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O filme ‘Dias Ardentes’ é uma reflexão sombria sobre a atual situação política na Turquia

Categorias: Oriente Médio e Norte da África, Turquia, Arte e Cultura, Censorship, Direitos LGBT, Liberdade de Expressão, Mídia Cidadã, Política

Captura de tela da pré-estreia do filme publicada no YouTube [1].

O filme turco “Kurak Günler” (Dias Ardentes) estreou em maio de 2022 na sessão Un Certain Regard [2] no 75º Festival de Cannes [3]. Desde então, o filme ganhou prêmios [4] em vários festivais de cinema e recebeu ótimas avaliações [5] internacionais, mas, na Turquia, tem sido alvo de críticas pesadas [6]. Recentemente, em dezembro de 2022, o Ministério da Cultura exigiu que os produtores devolvessem o financiamento que receberam há dois anos para criação do filme.

O filme leva os espectadores a uma viagem com o jovem promotor Emre (Selahattin Paşalı), que acabou de assumir um novo posto na remota cidade de Yanoklar, na região turca de Anatólia. O público percebe rapidamente que a corrupção, o nepotismo e outras dinâmicas de poder obscuras afetam a cidade às vésperas das eleições locais para a prefeitura. Esta pequena cidade provinciana também sofre com uma grave escassez de água (daí o nome do filme) e gigantes sumidouros [7] causados pelo uso excessivo de águas subterrâneas para fins agrícolas que as autoridades locais, como o prefeito da cidade, se recusam a resolver. O filme explora tópicos sobre amnésia social, negação, crise climática e problemas causados por uma abordagem deturpada dos projetos de infraestrutura que não possuem soluções sustentáveis para o meio ambiente em longo prazo.

À medida que o filme prossegue, o jovem promotor Emre se vê envolvido em um caso de estupro, mas por ter sido drogado na noite do incidente, suas lembranças são nebulosas. Apesar de tudo, e de seu potencial envolvimento no crime, o promotor não interrompe a investigação sobre o caso de estupro.

Sumidouros como alegoria

Captura de tela da pré-estreia do filme publicada no YouTube [1].

De acordo [8] com o autor e roteirista Zehra Intramelenk, os sumidouros tornaram-se emblemáticos no cinema turco, servindo como metáfora do país nos últimos anos. “Não é por acaso que vemos cada vez mais sumidouros. São muito úteis como metáfora do país. Buracos e poços fazem parte de nosso passado, estamos agora vivendo o tempo dos sumidouros”, escreveu Çelenk em sua avaliação de Kurak Günler .

O filme começa e termina com um sumidouro.

Em entrevista a um meio de comunicação, o diretor do filme, Emin Alper, disse [9] que o uso de sumidouros no filme foi perfeito para a história que estava tentando contar. “Assim como em Um Inimigo do Povo, [10] de Henrik Ibsen, eu queria um caso que falasse sobre as necessidades imediatas do povo, mas que também fosse devastador para a natureza e para as pessoas em longo prazo. Os sumidouros foram muito importantes para isso”, afirma [9] Alper.

Críticas pró-governo

Alper disse que o roteiro de Kurak Günler, ao contrário de seus filmes anteriores, foi muito político desde o início e, também, motivado pela recente turbulência política na Turquia. “A raiz dessa motivação era o sentimento de solidão decorrente do clima político que vivemos nos últimos anos, a atmosfera pesada do sistema que nos engoliu, as decepções que experimentamos uma após a outra e os danos que nos causaram.” afirma [9] Alper.

Desde sua estreia no Festival de Cannes, Kurak Günler tem sido alvo de intensas críticas [11] por parte de entidades pró-governamentais. Uma das razões foi uma referência sutil a uma relação homossexual entre o promotor Emre, provavelmente um gay não assumido, e um jornalista local, Murat (Ekin Ko). Embora não haja cenas de sexo explícito entre os dois personagens, o filme mostra uma certa tensão sexual e romântica entre eles. A decisão de Alper em acrescentar esta reviravolta na história foi impulsionada pela crescente [12] homofobia [13] na Turquia e pela recorrência do tema no debate político nos últimos anos [14].

