Como o Zimbábue está construindo um estado de vigilância ao estilo Grande Irmão

Imagem cedida por Ameya Nagarajan

Desde o golpe de novembro de 2017, que derrubou o falecido homem forte Robert Mugabe, o Zimbábue vem passando por uma regressão democrática. Anteriormente, o espaço cívico tinha um verniz de existência reconhecida pelo Estado e tolerância pelo governo; no entanto, sob a administração do presidente Emmerson Mnangagwa, o espaço cívico do país está diminuindo tanto on-line quanto off-line, pois o regime emprega uma série de medidas legais e extralegais para impedir a dissidência. Este processo foi possibilitado pelo uso de tecnologia de vigilância estrangeira cara e avançada, com a maior parte proveniente de Pequim sob sua ambiciosa Iniciativa do Cinturão e Rota (ICR). A investigação do Unfreedom Monitor mostra que o governo do Zimbábue está na interseção entre a segurança padrão e os interesses do partido no poder. Essa configuração, auxiliada pela vigilância generalizada, ajuda o regime governante a manter um controle rígido do poder político.

O início de uma era visual

Em 20 de julho de 2022, o presidente Mnangagwa deu início ao lançamento oficial do projeto Cybercity, de US$ 500 milhões, a ser construído por uma entidade externa. O projeto, que deixou Mnangagwa visivelmente entusiasmado, será financiado por Shaji Ul Mulk, presidente da multinacional Mulk International, dos Emirados Árabes Unidos. A planta do projeto mostra que a cidade prevista será cercada por câmeras de vigilância para fins de segurança e que iniciativas semelhantes serão implementadas no restante do país nos próximos anos.

O projeto Mulk International é apenas um entre muitos outros que o governo já está ansioso para construir. O conceito de Cidades Inteligentes faz parte da agenda do governo para criar uma nova sociedade com áreas industriais, comerciais e residenciais, impulsionada pela tecnologia digital e pela internet das coisas. O governo já aprovou o desenvolvimento de uma Cidade Inteligente em Melfort, localizada em Goromonzi, entre a capital Harare e a cidade de Marondera, no leste. A ideia é reduzir a distância até o Aeroporto Internacional Robert Mugabe para os investidores e o tráfego do leste do país. Espera-se que outras Cidades Inteligentes sejam construídas nas províncias do sul do país.

No entanto, membros da sociedade civil e ativistas temem que a implantação e uso de câmeras de vigilância no país signifique que o regime de Mnangagwa possa identificar e eliminar rapidamente as vozes dissidentes que representam um risco para seu establishment político. Curiosamente, o governo chinês já apoia iniciativas de Cidades Inteligentes por meio de intercâmbios tecnológicos diretos com o Zimbábue, consequentemente, a garantia de tais interesses incluiria a criação de um estado de vigilância generalizada, modelado nos padrões do Estado chinês. O fornecimento de equipamentos de vigilância pela China e a infraestrutura sobre a qual repousam as redes locais de telecomunicações continua sendo um problema recorrente, porque o governo do Zimbábue prioriza projetos de telecomunicações de empresas chinesas sobre os países ocidentais considerados hostis em suas políticas externas em relação ao governo de Mnangagwa.

Empresas chinesas como Huawei e Hikvision assumiram a liderança no lançamento de câmeras de reconhecimento facial nas principais cidades, o que cria um estado de vigilância generalizado. Por exemplo, a polícia instalou câmaras CCTV nas cidades-reduto do partido da oposição de Harare e Bulawayo. Ambas as cidades costumam ser pontos problemáticos para a polícia, pois os protestos antigovernamentais geralmente ocorrem nessas áreas. Além disso, o Zimbábue foi identificado como cliente do spyware digital invasivo fabricado em Israel, o Pegasus, que é uma arma eficaz para reprimir as vozes dissidentes. O governo negou a acusação.

Seguindo a trilha da verba da vigilância

A economia do Zimbábue está implodindo devido à má governança, corrupção institucionalizada e hiperinflação. No entanto, isso não impediu o Estado de buscar iniciativas de vigilância, pois os investidores da China e do Oriente Médio com bolsos cheios continuam ávidos a lançar suas tecnologias no país.

