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O abuso de crianças sob cuidados do estado na Jamaica é um problema que não vai desaparecer, mas a culpa é do sistema?

Categorias: Caribe, Jamaica, Direitos Humanos, Etnia e Raça, Juventude, Lei, Mídia Cidadã, Mulheres e Gênero, Política, Religião
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Imagem em destaque via Canva Pro [1].

Nos últimos dias, houve uma onda de choque e indignação na Jamaica sobre a situação de suas crianças mais vulneráveis: aquelas sob cuidados do estado. Um relatório profundamente perturbador [2] do Escritório de defesa das crianças (Office of the Children’s Advocate/OCA) [3]- uma Comissão do Parlamento responsável por fazer cumprir e proteger os direitos e os melhores interesses das crianças, estabelecido em 2006 sob a Lei de Cuidados e Proteção à Criança [4] — foi apresentado no parlamento em 10 de janeiro. Ele forneceu detalhes de um relacionamento questionável entre a Agência de Proteção à Criança e Serviços Familiares (the Child Protection & Family Services Agency/CPFSA) [5] e o fundador americano de uma organização religiosa, a quem acusou de comportamento inadequado em relação a vários tutelados do estado.

O relatório também mencionou a CPFSA, e especificamente sua CEO, Rosalie Gage-Grey, por não estar vigilante e por possivelmente obstruir a investigação da OCA. Ele alegou que [2] Gage-Grey falhou em seu dever administrativo e moral para com os ex-tutelados do estado que estavam em uma instalação de transição chamada The Father's House:

Her responses indicate that she is either unaware of, or has a reckless approach to the significant vulnerability which attaches not only to them when they are minors, (that is below 18 years) but also even after and during their transition out of the formal care system.

Suas respostas indicam que ela desconhece ou tem uma abordagem imprudente em relação à significativa vulnerabilidade que os acompanha não apenas quando são menores (ou seja, menores de 18 anos), mas também após e durante a transição fora do cuidado formal do sistema.

Embracing Orphans, a organização dirigida por Carl Robanske, o americano citado no relatório, afirmou que “acredita no amor de Jesus […] e por meio de Seu amor cuidamos dos órfãos, abusados e negligenciados da Jamaica”. Em 2009 [6], dois anos depois de começar a operar na Jamaica, estabeleceu um relacionamento com a então Child Development Agency (depois renomeada).

A locação na The Father's House começou em 2011 e, em 2013, passou a aceitar tutelas do estado recomendadas pela CPFSA. Em 2016, Robanske, a quem as garotas jamaicanas chamavam de “Tio Carl” [7], foi considerado culpado de má conduta profissional com uma estudante nos Estados Unidos, e sua licença educacional no estado de Washington foi suspensa por dois anos [8]. A ordem de suspensão citou “evidências claras e convincentes de que o sr. Robanske tem um problema comportamental que põe em risco o bem-estar educacional ou a segurança pessoal de alunos, professores ou outros colegas dentro do ambiente educacional”. Um psicólogo teria notado que ele provavelmente repetiria essa conduta e colocaria em risco a segurança daqueles com quem tinha contato.

De acordo com o relatório da OCA, a CPFSA disse que soube da suspensão de Robanske em 2018, mas o relacionamento com a Embracing Orphans continuou “ininterrupto”.

Motivado por [9] uma reportagem da estação de rádio Nationwide News Network em março de 2021, e um pedido do Ministério da Educação para investigar o assunto, o relatório foi resultado de quase dois anos de investigações. No final daquele ano, não houve resposta [10] do governo sobre o assunto. Durante uma coletiva de imprensa em abril de 2021, a ministra da Educação, Fayval Williams, confirmou [11]que seu ministério havia encerrado as relações com a Embracing Orphans, que deveria desocupar o local alugado em 90 dias.

A mesma estação de rádio informou [12]que houve benefícios financeiros para algumas das alas, incluindo viagens aos Estados Unidos. O relatório da OCA observou que uma tutelada disse que inicialmente não reclamou sobre o abuso ou disparou o alarme porque Robanske estava pagando suas taxas escolares e ela não queria perder o apoio financeiro. Suas interações com as garotas continuaram fisicamente e on-line, algumas das quais foram impressas e salvas pelo namorado de uma das garotas.

Falando no parlamento em 10 de janeiro, a ministra Williams, com a voz ligeiramente trêmula, disse que a OCA recomendou que um gerente e uma funcionária nomeados no relatório fossem realocados devido à sua suposta cumplicidade. Apesar de vários relatos de que havia rompido relações, ela sugeriu que foi enganada pelo chefe da CPFSA:

I am enraged when I consider that following the report explicit directives were given, there was constant follow up […] The situation was untenable. It cannot be defended.

Based on the report of the OCA, it is not in the best interest of our children in state care for the CEO of the CPFSA to remain as head of the agency while further investigation takes place. And so I call on her to step aside, at least while the Public Service Commission completes its deliberations.

