Um levantamento da Antra , Associação Nacional de Travestis e Transexuais, catalogou ao menos 131 assassinatos de pessoas trans e travestis e outros 20 casos de suicídio no Brasil, em 2022.
O número apresenta uma queda de nível em comparação ao ano anterior, que contabilizou 140 mortes. O dossiê foi divulgado em janeiro deste ano, Mês da Visibilidade Trans , durante um evento no Ministério de Direitos Humanos e Cidadania.
A Antra explica no documento que a pesquisa usa dados obtidos através de fontes governamentais, órgãos de segurança pública, processos judiciais e casos veiculados na mídia, além de informações de instituições de direitos humanos, redes sociais e relatos de testemunhas.
A própria organização, porém, aponta dificuldade com “acesso a informações, que, muitas vezes, são negadas, sigilosas ou inexistentes”. E diz que “há muitos casos em que não existe respeito à identidade de gênero ou mesmo ao nome social das vítimas”, o que dificulta o levantamento e pode aumentar o risco de subnotificação.
O relatório mostra que a quase totalidade das vítimas foram pessoas com identidade trans feminina. 76% eram pessoas pardas e pretas e 52% tinham entre 18 e 29 anos.
O relatório lembra ainda que o Brasil segue liderando o ranking mundial do Trans Murder Monitoring (Monitoramento de Assassinatos de Pessoas Trans), feito pela organização Transgender Europe (TGEU).
Ao Global Voices , uma organização europeia diz que pode haver divergências entre seu levantamento e da Antra pela metodologia usada, e que entre outubro de 2021 e setembro de 2022 registrou 96 mortes de pessoas trans no Brasil. A secretária de Articulação Política da Antra, Bruna Benevides, afirma que as divergências acontecem por conta do período de análise e publicação das contagens.
Para Amanita Calderón-Cifuentes, representante da TGEU, de qualquer forma, o número de casos registrados é sempre abaixo da realidade devido, principalmente, a dois fatores: subnotificação pela falta de confiança das pessoas trans nas forças policiais e falhas em registros da polícia e imprensa, que muitas vezes identificam pessoas trans apenas como homens gays ou mulheres lésbicas.
Because of these reasons we are convinced that the real number is a lot higher.
(…) We believe that the sexist, queerphobic and transphobic policies and laws promoted by the government of Bolsonaro, led to an increasing trans-misogynistic sentiment that grew even stronger in the Brazilian culture during that period. The same way we see it happening now with other countries, like the United States of America.
Por essas razões, nós acreditamos que o número real seja muito maior.
(…) Nós acreditamos que o machismo, políticas queerfóbicas e transfóbicas e leis promovidas pelo governo Bolsonaro levaram a um crescente sentimento trans-misógino que aumentou muito na cultura brasileira nesse período. Da mesma maneira que vemos acontecer agora em outros países, como nos Estados Unidos.
Conflito entre os dados
Não há censo ou pesquisa sobre o perfil da população LGBTQIA+ e da violência contra ela realizados por fontes oficiais ou autoridades brasileiras.
Assim, dados sobre o cenário geralmente dependem de levantamentos feitos por organizações e iniciativas civis que não possuem os mesmos aparatos do Estado e muitas vezes partem de enfoques próprios. A própria Antra é uma das organizações que integra o Observatório de Mortes e Violências LGBTI+ no Brasil, que recentemente publicou a nova edição do Dossiê de Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil.
Uma pesquisa, feita em 2021 pelo Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT) e outras organizações voltadas a comunidade dos homens trans, por exemplo, revelou que, dos 1.217 indivíduos trans masculinos entrevistados, 12,7% possuíam nível superior completo, enquanto 11% não completou o Ensino Médio.
Dos 1.113 profissionais contratados em 2022 através da Transempregos, o maior e mais antigo projeto de empregabilidade de pessoas trans no Brasil, 38% possuíam, ao menos, curso superior.
