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Cidadãos deixam a Rússia: “Nos privaram de um ‘lar’, também”

Categorias: Ásia Central e Cáucaso, Europa Oriental e Central, Oriente Médio e Norte da África, Belarus, Geórgia, Israel, Polônia, Quirguistão, Rússia, Ucrânia, Direitos Humanos, Guerra & Conflito, Liberdade de Expressão, Mídia Cidadã, Migração e Imigração, Protesto, Refugiados, Relações Internacionais, Russia invades Ukraine: One year later

“Não à guerra” escrito na neve no Quirguistão. Foto autoral utilizada com permissão da comunidade Global Voices.

A invasão russa à Ucrânia [1]arruinou a vida de milhões de pessoas. Acima de tudo, destruiu o cotidiano pacífico dos ucranianos, que agora lutam destemidamente pelo seu país e fogem da guerra em números espantosos. Também, mudou radicalmente a vida de muitas pessoas do país agressor, a Rússia, e do país vizinho governado por uma ditadura, a Bielorrússia.

O regime russo assumiu que tinha uma carta branca [2]para aumentar as repressões internas, comprimindo assim os últimos resquícios de dissidência explícita. A única saída para alguns russos que não concordaram em ser cúmplices da guerra, foi fugir para o exterior, para o mundo onde ninguém os aguardava.

A Global Voices falou com russos e bielorrussos que acharam impossível permanecer no país que iniciou a invasão.

Na Polônia, não se equipara os emigrantes ao país de onde fogem.

A Polônia [4]tem relações difíceis com a Rússia. O país abriu suas portas [5]para os ucranianos em fuga e está construindo um muro [6] na fronteira com a Rússia em Kaliningrado.

Logo após a invasão, Elena foi para Varsóvia pela facilidade: “Não há necessidade de traduções juramentadas; há oportunidades para solicitar autorização de residência, para trabalhar ou estudar”. Para ela, esta mudança é um bilhete só de ida: “Vivi na Bielorrússia desde a infância. Depois da reação pós-eleitoral [7] contra os protestos em 2020, ficar lá tornou-se assustador”.

Logo, fará um ano que a guerra começou e para muitos russos a vida foi dividida em antes e depois. Há muito tempo Elena aceita que a guerra não terminará tão cedo.

Pode ser difícil e preocupante para as pessoas fugirem da Rússia, onde a mídia escreve sobre “duzentos anos de ódio organizado” [8]. Mesmo antes da invasão russa à Ucrânia, em fevereiro de 2022, a mídia alinhada com o Estado já tinha relatado avidamente sobre a “russofobia no ‘ocidente coletivo'”. Mas a realidade é muito diferente do quadro criado [9] pela propaganda. Elena afirma:

The Poles have suffered enough from the imperial habits of first Tsarist Russia, then the Soviet Union. But they do not equal the country  and the people.

Os poloneses já sofreram muito com os hábitos imperiais da primeira Rússia czarista, depois com a União Soviética. Mas eles não equiparam o país ao povo.

Elena trabalha e estuda na Polônia, porém ainda é difícil olhar a longo prazo. Ela acrescenta:

Our world is beautiful. Despite the inadequate Imperials and their fan club. And the world is big, you don't have to live in a country that hurts you.

Nosso mundo é lindo. Apesar da inadequação dos impérios e de seus fã-clubes. E o mundo é imenso, você não precisa viver em um país que te faz mal.

O Quirguistão tornou-se um novo lar

O Quirguistão é uma antiga república soviética [10]localizada na Ásia Central. No passado, por motivos econômicos, o fluxo de migrantes do Quirguistão para a Rússia era numeroso, mas agora, por razões políticas, este fluxo inverteu-se.

Lesya escolheu este país devido a sua proximidade; também há muitas pessoas que falam russo, o país tem alimentos e clima familiares, além do custo de vida razoável:

First of all, I wanted to run away, no matter where. We didn't plan on the timing of how long we'll be here. Ideally, I would like not to depend financially on my country [Russia] and find myself a place where there will be a “home,” which we have been deprived of.

Antes de mais nada, eu queria fugir, não importava para onde. Não planejei o tempo que passaremos aqui. Eu gostaria de não depender financeiramente de meu país (a Rússia) e de encontrar um lugar para chamar de “lar”, do qual fomos privados.

