência vivida. De fato, a sociedade em que vivo impactou diretamente minha vida e particularmente meu trabalho, dadas minhas diferentes lutas como mulher iraniana em meu país.
Os medos que foram incutidos em nós sobre roupas femininas começaram na escola primária. Com o tempo, essas crenças se desvaneceram, e eu, como mulher e não apenas pintora, encontrei uma presença livre e ainda mais corajosa em minhas pinturas, que está diretamente relacionada às experiências vividas em diferentes fases da minha vida, não apenas sobre roupas femininas, mas também várias outras questões, tanto na minha própria vida quanto na vida de outras mulheres. Eu precisava articular essas preocupações e lutas em minhas pinturas. Então, quando você olha para o meu trabalho e minha vida, você vê que é sequencial.
OM: Galo e corvo são os principais temas de pinturas em duas das séries de suas obras. O que isso simboliza?
ZM: Na minha coleção “Estamos dormindo e você está acordado”, o galo simboliza um homem em uma sociedade patriarcal que mostra seu poder e agressão com uma reverência do tipo valentão em uma atmosfera totalmente delicada e feminina. Nas pinturas, você vê que ele está satisfeito com uma mulher submissa e tradicional, enquanto uma mulher, independente das ameaças, procura encontrar uma saída. De alguma forma, o galo é ridicularizado naquela atmosfera terna e pacífica.
No próximo período, o corvo, devido ao seu caráter diferente e ao mesmo tempo vivendo na sociedade, pode ser muito semelhante à sociedade humana. Nesta série de trabalhos, o afluxo de corvos na imagem e em torno da mulher simboliza um estrato da nossa sociedade atual. Eles impõem muitos prós e contras à mulher, mas ela é indiferente a eles e escolhe o estilo de vida que quer.
OM: Que espaços você consegue experimentar em sua pintura que pode não ser capaz de experimentar como mulher?
ZM: Não apenas como mulher, mas também como pintora (que também pode ser um homem), o campo da pintura oferece muitas possibilidades para o artista. A pintura é meu território pessoal. Eu crio qualquer imagem que eu quiser. Em muitos períodos, expressei toda a feminilidade do meu ser, seja raiva, rebelião, satisfação, dificuldades ou injustiça imposta. Emoções e qualidades que eu não tinha espaço para explorar na vida real.
Em uma sociedade como o Irã, onde a misoginia ainda existe, tanto do governo quanto da sociedade, a questão das mulheres é essencial, e não podemos ser apáticos a ela.
Um exemplo claro dessa tendência são os crimes de honra dos últimos anos e o assassinato de Mahsa Amini em setembro de 2022, que levaram a protestos em todo o país. Ela foi morta apenas por ser mulher. Esses incidentes encontram seu caminho, de uma forma ou de outra, no processo criativo de um artista consciente.
OM: Como os mundos que você cria em suas pinturas são recebidos entre públicos com diferentes origens culturais, históricas e geográficas?
ZM: O público é diferente em cada país. As mulheres se identificam mais com o meu trabalho no Irã e no Oriente Médio. No Ocidente, meu trabalho é interessante para o público. Eles veem coragem no que eu faço como uma mulher iraniana. As pessoas querem saber como as mulheres são tratadas no Irã, e obras de arte de mulheres iranianas são uma abertura para esse entendimento. Além do conceito, não importa a localização, minha técnica é apreciada.
OM: Seu trabalho foi exibido na Chicago Art Expo do ano passado, que contou com quase 200 galerias de todo o mundo. Há também centenas de galerias no Irã. As galerias iranianas estão presentes em tais eventos?
Vários artistas iranianos participaram da Chicago Expo em nome de galerias estrangeiras, mas nenhuma do Irã participou. A participação nesses eventos é muito cara para as galerias iranianas, particularmente porque a moeda iraniana perdeu muito de seu valor nos últimos anos. Mas algumas das principais galerias do Irã estiveram presentes em importantes feiras de arte, dos EUA, Dubai e Istambul. Certamente, isso não representa tudo o que acontece no campo das artes visuais no Irã. Mas ainda assim, é um passo à frente para mudar os estereótipos sobre a arte no país. Acredito que muitos artistas talentosos do Irã podem apresentar suas obras no exterior.
OM: Você fez uma exposição individual em Nova York em 2022. Quais são as semelhanças e diferenças entre essas obras e as de suas coleções anteriores?
ZM: Ao contrário das minhas coleções anteriores, onde o assunto era crucial, na minha coleção recente, a imagem em si e os elementos visuais têm prioridade. Imagens que são integradas e refletidas no vidro estão longe de sua natureza original, e com fragmentação e repetição, somos confrontados com novas imagens.
No meu trabalho anterior, as mulheres apareceram em espaços interiores privados, e o trabalho foi feito com um fundo plano e monocromático. Mas, no meu novo corpo de trabalho, o espectador se depara com espaços em camadas nos quais não há certeza. Aliás, este é o conceito da coleção: a estabilidade e instabilidade da vida e todos os seus momentos.
Uma semelhança entre esses trabalhos e os meus anteriores é a presença de mulheres, e especialmente de mim, nas imagens. Mas nas obras mais recentes, as mulheres deixaram os antigos espaços interiores e se tornaram presentes na sociedade.