Lei há 20 anos, ensino de história afro-brasileira ainda tem desafios na prática das escolas

Andreia Tenório é professora na escola onde estudou quando criança, e tenta dar aos alunos uma experiência diferente da sua sobre histórias negras | Foto: Léu Britto/Agência Mural

Este texto é de autoria de Jessica Bernardo e foi publicado originalmente em 8 de fevereiro de 2023, no site da Agência Mural. O artigo é reproduzido aqui em acordo de parceria com o Global Voices, com edições.

As aulas sobre o período da escravidão eram motivo de vergonha para Andreia Tenório, 37 anos, mulher negra, quando ela estudava na Escola Municipal de Ensino Fundamental General de Gaulle, no Jardim Ibirapuera, distrito do Jardim São Luís, na zona sul de São Paulo, nos anos 1990. No Brasil, o sistema vigorou por mais de três séculos, sendo abolido apenas em 1888.

“Era o meu pior momento na escola”, lembra ela.

Naquela época, a história da população negra no Brasil era reduzida aos horrores da época escravocrata. Não se falava nas escolas sobre temas como a história e a cultura afro-brasileira, nem sobre grandes personalidades negras do país, como o advogado e abolicionista Luís Gama ou a escritora Carolina Maria de Jesus.

Hoje, Tenório é professora na mesma escola em que estudou. A vergonha, porém, virou orgulho em poder oferecer para os alunos uma experiência diferente da que viveu em sala de aula.

Mais da metade da população brasileira se auto identifica como negra, e o país foi um dos principais destinos de navios com pessoas escravizadas, que eram retiradas de regiões onde hoje estão países como Nigéria, Moçambique, Angola.

Os livros infantis que Tenório costuma levar para suas turmas trazem histórias com protagonistas pretos. Temas como a beleza do cabelo crespo e o combate ao racismo fazem parte do dia-a-dia da escola, como ela contou à Mural:

Teve uma coisa muito emblemática no ano passado: as meninas começaram a ir [para a escola] de cabelo solto e de black [power] também, de trancinha. Aí elas chegavam de trança e falavam “olha, professora, o meu cabelo tá trançado igual você faz”.

Mas a mudança nas salas de aula em todo o país vai além dos professores, ela é fruto também de uma importante alteração na legislação brasileira.

Há 20 anos, o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira se tornava obrigatório nas escolas públicas e privadas com a Lei 10.639, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em seu primeiro mandato. Lula voltou a ser presidente do Brasil em janeiro deste ano, pela terceira vez.

A lei diz que o currículo nas escolas deve incluir “estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil”.

“[Passamos a] olhar de fato para a contribuição africana e dos descendentes em todas as épocas da história do Brasil. Nas artes, na ciência, na resistência, dentro das forças armadas, dentro de instituições de governo”, afirma Cibele Lima, 38, educadora da EMEF Joaquim Bento Alves de Lima Neto, no distrito do Grajaú, zona sul de São Paulo.

Ainda assim, afirma Cibele, é preciso investir mais na formação de professores já que muitos, partindo da própria experiência, não tiveram contato com o tema durante mesmo durante a graduação.

A professora, por exemplo, mudou a abordagem nas aulas sobre escravidão depois de fazer uma disciplina sobre educação étnico-racial no mestrado em história.

Além disso, ela defende que os avanços do tema na vida escolar precisam ser acompanhados de uma maior discussão sobre o racismo estrutural na sociedade. Cibele ressalta:

Enquanto a gente estiver numa sociedade que reproduz o racismo de forma tão natural, que não enxerga e não reflete, isso vai estar dentro da escola também porque a escola é um reflexo, é uma micro sociedade.

Moradora e professora da cidade de Itapevi, na Grande São Paulo, Caroline Vaz, 30 anos, conta que casos de racismo seguem acontecendo entre alunos, mesmo com o tema aparecendo mais nas aulas.

A professora da Escola Estadual Paulo de Abreu relata que já precisou agir diante de comentários racistas de estudantes e afirmar que racismo é crime. “Muitas vezes vi um aluno virar para o outro e chamar de ‘macaco’ como se fosse um bom dia”, relata ela.

No dia a dia das aulas, Vaz afirma que busca trabalhar a autoestima dos alunos negros e debater a pauta étnico-racial para além dos conteúdos que aparecem no currículo escolar, como apartheid na África do Sul e a escravidão.

Ela também critica a tendência de professores, em geral, adotarem um ensino mais euro-centrado nas aulas de História.

A geógrafa Rose Bernardo, que é professora de ensino médio na E.E. Professor Clóvis de Silva Alves, em Itaquaquecetuba, também na Grande São Paulo, defende que o currículo escolar dê mais espaço aos conteúdos sobre outros continentes, além da Europa:

O aluno, às vezes, até acredita que a África é um país, que é tudo uma coisa só. [O currículo escolar] poderia ser mais abrangente nesse sentido de tornar a África tão comum para o aluno quanto a Europa.

A professora lembra que o continente africano tem um dos biomas mais fascinantes do mundo, a savana, além de ser um local importante para as discussões sobre alimentação no planeta.

Uma das principais queixas de especialistas em educação e de membros do movimento negro sobre os 20 anos da lei é a falta de fiscalização sobre o cumprimento dela na prática, por secretarias municipais e estaduais de educação.

O tema é visto como importante inclusive para combater a diferença de aprendizagem entre alunos brancos e negros. Uma pesquisa com dados do Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica) de 2019 mostrou que há uma diferença expressiva no percentual de aprendizado de estudantes brancos e pretos, no Brasil.

Os resultados mostraram que as diferenças de aprendizagem aparecem mesmo quando os estudantes pertencem ao mesmo grupo socioeconômico.

Em matemática, entre os alunos de nível socioeconômico alto, 34,4% dos brancos têm aprendizado adequado, enquanto apenas 17,3% dos estudantes negros apresentam o nível de aprendizagem esperado. Entre os estudantes de baixo nível socioeconômico, 15,8% dos brancos têm o desempenho esperado na disciplina contra 8% entre os negros.

Billy Malachias, consultor da área de educação do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), avalia que a Lei 10.639 é uma conquista do ativismo negro e movimentou a sociedade nas discussões sobre o racismo nos últimos anos, mas que o cumprimento dela não tem sido homogêneo em todo o país.

O professor explica que as escolas precisam investir em educar os alunos para uma sociedade diversa e que falar na pauta étnico-racial é educar para essa convivência.

Ele sugere um novo olhar para tudo o que a África tem para ensinar:

Foram os africanos que introduziram aqui técnicas de mineração, técnicas agrícolas. E isso não aparece de uma forma dinâmica, associado aos processos constitutivos do Brasil.

A escola tem muito a aprender com a [história da] África.

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