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Proibir a transmissão de músicas que glorificam a violência reduzirá a taxa de criminalidade da Jamaica?

Categorias: Caribe, Jamaica, Arte e Cultura, Censorship, Juventude, Lei, Liberdade de Expressão, Mídia Cidadã, Mídia e Jornalismo, Música, Política
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Imagem criada com elementos do Canva Pro. [1]

Em 11 de outubro, a Comissão de Radiodifusão da Jamaica [2] emitiu uma diretriz [3] a todas as estações de rádio a fim de “manter as transmissões limpas”:

#Banned! All content promoting illegal activities are banned from broadcast transmission! […]

The Broadcasting Commission has issued a directive to all broadcasters to immediately prevent the transmission of any recorded material on tv, radio, or cable that glorifies, promotes, or otherwise encourages illegal activities:

#Scamming [4]
#DrugAbuse [5]/illegal drugs including #molly [6].
⛔Jungle justice
⛔ Illegal or harmful use of guns and other offensive weapons.
⛔ Use of expletives and other offensive lyrics/profanties.
⛔ All other illegal activities you can think of 😌

#Proibido! Está proibido transmitir qualquer conteúdo que promova atividades ilícitas! […]

A Comissão de Radiodifusão emitiu uma diretriz a todas as emissoras para impedir a transmissão de qualquer material por TV, rádio ou serviço a cabo que glorifique, promova ou encoraja atividades ilícitas:

⛔ Fraudes / Golpes
⛔ Abuso de drogas /Drogas ilícitas, incluindo ecstasy
⛔ Justiça com as próprias mãos
⛔ Uso ilegal de armas de fogo ou de armas brancas
⛔ Uso de palavrões e profanações
⛔ E todas as outras atividades ilícitas 😌

A Comissão ainda tuitou:

#BCJUpdate [7] A Comissão de Radiodifusão emitiu uma diretriz que proíbe de imediato a transmissão de todo conteúdo que promova atividades ilegais.

Vamos manter as transmissões limpas!

Fundada em 1986, a Comissão de Radiodifusão é incumbida [12] pela Lei de Radiodifusão e Retransmissão da Jamaica de monitorar e regular a TV aberta, a rádio e serviços a cabo “a fim de assegurar sua operação em níveis adequados em relação aos padrões técnicos, de programação e de serviços”. O anúncio gerou confusão nas redes sociais, na indústria de entretenimento e entre o público geral, embora as reações tenham sido bem diversas [13].

Diante do aumento de atividades de gangues, do aumento de assassinatos [14] e de uma atmosfera generalizada de violência em algumas comunidades jamaicanas, muitas pessoas receberam bem a decisão [15], incluindo [16] o Ministro da Informação, Robert Morgan, que garantiu [17] não se tratar de censura à liberdade de expressão:

The thing about radio is [once it is on], I’m not the only one who is hearing it. It is a public facility [that] is licensed by the government [and] is regulated by particular laws. So, it is not about fighting crime; it is about decency and standards.

Quanto à rádio, quando ligada, eu não sou o único que está escutando. É um mecanismo público licenciado pelo governo e regulado por leis privadas. Então não se trata de combater o crime; trata-se de decência e padrões.

O diretor executivo da Comissão de Radiodifusão, Cordel Green, apareceu em várias redes sociais defendendo a diretriz. Ele sugeriu [18] que as emissoras que se opõem à proibição não devem se intrometer, e afirmou [19] que estúdios de gravação e artistas não serão afetados. Green acrescentou [20] que “os gatekeepers são o foco da comissão”. Mesmo quando a Comissão de Radiodifusão multa uma estação que viola as regras, e ela é orientada a transmitir um pedido de desculpas, “raramente, se é que há casos, você ouve qualquer referência à música em particular ou aos artistas”:

#StarEntertainment [21]: “Isso não tem a ver com os artistas. Não podemos dizer a um artista qual arte ele deve criar. Artistas se inspiram em suas próprias experiências, sejam elas disfuncionais ou libertadoras. Alguns deles se importam com a sociedade, outros não.”

Um jovem líder favorável tuitou:

Big up to the @BCJamaica [25] for such a BOLD & TIMELY move.

— Rushane Ferron (@FerronRushane) October 11, 2022 [26]

Palmas a @BCJamaica [25] pela decisão tão OUSADA e OPORTUNA.

Uma blogueira jamaicana residente nos EUA lamentou:

Dancehall foi criado para diversão, moda, criatividade, expressão. Como chegamos à promoção de uso de drogas, de assassinato e de fraudes? Concordo com a proibição de letras de dancehall que promovem essas coisas. Dancehall precisa voltar aos anos 1990. Atualmente, a maioria dos artistas de dancehall faz músicas para mentes depravadas.

Mas a principal pergunta permanece: a música popular jamaicana realmente promove e incita [28] os jamaicanos a cometerem crimes? Uma pesquisa de opinião pública recente [29] sugeriu que a maioria dos jamaicanos acredita que há certa conexão, apenas 22% dos entrevistados acreditam que há pouca ou nenhuma correlação entre a música e as atividades ilegais.

No entanto, surgiram várias questões sobre como a diretriz deve ser aplicada. Será aplicada a artistas ou a músicas específicas? Incluirá músicas antigas ou só as atuais? O gênero dancehall por si só foi apontado como má influência à juventude jamaicana e à sociedade? Ao criticar a redação vaga da diretriz, o advogado Kenyatta Powell insinuou que [30] o dancehall é na verdade o bode expiatório. Ele questionou se músicas que desafiam o sistema serão consideradas criminosas, já que “a maioria das atividades revolucionárias, por natureza, são consideradas criminosas quando direcionadas contra os próprios sistemas que estão tentando substituir ou suplantar”.