Fico furiosa quando considero que após o relatório foram dadas diretivas explícitas, houve um acompanhamento constante […] A situação era insustentável. Não pode ser defendida.

Com base no relatório da OCA, não é do interesse de nossas crianças sob os cuidados do Estado que a CEO da CPFSA permaneça como chefe da agência enquanto uma investigação mais aprofundada ocorre. Por isso, peço que ela se afaste, pelo menos enquanto a Comissão de Serviço Público conclui suas deliberações.

O relatório foi enviado [13]à polícia, e o ministro da Educação também está buscando orientação [14] da Comissão de Serviços Públicos. Nem a agência executiva nem sua CEO fizeram uma declaração sobre o assunto, e a CEO está trabalhando [15] normalmente.

Os internautas jamaicanos expressaram raiva e choque, com um apontando o dedo para um estrangeiro branco disfarçado de religioso:

Como uma das próprias agências criadas para proteger as crianças permitiu a um predador o acesso a crianças? Simples. Ele era um estrangeiro branco que reivindicava inspiração na divindade cristã. No entanto, vocês não estão prontos para enfrentar isso de verdade, então deixe-me voltar a fazer o trabalho do povo.

O advogado de direitos humanos e ativista Alexis Goffe tinha muitas perguntas, dois anos atrás, sobre Robanske:

isso é o que vocês herdaram. o sistema de ‘proteção’ infantil é um refúgio de abuso para crianças e a impunidade reina.
Sobre o caso de Carl Robanske e #EmbracingOrphans [17] (EO):

1) O cpfsa e o governo encerraram a parceria com Robanske e sua organização? em caso afirmativo, forneça a prova

Um escritor de cartas [20] apontou para comentários feitos por um funcionário do governo na rádio de que Robanske havia aproveitado uma oportunidade, com resultados desastrosos:

Carl Robanske spotted the need for better facilitation for wards of the Jamaican state. Let's think then, of what Jamaica got in return. Several wards in state facilities are now possibly blighted for life, based on the allegations, and the exposure of yet another Jamaican oversight body, which appears totally irredeemable.

It is clear to me that in this saga our needs and wants were fully exploited because of this horrific culture in Jamaica to trade a blind eye for measly benefits. Well, the price which we have paid here is immeasurable.

Carl Robanske identificou a necessidade de uma melhor facilitação para os tutelados do estado jamaicano. Pensemos então no que a Jamaica recebeu em troca. Vários tutelados em instalações estatais estão possivelmente arruinados para o resto da vida, com base nas alegações e na exposição de outro órgão de supervisão jamaicano, o que parece totalmente irremediável.

Está claro para mim que nesta saga nossas necessidades e desejos foram totalmente explorados por causa desta cultura horrível na Jamaica de fechar os olhos por benefícios miseráveis. Bem, o preço que pagamos aqui é imensurável.

Em um relatório de junho de 2022, o UNICEF Jamaica observou [21] que o sistema de proteção infantil do país “carece de recursos humanos e apoio financeiro suficientes”, e instou o fortalecimento da supervisão, coordenação, monitoramento e alocação de recursos no setor, bem como políticas para prevenir todas as formas de violência contra crianças.

As organizações de direitos humanos expressaram frustração e raiva sobre a questão das crianças sob os cuidados do Estado, mais uma vez vindo à tona, apesar dos protestos de alto nível [22]e extensa cobertura da mídia. A chefe do Jamaicans for Justice, Mickel Jackson, elogiou o OCA por tornar o relatório público:

Tenho que dizer novamente, parabéns à OCA neste relatório. Sinto-me encorajada pela disposição das pessoas de se apresentarem. Acredito que investigações futuras verão mais questões surgindo para uma maior responsabilidade. Além disso, acredito que se alguma garota for afetada, receberá apoio.

Ela também acreditava que o sistema está com defeito:

Vamos parar de hesitar em torno do assunto. A injustiça de Robanske é o resultado de uma falha institucional. O ministério também carece de uma abordagem de ‘pegar o touro pelo chifre’. Apesar de inúmeros relatos/descobertas de tragédias passadas, houve até o momento, pouca ação!

A porta-voz da oposição, Gabriela Morris, pediu uma auditoria [26] em todos os lares infantis. Outro membro da oposição, a dra. Angela Brown Burke, sugeriu [27]que o Registro de Infratores Sexuais da Jamaica fosse tornado público. O Registro supostamente contém os nomes de mais de 300 indivíduos.

A ativista de direitos humanos e diretora executiva do Stand Up for Jamaica, Maria Carla Gullotta, usou a mesma citação deste jamaicano em um comunicado à imprensa [28]:

‘Não pode haver revelação mais nítida da alma de uma sociedade do que a maneira como ela trata suas crianças.’ ~ Nelson Mandela

Como estamos indo na Jamaica?