Messi fala espanhol ou “argentinês”?

Foto de Marc Puig i Perez/Flickr (CC BY-NC-ND 2.0).

Este artigo de Dante Liano, foi publicado originalmente pela Prensa Comunitaria. Esta é uma versão editada, republicada pela Global Voices sob um acordo de compartilhamento de conteúdo.

Um estupor conhecido me faz voltar a ler textos que eu deveria evitar. Contive o impulso de escrever uma carta ao editor de um jornal muitas vezes, por várias razões, como o fato de que tais cartas costumam ser tratadas com arrogância. Um desses textos evitáveis, que tenta traçar uma análise psicológica do jogador argentino Lionel Messi, foi publicado em um grande jornal italiano. O artigo me interessa porque tem a ver com linguística e toca em um ponto no qual sempre tive dificuldades de lidar. Logo no início, diz:

Chiunque abbia conversato con Messi sa che non parla spagnolo, ma argentino, anzi rosarino. Il suo aggettivo preferito è «espectacular», che però lui pronuncia petacular, mangiandosi tre lettere. Anziché «trabajar» dice laburar. A chi gli chiede notizie del primogenito Thiago risponde, tutto fiero: «Le gusta el fulbo », che significa «gli piace il calcio» ma non in castigliano, in un dialetto sudamericano.

Qualquer pessoa que já tenha conversado com o Messi sabe que ele não fala espanhol, e sim argentinês. Ou melhor, rosarianês. Seu adjetivo preferido é “espetacular”, que ele pronuncia “petacular”, engolindo três letras. Em vez de “trabajar”, ele diz “laburar”. Quando perguntado sobre seu filho mais velho, Thiago, ele responde com orgulho: “Le gusta el fúlbo”, que significa “ele gosta de futebol”, mas não em espanhol e sim em algum dialeto sul-americano.

Parafraseando o escritor Cervantes: “Esbarramos em ignorância, Sancho”. Ignorância difundida até em meios “cultos”, já que, até recentemente, editoras italianas costumavam escrever, em traduções de literatura argentina, que os textos tinham sido “traduzidos do ‘argentinês’”, como se tal fantasma fosse real. A originalidade do nosso jornalista reside no fato de que ele inventou o “dialeto sul-americano”, uma contradição digna da literatura fantástica. De fato, se a base para se referir a um “dialeto” é falar da variação de uma língua, haveria um dialeto para cada país da América do Sul: colombianês, venezuelanês, peruanês etc. Portanto, Messi não poderia falar em “sul-americano”, porque essa abstração simplesmente não existe.

Eu me lembro, de uma agora remota infância, de que nós de Chimaltenango, na Guatemala, costumávamos zombar dos primos de San Andrés Itzapa, uma cidade a quatro quilômetros da capital do município. Os itzapecos alongavam suas vogais ociosamente ao falar, dizendo: “Bueeeenos díaaaas, tía Tereeeeeeeesa”. Será que existe um dialeto “itzapeco” e eu só estou descobrindo agora? Outra pérola do nosso jornalista, analista das profundezas da alma e da linguagem, é que ele insiste em escarafunchar o erro, mencionando que argentinos chamam o Messi de “Lío”, não “Leo”. Basta uma visita à página do Barcelona Futebol Clube para descobrir que o nome do jogador de futebol é “Lionel”, cujo apelido natural é “Lio”, da mesma maneira que “San” é para “Santo”. Conhecer só um pouquinho da língua espanhola já teria sido suficiente.

Voltemos à afirmação de que nosso herói fala “argentinês”, ou melhor, “rosarianês”. A língua espanhola se assemelha mesmo ao rio Amazonas, uma imensa corrente com vários riachos e várias bifurcações. Inicialmente, era a língua do Reino de Castela, a língua da rainha Isabel, que se casou com Fernando de Aragão. A língua da terra dos castelos erguidos por lordes feudais católicos e guerreiros, usuários de palavras fortes e concisas, propagada não só na América e em suas distâncias imensas, mas também pela Europa e suas guerras tribais intermináveis (e que seguem até hoje). Com isso, foi chamada de “espanhol”, já que se tornou a língua de um império nascido na Espanha e, com o predomínio na comunicação por todo o mundo, foi enriquecida e alterada em suas incansáveis viagens. Ao mesmo tempo, ela manteve aspectos específicos de cada região: não é falada do mesmo jeito na Galícia, nas Astúrias ou em Andaluzia. Isso não significa que deixou de ser “espanhol”. Da mesma forma, não é falada da mesma forma no México, na Colômbia ou na Argentina, mas nem por isso deixa de ser espanhol. Os habitantes de Buenos Aires têm um sotaque. Os de Rosário, outro, muito marcado, todos falam a mesma língua. Isso acontece também com habitantes de Milão e Roma quando falam italiano.

Os exemplos citados pelo jornalista pertencem a uma linguística rudimentar, usada por pessoas para zombar de seus vizinhos por falarem diferente delas. Ele nos informa que Messi pronuncia “pectacular” em vez de “espectacular”. Que ele diz “laburar” no lugar de “trabajar” e que pronuncia “fúlbo” quando quer dizer “futebol”. Seria arrogância demais explicar a homens cultos e leigos que cada um de nós tem uma maneira própria de pronunciar? E que nenhuma regra geral pode ser aplicada a partir da pronúncia de um único indivíduo? Cada um desses exemplos tem sua própria explicação, dentro da língua espanhola, mas ouso sugerir a mais simples: nosso jornalista não ouve muito bem. Seria muito mais plausível se ele tivesse escrito que Messi diz “ehpettacular” ou “fúbbo”, aspectos fonéticos encontrados pelo mundo Hispânico. Mas seria ambicioso demais esperar isso de um texto escrito com a única finalidade de encher linguiça.

Como costuma acontecer, talvez a explicação não esteja no texto como ele aparece no jornal, mas sim nas entrelinhas. Vamos tentar inverter os papéis: o que aconteceria se um jornalista “sul-americano” dissesse que Umberto Eco fala “bolonhês”, que Pier Pasolini fala “friulinês” e que Alberto Moravia fala “romano” enquanto acreditam falar italiano? Suponho que ninguém se atreveria a fazer uma declaração tão audaciosa.

Por outro lado, despejar uma série de afirmações sem nexo sobre a forma como “sul-americanos” falam, ao focar em um Lionel Messi “gago”, o povo americano é recolocado na condição colonial de crianças, sob a justificativa ideológica que permitiu sua subjugação: a alegação de que não havia cultura lá, que eram apenas uma tábula rasa, mentes vazias e livres para que o Ocidente escrevesse nelas as bases da civilização? Talvez, Sancho, não tenhamos esbarrado em ignorância, mas em coisa pior.

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