A homofobia é exemplificada quando os dois personagens principais se deparam com ameaças dos moradores da cidade. Eles insistem em reeleger o prefeito mesmo com a manipulação do problema da escassez de água para sua permanência no poder e, então, os habitantes da cidade se voltam contra o procurador e o jornalista. Em entrevista [15] com o diretor do filme, Alper fala da forma como a ira e a memória mal direcionadas aparecem na Turquia real, referindo-se a alguns dos processos judiciais de destaque, bem como a deterioração da situação política no país. “Especialmente desde 2016, após o golpe fracassado [16], a Turquia entrou num período em que a ilegalidade foi normalizada. Para mim, era o reflexo desta realidade, e sobre como algumas pessoas se esqueceram de todos os danos causados por um grupo ou uma entidade antes das eleições.” afirmou [15] Alper.

Captura de tela tirada da pré-estreia do filme publicada no YouTube [1].

Retaliação do Ministério

A agressiva cobertura negativa não surpreendeu a equipe do filme. A indústria de arte na Turquia tem sido cada vez mais politizada [17] nos últimos anos, assim Alper e a equipe estavam cientes da provável reação negativa. Foi por isso que a equipe manteve o Ministério da Cultura informado sobre todas as mudanças no roteiro, sabendo que o Ministério poderia suspender seu financiamento a qualquer momento. “Seguimos os procedimentos oficiais para um ao pé da letra”, explicou [9] Alper em uma entrevista. O trabalho no roteiro do filme começou em 2018 e terminou em 2021. O ministério recebeu atualizações detalhadas de todas as alterações, incluindo explicações, uma por uma, sobre as razões pelas quais as alterações foram feitas e porque foram necessárias.

Ainda assim, isso não impediu a direção-geral do Ministério de Cinema de exigir a devolução dos fundos atribuídos com juros. Segundo [18] Alper, o ministério não especificou exatamente o motivo da exigência da devolução dos fundos; apenas disse que as alterações feitas no roteiro foram consideradas inadequadas. Alper foi informado desta decisão 20 meses depois de o roteiro final ter sido submetido para revisão — quando o filme já tinha começado a receber elogios internacionais.

Alper acredita [19] que a razão para a mudança súbita teve a ver com a campanha de difamação [6] que começou logo após a estreia do filme em Cannes por seus temas “homossexuais”. O diretor do filme também disse [19] que a retaliação pode ser resultado de um discurso que ele fez quando recebeu um prêmio em um festival de cinema na Turquia. Durante seu discurso, o diretor do filme manifestou apoio à detenta [20] Çiğdem Mater, coprodutora do filme, bem como a outros prisioneiros dos Protestos de Gezi [21], incluindo o filantropo Osman Kavala [22]. Ele expressou solidariedade a estudantes e acadêmicos da Universidade Bogazici [23], que exigem a destituição de um reitor nomeado pelo governo desde 2021.

Kurak Günler não é o primeiro filme a ser vítima da censura imposta pelo governo. A jornalista Jennifer Hatham escreveu [24] sobre a história dos filmes “censurados ou proibidos” pelas instituições governamentais na Turquia .

Em 2017, em uma entrevista [25] ao Al-Monitor, Ismet Kurtulus, codiretor do curta-metragem “O Último Schnitzel” [26] falou sobre o obscuro processo de tomada de decisões das instituições governamentais. Seu curta-metragem foi impedido de estrear no !F Istanbul Independent Films Festival [27] depois de os diretores do filme terem a licença [28] negada pela Direção de Direitos Autorais de Cinema de Istambul no Ministério da Cultura. Poucos dias antes do festival e da exibição que já estava agendada, a agência pediu para remover certas cenas, o que os diretores do filme se recusaram a fazer. “The Last Schnitzel” não preencheu os requisitos, uma vez que todos os filmes exigem a obtenção de uma licença para serem exibidos na Turquia.

Ao contrário de “The Last Schnitzel”,” Dias Ardentes” foi exibido em todo o país, e recebeu o apoio da indústria cinematográfica e dos fãs. Enquanto isso, a resposta do Estado ao filme tornou-se mais um exemplo descarado do quanto o governo é  intolerante com as vozes, a arte e a cultura alternativas nos últimos anos.