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Campos de batalha linguísticos ucranianos

Categorias: Europa Oriental e Central, Rússia, Ucrânia, Arte e Cultura, Educação, Língua, Mídia Cidadã, Mulheres e Gênero, Política, Relações Internacionais, Russia invades Ukraine: One year later, Ukrainian language, arts, and culture

Captura de tela de um vídeo de ensino do idioma ucraniano que discute as estruturas gramaticais de gênero da língua. Via YouTube [1].

Junto com as notícias de que a Ucrânia perdeu o controle [2] da cidade de Soledar perto de Bakhmut, o campo de batalha mais disputado dos últimos meses, a relutância da Alemanha em entregar tanques Leopard para a Ucrânia [3]e um novo ataque de foguetes da Rússia, que matou dezenas de pessoas e danificou instalações de geração de energia [4], havia ainda algo a mais para os usuários ucranianos das redes sociais na primeira semana após o Natal: os femininos.

Os femininos, neste caso, são as formas femininas das palavras, mas o debate mais recente estava relacionado sobretudo aos nomes de profissões e ocupações. Como as demais línguas eslavas, o ucraniano se divide em três gêneros gramaticais: o masculino, o feminino e o neutro. Alguns exemplos disso são as palavras “vchytel” (вчитель — professor) e “vchytelka” (вчителька — uma forma feminina amplamente aceita para professora). Mas para a maioria das profissões e ocupações, apenas a forma do gênero masculino é utilizada, e apenas algumas — geralmente as de menor prestígio — são encontradas unicamente no feminino, como os análogos em ucraniano de faxineira ou enfermeira. 

Em um post do Facebook [5]a jovem psicóloga, Katerina Zinass, afirmou que ser chamada de psykhologynia (psicóloga) é algo que a machuca e é sexista, assim como as demais palavras no feminino. Ela prosseguiu lamentando a ênfase “no gênero e não na profissão”. Zinass sugeriu que, ao se referir a uma profissional do gênero feminino, as pessoas deveriam usar o título “Pani” (o análogo ucraniano de senhora ou senhorita) no lugar. O post teve 19,000 curtidas, 6.800 comentários e cerca de 2.700 compartilhamentos.

A seção de comentários se transformou em controvérsia, enquanto as pessoas debatiam e defendiam seus argumentos. Abaixo estão alguns dos comentários mais interessantes e também algumas capturas de tela da conversa.

Debatendo a visibilidade, mas também a descolonização

Há anos, as discussões a respeito do uso dos femininos têm se intensificado na Ucrânia. Muitos deles não se encontram nos dicionários, inclusive aqueles referentes a novas profissões ou âmbitos nos quais as mulheres geralmente estão ausentes ou sub-representadas. Por exemplo, zastupnytsia (заступниця — qualquer cargo de deputada), ministerka (міністерка — ministra), matematykynia (математикиня — matemática). Para aqueles que apoiam o seu uso, a questão é a presença e a visibilidade das mulheres em âmbitos públicos como a economia, o governo, a ciência e a indústria das artes.

Mas um outro motivo pelo qual o debate é tão popular é que ele tem suas raízes na descolonização: a língua e a cultura ucranianas estão se distanciando da língua e da cultura da Rússia, que dominou a região durante séculos.

Durante boa parte da história, as línguas locais foram tidas como sendo de nível inferior no império russo e na União Soviética. No século 19, as autoridades imperiais tentaram restringir o uso do ucraniano por diversas vezes. Os soviéticos continuaram com esta tendência, levando a percepção de que tudo o que era ucraniano era atrasado e rural — inadequado para uma sociedade moderna urbanizada.

Até a queda da União Soviética e anos depois, na região da Ucrânia que pertenceu ao império russo, o idioma ucraniano continuou sendo percebido como uma língua rural, enquanto uma grande parte da população permaneceu, e ainda permanece, russófona. Em 2022, após a Invasão da Ucrânia pela Rússia [6], a língua russa desapareceu drasticamente do discurso público, pois a esmagadora maioria dos ucranianos começou a perceber a língua [7] como um símbolo político. 

E muitos dos que utilizam os femininos acreditam que essas formas de gênero mais igualitárias são naturais para o ucraniano e foram excluídas dele muito recentemente em meio aos esforços soviéticos de suprimir o idioma, a cultura e a identidade ucranianos. 

Mas Zinass está longe de ser a única que prefere o uso das formas masculinas, percebendo-as como sendo as mais neutras e livres de qualquer conotação social. Para muitos, algumas das novas formas femininas parecem confusas, desajeitadas. Logo abaixo, estão duas capturas de tela dos comentários feitos no post do Facebook de Katerina Zinass.