Apesar da cultura quirguize e algumas das tradições terem sido oprimidas durante o período soviético (pois a russificação foi encorajada em todas as regiões), os quirguizes conseguiram manter suas tradições que, segundo Lesya, incluem a capacidade de serem abertos, de viverem e resolverem problemas em conjunto, bem como a hospitalidade. Ela observa:

Now I don’t shy away from the sight of the police, I don’t delete objectionable words in instant messengers, as I did in Moscow, where the police could easily check your phone in the subway.

Agora eu não me esquivo de policiais, não apago palavras censuráveis em aplicativos de mensagens, como fazia em Moscou, onde a polícia podia facilmente verificar seu aparelho celular no metrô.

Ela espera que um dia seja possível voltar para casa, mas isso pode não acontecer nos próximos anos:

I have already gotten used to the idea that such terrible things as war are happening “at home,” in my homeland. I was depressed for a long time, I was ashamed to do anything, draw, enjoy life, because now someone is suffering at this very moment.

Eu já me acostumei à ideia de que algo terrível como a guerra está acontecendo “dentro de casa”, em minha terra natal. Fiquei deprimida por muito tempo, tive vergonha de fazer qualquer coisa, desenhar, aproveitar a vida, porque alguém estava sofrendo naquele exato momento.

Geórgia: sigamos em frente

A Geórgia mantém cautela nas suas relações políticas com a Rússia. Tem um histórico de invasão russa [11] em 2008, e algumas pesquisas recentes mostraram que muitos georgianos não apoiam um regime de isenção [12] entre os dois países. Por outro lado, está concentrada em aderir à OTAN e à UE. O país recebeu muitos cidadãos russos que fugiram. Embora o idioma oficial seja o georgiano, muitas pessoas falam russo e inglês, o que torna a vida muito mais fácil para os novos migrantes.

Entre eles está uma garota chamada ჯუნო (lê-se Juno), que, até 24 de fevereiro, apesar de todos os problemas em seu país natal, nunca imaginou viver fora da Rússia: “A necessidade de escolher outro país para uma estadia longa me pegou de surpresa. Sem um visto Schengen, a lista de opções rapidamente ficou menor e eu escolhi a Geórgia”, por algumas razões: “Primeiramente, já estive aqui antes e entendi como é o país; os russos ainda podem ficar por um ano inteiro sem uma autorização de residência; há uma tributação razoável, possibilidade de abrir uma conta bancária e registrar-se como empresário individual; além de as pessoas serem maravilhosas, ter natureza incrível e clima ameno”, diz.

Mais de um mês e meio desde o início da mobilização russa, a Geórgia recebeu mais de 700.000 russos, dos quais 100.000 ficaram. ჯუნო continua: “Desde que cheguei aqui, nunca sofri ataques. Os cidadãos locais ou são neutros ou amigáveis e sou grata por isso”.

Algumas empresas russas transferiram todos os seus funcionários, juntamente com as famílias, para a Geórgia. Antes de 2022, foi criado o programa “Trabalhe da Georgia” de apoio à economia do país e estrangeiros que trabalhavam remotamente foram convidados a participar do programa.

ჯუნო também trabalha remotamente e mantém contato com a família e amigos que permaneceram na Rússia: “Posso dizer que muitos são iludidos pela propaganda na sociedade russa e as pessoas precisam de tempo para descobrir isso. Eu mantenho contato com a Rússia porque minha família e amigos estão lá. Por isso tenho muito cuidado ao escolher as palavras quando escrevo para eles”.

Israel: a terra prometida

Valéria considera sua história banal: “Deixei a Rússia porque não posso e não quero ficar em silêncio, e também não quero ser presa por isso”. Ela não tinha parentes ou amigos em Israel e apesar do direito à cidadania do país (por sua ascendência judaica) antes da guerra, ela estabeleceu uma ligação apenas com a Rússia, nunca visitou Israel, nem como turista.

Segundo ela, muitos israelenses pensam que a maioria dos que vieram após o início da guerra irão esperar que ela acabe e partirão em seguida. Alguns russos partem após receberem o passaporte israelense, enquanto outros planejam ficar.

Na Rússia, Valéria protestou até o último momento. Mas agora ela não acredita que os apoiadores da guerra possam ser persuadidos. Ela acompanhou de perto a agenda política e observou o florescimento da propaganda estatal no país, de modo que o estágio de aceitação do que aconteceu chegou rapidamente.

“Para mim, é importante que minha filha cresça como uma pessoa que valoriza a si mesma, sua liberdade, o que inclui a liberdade de expressão. Quero que ela possa decidir onde vai morar, o que vai fazer, que ideias vai apoiar”. Infelizmente, agora na Rússia, as pessoas estão privadas dessas oportunidades”, acrescenta Valéria.