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Ex-vice-presidente brasileiro admitiu necessidade de combater garimpo em Terra Yanomami, mas não agiu

Categorias: América Latina, Brasil, Direitos Humanos, Esforços Humanitários, Governança, Indígenas, Meio Ambiente, Mídia Cidadã, Política, Green Voices

O ex-vice-presidente Hamilton Mourão e o ex-presidente Jair Bolsonaro, durante a cerimônia de criação do Conselho Nacional da Amazônia Legal | Foto: Valter Campanato/Agência Brasil [1]/Used under license

Essa reportagem, escrita por Anna Beatriz Anjos, foi publicada originalmente [2] pela Agência Pública no dia 6 de março de 2023 e é republicada aqui sob um acordo de parceria com o Global Voices, com edições. A reportagem é parte do especial Caixa-Preta do Bolsonaro [3], viabilizado pelo apoio de leitores da Pública.

No início do ano, a crise humanitária na maior terra indígena do Brasil, a terra indígena Yanomami, localizada no norte do país, nos estados do Amazonas e Roraima, virou assunto nacional e internacional com a visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao local.

Em 20 de janeiro, o governo federal decretou emergência em saúde pública em decorrência de desassistência à população Yanomami [4] e a invasão de cerca de 20 mil garimpeiros ilegais no território, segundo estimativas de entidades indígenas, que levou à explosão do desmatamento e de problemas de saúde ligados à atividade garimpeira no território nos últimos quatro anos.

Documentos inéditos obtidos pela Agência Pública via Lei de Acesso à Informação (LAI) mostram que o governo tinha conhecimento da grave situação na terra Yanomami, que vinha sendo denunciada há meses por lideranças indígenas, mas não agiu para combater o problema.

Em uma reunião do Conselho Nacional da Amazônia Legal ocorrida em 30 de agosto de 2022, seu então comandante, o general da reserva Hamilton Mourão, na época vice-presidente do Brasil, admitiu que garimpeiros seguiam “invadindo a área Yanomami [5]” e que, por esse motivo, havia a “necessidade de ser deflagrada uma operação de grande envergadura” no território, algo que não ocorreu durante todo o governo de Jair Bolsonaro.

A fala está registrada nas atas dos encontros realizados pelo colegiado, que Agência Pública obteve via Lei de Acesso à Informação (LAI). Mourão foi eleito senador [6] em 2022.

Reativado em 11 fevereiro de 2020 pelo governo Bolsonaro e colocado sob a alçada da Vice-Presidência da República, o Conselho Nacional da Amazônia Legal [7] (CNAL) é o órgão responsável por “coordenar e integrar os esforços federais pela preservação, proteção e desenvolvimento da Amazônia brasileira e cooperação Amazônica [8]“.

Na prática, a principal ação do Conselho foi a viabilização de três Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLOs) na Amazônia – operações em que as Forças Armadas são convocados pela presidência da República para atuar em certo local com poder de polícia até o restabelecimento da normalidade –, criticadas pela militarização do combate a crimes ambientais e pela incapacidade de frear a alta do desmatamento no bioma, apesar de terem consumido R$550 milhões [9] (cerca de US$ 108,4 milhões) dos cofres públicos.

Ataques contra a imprensa

Ao longo das dez reuniões ordinárias do Conselho, de fevereiro de 2020 até o fim do governo Bolsonaro, em dezembro de 2022, a invasão garimpeira no território Yanomami foi citada apenas em outra ocasião, em que sequer foram propostas medidas de enfrentamento ao problema.

Durante o sétimo encontro do colegiado, em 23 de novembro de 2021, o então ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, criticou uma suposta criação de “narrativas” em relação à situação.

Segundo o registro, ele afirmou que seu ministério tinha “atenção especial com os Yanomamis, onde existe um problema crônico há mais de três décadas”, e que “pessoas que nada têm de concreto em relação ao interesse da população indígena exploram esse fato para criar as mesmas narrativas de sempre”. No texto, Mourão aparece logo em seguida dizendo que o caso “vem sendo explorado de forma totalmente inverídica pela mídia”.

Alguns dias antes, o Fantástico [10], programa dominical da TV Globo, programa de grande audiência da tv brasileira aos domingos, havia divulgado reportagem com imagens inéditas da crise sanitária na Terra Indígena Yanomami.