Em 2017, a operadora de telecomunicações estatal TelOne lançou dois centros de dados com instalações na nuvem em Harare e Mazowe (38 km de Harare) a um custo de US$ 1,6 milhão. O lançamento fez parte de um projeto de atualização de rede de US$ 98 milhões implementado com a empresa chinesa Huawei, financiado por um empréstimo do Export-Import Bank of China. Outra operadora de rede móvel estatal, a NetOne, fez uma parceria de US$ 71 milhões com a Huawei para a implantação de 260 estações-base, para melhorar a cobertura da rede, incluindo áreas rurais. No projeto, as estações-base estão sendo atualizadas para 4G e 5G.

Mais importante ainda, as principais operadoras de rede do Zimbábue usaram empréstimos apoiados pela China para construir e atualizar sua infraestrutura de telecomunicações. Em 26 de fevereiro de 2021, o presidente Mnangagwa inaugurou o Centro Nacional de Dados (CND) em Harare. A instalação, que será vinculada a bancos de dados com informações de “principais atores econômicos e instituições estatais”, destina-se a digitalizar os serviços do governo. O projeto foi concluído também em parceria com o governo chinês. O regime de Mnangagwa já está usando a tecnologia de reconhecimento facial da empresa chinesa, Hikvision, em aeroportos e postos de fronteira internacionais. O software da Hikvision está sendo integrado à tecnologia desenvolvida localmente para conduzir uma Inteligência Artificial (IA) e um sistema nacional de reconhecimento facial no Zimbábue.

A implantação de tecnologias de vigilância no Zimbábue ultrapassou o controle democrático. Com o uso de spyware digital, alguns agentes de segurança do estado podem rastrear, com precisão, um grande número de cidadãos, capturar e armazenar seus dados sem nenhum controle. A maioria dos itens de mídia usados ​​para pesquisa no monitor revelou que a natureza secreta da vigilância no Zimbábue cria o risco de abuso por parte de atores políticos. Em 2020, o governo de Mnangagwa gastou US$ 20 milhões (a primeira parcela de um contrato de US$ 100 milhões previsto para terminar em 2025) em uma fase inicial de uma grade de vigilância policial em massa em colaboração com a Huawei. Sob o acordo, a CloudWalk Technology e a Hikvision fornecerão tecnologia de reconhecimento facial, com a antiga empresa já colhendo os dados de milhões de zimbabuenses sob registro biométrico de eleitores para armazenamento e processamento na China. Parte das demandas da CloudWalk Technologies na parceria incluiu a criação de redes de comunicação de dados fortes e estáveis bem como ampla implantação de câmeras. Isso marcaria o próximo passo na parceria de IA com o governo do Zimbábue, já que o lançamento de um sistema de câmeras de reconhecimento facial depende muito de protocolos confiáveis da internet.

A jornalista Amy Hawkins observa no Foreign Policy que as intenções da China vão além de fornecer infraestrutura e que Pequim está se esforçando para exportar sua ideologia, especialmente em torno de vigilância e controle, para países africanos por meio da ICR.

Por que tudo isso importa?

A maioria dos cidadãos permanece indiferente à criação de um estado de vigilância que invade a privacidade e outros direitos humanos críticos, sob a convicção de que eles são imunes aos excessos do governo, desde que não sejam ativistas de direitos, atores políticos ou jornalistas. Essa crença de que a violação dos direitos humanos e digitais não lhes diz respeito criou um terreno fértil para o surgimento de vigilância generalizada no Zimbábue.

A implantação de tecnologias de vigilância no Zimbábue não visa garantir a segurança dos cidadãos ou avançar para um estado modernizado, como sugerem as narrativas do governo. Em vez disso, essas tecnologias são altamente úteis para espionagem e influência social por meio do controle de narrativas e da forma como as pessoas devem pensar sobre o regime dominante. Um alto funcionário do governo citado na mídia local confirma que o governo do Zimbábue vem, há anos, construindo um banco de dados de IA de cidadãos usando tecnologias chinesas.

A seção 57 da constituição do Zimbábue prevê o direito à privacidade, mas esta disposição está sendo flagrantemente violada pelo governo do Zimbábue, pois espiona os cidadãos, armazena suas informações sob o pretexto de registro biométrico de eleitores e provavelmente usa esses dados para fins políticos. Embora o Zimbábue tenha uma Lei de Proteção de Dados, ela é criticada por defensores dos direitos humanos como uma legislação destinada a criminalizar a liberdade de expressão on-line e reprimir o espaço cívico, em vez de ajudar nessa situação. A vigilância encoraja a autocensura em plataformas on-line e também serve para minar os direitos à liberdade de expressão e liberdade de associação, encapsulados na constituição sob a Seção 61 e Seção 58, respectivamente.

Visite a página do projeto para mais artigos do Unfreedom Monitor.

 

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