Em conversa com o Global Voices, Márcia Rocha, primeira conselheira transgênero da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo e uma das fundadoras da Transempregos, avalia:
Precisaria haver uma pesquisa nacional ou dentro do próprio IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) que abrangesse a população como um todo. Nós não temos esses dados (…) É todo um contexto, mas nós precisamos de consultas mais profundas e mais atentas a essas questões todas, para não simplesmente reproduzir um discurso que não corresponde à realidade de fato.
Rocha explica que a falta de dados oficiais pode dificultar ainda a visibilidade dessa população e aponta:
O Brasil não é pior que os outros países em relação à violência, em relação à discriminação, à falta de emprego. É melhor do que a grande maioria, porque em 40% do mundo ser trans é crime, a relação homossexual é crime. Em muitos outros não é crime, mas é extremamente repressor.
No Brasil, é (considerado crime de) injúria racial atacar uma pessoa trans ou travesti.
Calderón-Cifuentes também diz que os números não permitem afirmar que o Brasil seja o país mais perigoso do mundo para pessoas trans, uma vez que há dificuldade para se conseguir dados em países de outras regiões como África, Oriente Médio ou Ásia Central:
There is a severe lack of data on trans communities world wide, and very little funding to pursue the necessary research. There is also very little representation of trans people in research, which is fundamental to unravel the dynamics behind the oppression we experience daily, as it is only us who fully grasp the needs of our communities and truly understand the population studied.
Há uma falta severa de dados sobre comunidades trans em todo o mundo, e pouquíssimo financiamento para seguir com as pesquisas necessárias. Também há pouquíssima representação de pessoas trans em pesquisas, o que é fundamental para revelar as dinâmicas por trás das opressões que experimentamos todos os dias, já que só nós entendemos integralmente as necessidades de nossas comunidades e a população estudada.
E complementa sobre o Brasil:
What I can say without a doubt, is that trans people experience a lot violence, discrimination and harassment in Brazil, and their government HAS to take actions about this to reduce the high number of yearly murders. Not ONE SINGLE person should ever be killed because of their gender identity. In Brazil we have over 200 in the last 2 years.
O que posso dizer sem dúvida é que a população trans experiencia muita violência, discriminação e assédio no Brasil, e o governo PRECISA adotar ações sobre isso para reduzir o alto número anual de assassinatos. NENHUMA pessoa deveria ser morta por causa de sua identidade de gênero. No Brasil, temos 200 nos últimos dois anos.
Papel do Governo Federal
O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT, Partido dos Trabalhadores), que assumiu em janeiro de 2023, trabalha com ações voltadas a população LGBTQIA+, como a recriação do Conselho Nacional de Combate à Discriminação LGBTQIA+, extinto pelo antecessor Jair Bolsonaro (PL, Partido Liberal).
Symmy Larratt, atual secretária nacional de Promoção e Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania, disse ao jornal Folha de São Paulo:
Temos que pensar em uma política pública que dê conta de existir na ponta, nos estados e municípios, que seja atrativa para essas outras esferas de gestão (…) É muito mais fácil dialogar com a sociedade se você fala sobre as necessidades mais urgentes da comunidade trans.
O dossiê da Antra aponta também registros de violações contra os direitos humanos de pessoas trans: 142 casos em 2022. Na visão da organização, a “política estatal de subnotificação da violência lgbtifóbica” segue sendo um problema.
Planos sobre um censo que colete informações sobre esta parte da população ainda não foram revelados, mas o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) e o Ministério da Igualdade Racial (MIR) — este liderado por Anielle Franco, irmã de Marielle Franco, assassinada em 2018 — têm assumido compromissos com a comunidade queer brasileira.
No final de janeiro, a Antra apresentou o dossiê mais recente sobre de violência contra pessoas trans ao governo federal.
Na ocasião , o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania Silvio Almeida declarou:
Quando falamos sobre gênero e sexualidade, somos acusados de sermos identitários. Pergunto a essas pessoas se é possível construir um país com os números que vemos agora.
É possível construir um país apoiando o assassinato de pessoas só porque elas são o que elas são? Se não tivermos a decência de mudar essa realidade, não mereceremos ser um país.