Criada há 70 anos, camisa da seleção brasileira foi ideia de escritor defensor da democracia

Aldyr Schlee, o criador da "canarinho", camisa oficial da Seleção Brasileira | Imagem: Gilberto Perin, uso sob licença CC BY-NC 2.0

Aldyr Schlee, o criador da “canarinho”, camisa oficial da Seleção Brasileira | Imagem : Gilberto Perin, com uso sob licença CC BY-NC 2.0

Em setembro de 1953, o jornal Correio da Manhã abriu um concurso pedindo sugestões para um novo uniforme da seleção brasileira de futebol. Depois de ver o país perder uma Copa do Mundo em casa, contra o Uruguai, três anos antes, esta era a tentativa de dar uma nova cara à roupa mais importante do Brasil.

O requisito era ter nela as cores da bandeira nacional no lugar do branco, que já usado por outras equipes.

Um jovem de 19 anos, que vivia na fronteira sul, próximo ao país que causou o chamado “Maracanazo” – e que simpatizava com os uruguaios, começou a traçar o papel com ideias. A camisa amarela, a “canarinho”, criada por Aldyr Garcia Schlee, foi a escolhida e se transformou em uma das mais icônicas do futebol mundial. A estreia foi em 1954.

Porém, passados ​​70 anos, o uniforme da seleção brasileira, que teve várias versões e acompanhou cinco títulos mundiais em campo desde então, se transformou em um símbolo de protestos de direita e extrema-direita no Brasil, um caminho muito diferente da história de vida de Schlee, que morreu em 2018. 

O filho de Schlee, que leva o mesmo nome do pai, Aldyr Rosenthal Schlee, conversou com o Global Voices sobre as experiências vividas pelo pai jornalista, ilustrador, acadêmico, escritor e defensor da democracia:

É uma coisa muito triste ver o que aconteceu, porque o pai — politicamente e evidentemente — jamais estaria do lado da gente que vestiu essa camiseta ultimamente.

Schlee, além do futebol

O criador da camiseta símbolo nacional nasceu em Jaguarão, no Rio Grande do Sul, uma cidade que tem hoje cerca de 26 mil habitantes na fronteira entre o Brasil e o Uruguai. Criado em meio a duas culturas, ele se mudou para o município de Pelotas, a cerca de 140 quilômetros, ainda na adolescência.

Foi ali que Aldyr se desenvolveu profissionalmente e criou sua família, e onde iniciou carreira jornalística, desenhando os esquemas de gols das rodadas num jornal local.

Logo, ele também se consolidou na carreira acadêmica e literária. Doutor em ciências humanas, ele foi professor universitário, fundou uma universidade e um jornal, conquistando prêmios no jornalismo e na literatura.

Desenhos e rascunhos de Aldyr Schlee | Imagem: Arquivo pessoal

Desenhos e rascunhos de Aldyr Schlee para o uniforme da seleção brasileira | Imagem: Arquivo pessoal/Utilizada com permissão

O outro Aldyr, o filho, comenta que por se tratar de uma época em que o esporte ainda não trazia ganhos milionários, o prêmio e a repercussão pela criação da camisa da seleção brasileira não foram tão grandes.

Foi com a internet, décadas depois, que o pai se tornou realmente conhecido:

O futebol não tinha as proporções que tem hoje. A gente não pode imaginar o futebol dos anos 1950 (com a importância que tinha naquela época) com a importância que tem hoje. Hoje qualquer coisa no futebol é uma coisa milionária, mas naquela época era tudo semiprofissional.

Além de ter seu desenho escolhido, Schlee conseguiu um estágio no jornal que organizou o concurso, no Rio de Janeiro. O filho lembra que o período “foi a coisa mais importante pra ele” e suas lembranças sempre percorriam esse tempo.

Pela democracia

O herdeiro caracteriza o pai como um defensor da democracia, que sempre “se postou contrariamente a qualquer coisa totalitária”, como a ditadura militar, no Brasil, iniciada após um golpe de Estado em 1964.

Aldyr Schlee nunca foi ligado a partidos políticos, mas chegou a ser intimado pela polícia e detido, lembra o filho.

Em uma ocasião, ele foi acusado de ser comunista por exibir aos seus alunos universitários um texto “que falava da forma como a Constituição estava sendo violada com o que estava naquele momento”, lembra o filho:

Uma aluna levou o texto para o pai dela, que entregou para um capitão do Exército, que era parente deles […] Em função disso meu pai passou a ser acusado de ser comunista, teve que enfrentar Inquéritos Policiais Militares (IPMs), respondendo por subversão e pela forma como sempre se postou.

O filho ainda comenta que as perseguições e censuras da época tiveram impacto direto na carreira acadêmica de Schlee, e o impediram de defender sua tese de doutorado, com tema relacionado à autodeterminação dos povos:

A vida familiar ficou muito difícil. Chegamos a pensar em fugir para o Uruguai. Isso só foi melhorar quando terminou a ditadura, lá no final dos anos 1970 e início dos anos 1980.