As atas das dez reuniões ordinárias do Conselho mostram que os ataques ao trabalho da imprensa eram recorrentes, refletindo um comportamento frequente do presidente Bolsonaro e seus aliados durante seus quatro anos na presidência.

Hamilton Mourão, além de endossar as críticas sobre a suposta criação de “narrativas” em relação aos Yanomami em novembro de 2021, também se mostrou descontente com cobertura jornalística dos assassinatos [11] do indigesta Bruno Pereira e do repórter britânico Dom Phillips, em junho de 2022, no Vale do Javari, no Amazonas. Pereira trabalhava na União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) [12] auxiliando no combate contra os crimes ambientais que acometiam o território, como a pesca e caça ilegais, depois de anos como servidor público na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) [13].

Em 30 de agosto de 2022, durante a nona e penúltima reunião do CNAL sob a presidência de Mourão, ele “citou que a mídia, se aproveitando das lamentáveis mortes do indigenista da Funai e do jornalista, explorou o fato de os ministérios envolvidos no combate às ilegalidades ambientais estarem enfrentando dificuldades para cumprir com suas atribuições, em face de restrições orçamentárias por parte do governo federal”.

Essa é a única menção à situação na TI Vale do Javari, alvo de diversas invasões, denunciadas exaustivamente pela Univaja, e onde há a maior concentração de povos indígenas isolados do mundo. Apesar de se tratar de área de fronteira, o que envolve segurança nacional, nos registros não há referência a nenhuma discussão sobre o papel do Exército na região.

Política de mineração

Enquanto a crise humanitária provocada pelo garimpo ilegal em terras indígenas foi pouco abordada nas reuniões, a defesa da liberação da mineração nestes territórios ocorreu em pelo menos duas reuniões do CNAL.

Hamilton Mourão se manifestou a favor da medida em mais de uma ocasião. Em uma delas, em fevereiro de 2021, o general da reserva chamou de “hipocrisia” a resistência à aprovação do Projeto de Lei 191/2020, que propõe autorizar a pesquisa e lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos em territórios indígenas – a Constituição brasileira condiciona essa possibilidade à decisão do Congresso Nacional e à consulta às comunidades afetadas.

Ele disse ainda ter “a esperança de que com as novas lideranças dentro do Congresso, com a nova maioria sendo composta, consigamos avançar na questão da regularização fundiária; a questão da mineração em terra indígena é algo que está 33 anos parado no Congresso para definir e não define”. Alguns dias antes, a Câmara dos Deputados e o Senado haviam eleito novos presidentes, com apoio bolsonarista.

O projeto de lei sobre mineração em terras indígenas (PL 191/2020) não foi transformado em lei, tampouco o outro projeto de lei (PL 2.633/2020) ao qual Mourão se referia quando citou a necessidade de avançar na “questão da regularização fundiária”. Poucos dias depois da reunião, ainda em fevereiro de 2021, uma nova proposta (PL 510/2021) com a mesma finalidade foi apresentada. Ela segue em tramitação no Senado em conjunto ao PL 2.633/2020, aprovado na Câmara em agosto de 2021.

Em trechos dos registros dos encontros do Conselho Nacional da Amazônia Legal, as duas pautas são descritas como prioridade do governo Bolsonaro, sobretudo a regulação fundiária, mencionada em vários momentos.

A 16 dias do fim da gestão Bolsonaro, com Lula já eleito, em sua última reunião, o conselho apresentou um plano [14] para a Amazônia, chamado Plano Nossa Amazônia [15], com medidas que o próprio governo descumpriu e atacou durante seus quatro anos de duração, como “fortalecer órgãos de fiscalização e de combate aos ilícitos ambientais e fundiários” e “restabelecimento da governança Fundo Amazônia”, paralisado logo no início da gestão Bolsonaro.

A Agência Pública procurou o senador Hamilton Mourão para que este pudesse prestar esclarecimentos sobre as informações reveladas pela reportagem, mas não obteve retorno. Após a publicação, ele usou as redes sociais para caracterizar as informações como “inverídicas” e fruto de “parcialidade característica do jornalismo de baixa qualidade”.

A Agência Pública reafirma [16] as informações presentes na reportagem e repudia qualquer tentativa de intimidação e ataque à reputação da Pública e de seus repórteres.