Uma captura de tela da conversa no Facebook.

Isso realmente machuca os ouvidos! Pessoalmente, eu nunca vou me acostumar com isso. Quando eles dizem algo como ‘mystkynia’ (мисткиня — artista feminina), isto é grotesco, ou ‘chlenkynia’ (членкиня — membro feminino de algo), eu tenho vontade de me matar! Manchar a língua de tal maneira!

A screenshot from the Facebook discussion.

Concordo plenamente com você porque a palavra ‘chlenkynia, likarka (лікарка – médica), psykhologynia’ e muitas outras machucam muito os ouvidos, então estas palavras não embelezam nosso idioma, de forma alguma. Por que elas machucam o ouvido? Para mim, ‘pani professor, pani likar’ soa muito melhor do que psykhologynia, medykynia (медикиня – médico feminino). Deveríamos ser mais modernos e, eventualmente, mudar alguma coisa, mas não desta maneira. Ouça como soa. Desculpe, mas é um pouco desagradável para mim, e não melódico. Eu sou contra tais palavras e mudanças.

Algumas pessoas também veem os femininos como uma tentativa das potências estrangeiras de impor suas regras e valores à Ucrânia na condição de doadoras ocidentais da mídia ucraniana, o que muitas vezes exige um aumento de mulheres representantes em sua cobertura – em conteúdo, mas também na língua [8]

Mesmo entre os profissionais do idioma, não há consenso. Alguns recomendam [9]confiar na linguagem normativa estabelecida, mas a linguagem normativa já está muito atrasada em relação ao que é usado no discurso público. E, nas últimas décadas, muitas formas novas ou antigas já foram acrescentadas ao ucraniano.

Oksana Zabuzhko entra no debate 

Oksana Zabuzhko [10], uma veterana da literatura ucraniana pós-soviética e feminista proeminente, reagiu [11] chamando aqueles que se opõem aos femininos, de “povo da cultura russa”. Zabuzhko insistiu que, enquanto no russo os femininos às vezes possuem um sentido depreciativo, no ucraniano, o sentido é neutro. Ela escreveu que, na Ucrânia, as mulheres sempre desfrutaram de mais liberdade do que na Rússia e que a maneira como os femininos são utilizados em cada língua na verdade demonstram o abismo cultural entre as duas nações. Zabuzhko chamou a defesa dos femininos e a defesa da Ucrânia no campo de batalha “de certa maneira, a mesma guerra”.

O post de Zabuzhko no Facebook também viralizou, com 6.400 repostagens e centenas de comentários de apoio, assim como de ódio e reprovação. Alguns, incluindo muitos ucranianos, ficaram indignados por serem ligados à cultura russa apenas por não gostarem da nova forma feminina. Em adição ao que muitos descreveram como sendo o seu tom, geralmente indelicado e altivo, Zabuzhko possivelmente desencadeou raiva, dado que no clima atual, sugerir que alguém está ligado à Rússia é frequentemente usado como a última – e mais baixa – arma em uma discussão. Vários usuários também apontaram imediatamente erros históricos e etimológicos em suas alegações. Por último, mas não menos importante, um usuário postou uma gravação recente [12] da entrevista de Zabuzhko em ucraniano, na qual ela se chamava constantemente de escritora, autora e literata no masculino. 

Na verdade, a língua russa também tinha vários femininos. Seu surgimento ou desaparecimento em ambas as línguas refletia o desenvolvimento de ambas as sociedades, que estiveram muito ligadas na era das transformações econômicas, políticas e sociais dos séculos 19 e 20. Os intelectuais russos liderado a mesma discussão [13], e as feministas russas travaram a mesma luta. No entanto, para as russas, a questão raramente se tornou uma questão de igualdade de gênero e direitos e liberdades das mulheres.

Para alguns ucranianos, no entanto, o ponto principal da discussão é na verdade a flexibilidade e a inclusão de seu idioma em oposição ao russo.

Quando se fala em russo, há duas maneiras de dizer “na Ucrânia” – uma usa a preposição “na” que significa mais precisamente “na superfície”, enquanto a outra usa a preposição “v” que significa “dentro, em”. A primeira ainda é usada oficialmente na Rússia, enquanto dentro da Ucrânia quando se fala russo, “na” é considerado uma forma colonial enquanto “v” é a forma politicamente correta [14].

Assim, o ucraniano pode adotar o que os russos não podem. Desde novas grafias de palavras estrangeiras quebrando tradições comuns de ambas as línguas, novas regras gramaticais e a introdução de palavras novas ou esquecidas, e de femininos. Uma coisa é clara: os ucranianos continuarão a lutar para se adaptar a uma paisagem linguística em constante mudança.