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Autoridades venezuelanas espionaram 20% dos usuários de uma das maiores empresas de telecomunicações

Categorias: América Latina, Venezuela, Ativismo Digital, Direitos Humanos, Liberdade de Expressão, Mídia Cidadã, Tecnologia, GV Advocacy, Unfreedom Monitor

Imagem cedida por Ameya Nagarajan

Há anos, os ativistas de direitos digitais na Venezuela suspeitavam de práticas de vigilância e controle injustificado de comunicações privadas no país, mas, tinham poucas provas até junho de 2022. Nesse mês, a Telefónica, empresa-mãe da Movistar Venezuela, publicou um relatório de transparência revelando dados que apontam para um programa de vigilância em massa, que utiliza interceptações sistemáticas e não metódicas das comunicações privadas de seus clientes por ordem de entidades do governo venezuelano.

Segundo o relatório, a Telefónica interceptou, a mando do governo de Maduro, as comunicações de mais de 1,58 milhão de usuários da Movistar em 2021. Isso corresponde a 20,5% das contas de telefone e internet da empresa. Interceptaram ou “grampearam” chamadas, vigiaram mensagens SMS, compartilharam a localização das pessoas e vigiaram seu tráfego de internet. O número de linhas afetadas pelas interceptações aumentou sete vezes desde 2016, quando houve  234.932 violações de acesso.

Na época, o relatório da Telefónica provocou uma grande discussão sobre o autoritarismo digital e a privacidade na Venezuela, mas o mais importante é que destacou o alcance da vigilância do governo de Maduro e a perseguição das vozes dissidentes. A intimidação, a perseguição, a detenção arbitrária, os maus-tratos e a tortura de ativistas, trabalhadores humanitários, jornalistas e cidadãos foram amplamente documentados no último relatório da Missão de Apuração de Fatos das Nações Unidas [1], publicado em setembro de 2022. O governo autoritário da Venezuela sob comando de Nicolás Maduro remonta a 2013, com a eleição do mandatário após a morte de Hugo Chávez. Isso teve um grande impacto no ecossistema dos meios digitais do país.

O relatório da Telefónica também aponta que a Movistar Venezuela não recebeu pedidos de interceptação ou coleta de metadados por meio de mandados judiciais, como estipula a lei venezuelana, mas sim da Polícia, do Exército e de outras entidades como o Ministério Público, o Corpo de Investigações Científicas Penais e Criminais (CICPC) e até a Universidade Nacional Experimental de Segurança (UNES).

Os metadados de comunicação são informações sobre a comunicação além do seu conteúdo. Por exemplo, para quem o usuário telefona, a localização e duração da chamada, as informações de roteamento ou os dados pessoais do cliente. O relatório da Telefónica identificou 997.679 linhas (13 % das linhas da Telefónica) afetadas pelos pedidos de metadados.

Os governos argumentam frequentemente que a interceptação de comunicações pode ser uma ferramenta legítima para investigar crimes graves. No entanto, os ativistas de direitos digitais apontam que esses poderes devem ser utilizados de acordo com as leis nacionais e internacionais, as normas de direitos humanos e o devido processo de proteção de direitos dos cidadãos. O governo não respondeu ao relatório da Telefónica.

Na Venezuela, as ordens para interceptar comunicações devem vir dos tribunais. Existem exceções específicas em caso de emergências e crimes flagrantes, para os quais o CICPC pode solicitar diretamente às empresas de comunicações que intervenham. Ainda assim, nestes casos, um promotor público deve ser notificado e a sua aprovação incluída no arquivo de investigação. As leis venezuelanas também estipulam que o promotor mantenha a transparência e a legitimidade durante todo o processo. O marco legal para intervir nas comunicações privadas está estabelecido no Código Orgânico Processual Penal, artigos 205 e 206. Para a interceptação de metadados, as solicitações devem passar pela resolução administrativa nº171 e pelo artigo 29 da Lei Contra o Sequestro e a Extorsão.

A grande quantidade de linhas interceptadas destacadas no relatório da Telefónica indica além de uma quantidade incomum de casos de emergência; para muitos, aponta a violação sistemática dos direitos civis e digitais. Embora seja a primeira vez em que há provas substanciais da magnitude do problema, a ONG VE sem Filtro, focada nos direitos digitais e nas restrições de internet no país, registrou interceptações similares em seu relatório anual de direitos digitais de 2021 [2].

O relatório da VE sin Filtro chama a atenção para um incidente específico: a conta de WhatsApp de uma ONG venezuelana, que era usada para se comunicar com as vítimas da violência estatal, sofreu um ataque cibernético. “Ao contrário dos casos que costumamos ver, nenhum dos usuários foi enganado ou sofreu  roubo de identidade. Este incidente foi provavelmente perpetrado por agentes estatais ou em coordenação com eles, o que normalmente não ocorre no caso de golpistas ou outros tipos de criminosos. O incidente ocorreu enquanto a Venezuela era investigada pelo Serviço de Fiscalização da Corte Penal Internacional e o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas trabalhava em sua missão de apuração de fatos”.

A Telefónica também informou que as autoridades venezuelanas apresentaram um pedido para bloquear 20,5 % dos sites. Para entender melhor o contexto de solicitações com essas, a Alemanha solicitou 0,11 %, a Espanha 0,05 % e o Brasil 0,28 %. Muitos outros países latino-americanos não apresentaram qualquer pedido.

Para os ativistas de direitos humanos, os dados da Telefónica agravam outras violações de direitos humanos que ocorrem na Venezuela às mãos do governo de Maduro. Marta Valiñas, presidente da Missão de Apuração de Fatos das Nações Unidas, disse: “Nossas investigações e análises mostram que o Estado venezuelano utiliza os serviços de inteligência e seus agentes para reprimir a dissidência no país. Isto leva à prática de crimes graves e violações de direitos humanos, incluindo atos de tortura e violência sexual. Estas práticas precisam cessar imediatamente e os responsáveis precisam ser investigados e processados em conformidade com a lei”.

Visite a página do projeto para mais artigos do Unfreedom Monitor [3].