Fundador da Faculdade de Jornalismo da Universidade Católica de Pelotas (UCPel), Aldyr ficou fora da instituição durante os anos em que o regime militar governou o país. A ascensão da carreira como docente no curso de direito também foi afetada.

Desenho de Aldyr Schlee enviado para o concurso que definiria a camisa da Seleção Brasileira, em 1953 | Imagem: Arquivo pessoal

Desenho de Aldyr Schlee enviado para o concurso que definiria a camisa da Seleção Brasileira, em 1953 | Imagem: Arquivo pessoal/Uso com permissão

“Amarelinha” como instrumento da direita

Em 2015, a camisa amarela da seleção brasileira começou a aparecer em protestos contra o governo da então presidente Dilma Rousseff (PT, Partido dos Trabalhadores) – Dilma sofreu impeachment em 2016.

Com a ascensão do deputado de extrema-direita Jair Bolsonaro (hoje no PL, Partido Liberal), o uniforme foi sendo cada vez mais apropriado por conservadores e apoiadores dele.

O filho mais velho de Aldyr teceu críticas à essa apropriação e falou sobre o impacto para a família:

Eu acho que no fundo ele estaria muito triste, assim como a gente está. Eu até converso muito com a minha mulher e ela tem uma posição — que eu acho que é a mais inteligente — que é de que a gente não pode largar mão desta camiseta. Assim como não pode largar mão da bandeira nacional. Isso não é deles, isso é nosso. Eu mesmo tenho muita dificuldade de vestir essa camiseta. Eu não vesti [na Copa do Mundo de 2022]. Até torcer pra seleção brasileira na Copa do Mundo foi muito difícil.

Com as eleições presidenciais de 2022, a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e a Copa do Mundo, o debate sobre a ressignificação da camisa canarinho cresceu, com rappers, movimentos negros e moradores da periferia buscando resgatar o fardamento, como mostrou o site UOL. 

Cerca de uma semana após a posse de Lula e com a invasão de manifestantes bolsonaristas às sedes dos três poderes em Brasília, em 8 de janeiro deste ano, a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) se manifestou publicamente sobre o uso político da camiseta:

Em novembro, pouco antes da Copa, a entidade já havia começado uma campanha para desligar a camisa da seleção do uso pela direita – na época, bolsonaristas acampavam pelo país questionando o resultado das eleições.

O filho de Schlee, porém, é cético sobre uma possível ressignificação no contexto atual:

Eu vejo com muita tristeza essa apropriação indébita. Hoje, quando vejo alguém na rua, fico desconfiado. Olho de lado, não quero chegar perto dela. Não tenho condições de vestir hoje esta camiseta, assim como meu pessoal também não.

Aldyr Rosenthal comenta ainda que seu pai, há anos, já não via tanta importância em ser o criador da camiseta e costumava torcer para o Uruguai. Em 2018, Schlee brincou que escolheria um novo uniforme todo marrom para o país, já que “estava uma merda”.

Na fronteira

A vida entre fronteiras influenciou a vida de Aldyr Schlee, sobretudo no campo literário. Seu último livro, publicado postumamente, foi o “Dicionário da Cultura Pampeana Sul-Rio-Grandense“.

O filho afirma que foi “uma construção que ele fez como escritor”:

Toda obra do meu pai é fundada nesta região entre Jaguarão e Rio Branco, entre o extremo sul do Brasil e o nordeste do Uruguai. Esta é a diferença que eu faço: entre o Aldyr Schlee, o guri que nasceu ali e veio para Pelotas depois, foi ser desenhista/jornalista, e o escritor que ficou preso — e quis ficar preso — naquela microrregião. É aquele que sempre diz que aquilo ali é uma terra só: é até o título de um livro dele.

As duas pátrias, coincidentemente, se fizeram presentes na vida de Aldyr até sua morte, no dia 15 de novembro de 2018.

Um dia após seu falecimento, o Brasil enfrentou o Uruguai num amistoso na Inglaterra, país onde o futebol foi criado. Uma homenagem póstuma foi realizada, com um minuto de silêncio e a imagem de Schlee exibida no telão do Emirates Stadium, em Londres. O Brasil venceu a partida por 1×0.

A paixão pelo futebol mudou para sempre a vida dele. Aldyr Schlee amou não somente o futebol de campo, como também o de mesa — paixão transmitida ao primogênito que hoje, assim como o pai, participa de campeonatos da modalidade.

Schlee morreu em 2018, aos 83 anos, devido a um câncer, deixando três filhos, três netos, mais de 15 obras literárias publicadas, a paixão pelo futebol e pela vida para além das fronteiras.

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