Powell ainda afirmou que atividades como golpes, aos quais muitas músicas populares se referem em suas letras, são “a realidade material sobre a qual as pessoas vivem […] tem a ver com opressão, tem a ver com as decisões lógicas e conscientes que as pessoas tomam para sobreviverem no dia a dia”.

O comentarista cultural Isis Semaj-Hall também fez algumas perguntas pertinentes quanto à redação da diretriz:

🙋🏾‍♀️Dúvidas. Quais são exemplos de palavras proibidas e quem será encarregado de fazer essa lista? Jolly [feliz] será proibida por soar como molly [ecstasy]? Por essa lógica, fun [diversão] também será proibida? Uma música celebrando o tecido bogolan será proibida? Estou brincando, mas isso parece fiscalização moral, não é?

Não é a primeira vez que o governo jamaicano culpa parcialmente o dancehall pela alta taxa de criminalidade do país. Em abril de 2021, o primeiro-ministro, Andrew Holness, repetiu [33] sua crítica ao gênero:

That is not right, and though you have the protection of the constitution to sing about it, you also have a duty to the children who are listening to you to say, ‘Man, that is not right.'”

Não é certo, embora você tenha a proteção da constituição para cantar sobre isso, você também tem o dever com as crianças que o escutam dizer: “Cara, isso não é certo”.

Tentativas de “limpar” a música jamaicana, e as controvérsias que as seguem, não são uma novidade. Em 2009, a Comissão de Radiodifusão emitiu uma diretriz semelhante, proibindo a “transmissão de qualquer gravação, música ao vivo ou música que promova ou glorifique qualquer crime como assassinato, estupro, violência em grupo, e outros crimes como incêndio criminoso”. Essa decisão foi vista como uma resposta ao hit “Rampin Shop” [33] dos DJ de dancehall Vybz Kartel e Spice, e a outras músicas consideradas obscenas e explícitas, e não a músicas sobre crimes violentos. Embora em 2009 a diretriz tenha sido muito apoiada por igrejas e educadores [34], na época a Comissão de Radiodifusão negou que houvesse uma lista de “músicas proibidas”.

Dez anos depois, o primeiro-ministro prometeu [35] proteger a cultura jamaicana:

It is not everything that we call ‘culture’ will have the longevity to carry from generation to generation. Societies have died because culture degenerated into decadence. The State cannot just stand by and allow the culture to just degenerate. The State has to work in support of those people who are willing to see to the longevity of the culture.

Nem tudo que chamamos de “cultura” terá longevidade para se conservar de geração em geração. Sociedades morreram porque sua cultura caiu em decadência. O Estado não pode cruzar os braços e deixar a cultura degenerar. O Estado precisa trabalhar em prol daqueles que estão dispostos a ver a longevidade da cultura.

Apesar dessas declarações, há dúvidas se a diretriz irá alcançar o público desejado pela Comissão de Radiodifusão. Como observado por um jovem comentarista das redes sociais em uma entrevista de rádio, “O serviço de streaming está em seu auge”, a maioria dos jovens jamaicanos não ouve rádio ou assiste a TV a cabo, eles acessam plataformas on-line como Youtube e Spotify. Na verdade, vários jovens produtores musicais apontaram [36] a diretriz como irrelevante, um deles apontou cinicamente:

No one from the younger generation voluntarily listens to the radio in 2022. So imo the move is more of a ‘look we’re doing something’ more than actually trying to do something. & as far as I can remember music has always been the ‘reason’ for everything in Jamaica.

Ninguém da nova geração escuta rádio por vontade própria em 2022. Então, a decisão parece mais um “olha, estamos fazendo algo” do que realmente estar fazendo algo. E, pelo que me lembro, a música sempre foi a “culpada” de tudo na Jamaica.

Um DJ jamaicano concordou [37]:

 When you're driving your kids to school, don't they have a tablet in their hand? Do they listen to the radio? And if they do hear a scamming song, isn't it edited? When they have their phones, do they hear the edited version on their phones? And they have those 24/7. Are you watching your kids 24/7? Watching what they looking at or what they listening to? No.

Quando você está levando seus filhos para a escola, eles não ficam segurando um tablet? Eles escutam a rádio? E se eles escutam uma música imprópria, ela não está censurada? Quando eles estão com seus celulares, eles escutam a versão censurada no celular? E eles ficam com o celular o dia inteiro. Vocês ficam o dia inteiro vigiando seus filhos? Vigiando o que eles estão vendo ou escutando? Não.

Um influente produtor musical observou que a música reflete a sociedade:

A música é um reflexo do ambiente ao qual pertence. Mude o ambiente e a música mudará.

E o programa televisivo de atualidades “Beyond the Headlines” observou que uma crítica social pode ter muitas nuances:

O que define a diferença entre uma música que é uma “crítica social” e uma música “choppa“? #TVJAllAngles [39]

Choppa” é uma gíria jamaicana para golpistas, originada de “chop di line” (corte a linha), que se refere ao golpe do falso prêmio.

Um DJ de rádio diz que ignorará os novos regulamentos:

#StarEntertainment [21]: O DJ de rádio, cantor e produtor ZJ Liquid disse que pretende continuar tocando as músicas que ele considera apropriadas, apesar dos novos regulamentos da Comissão de Radiodifusão sobre conteúdos permitidos na rádio.

O veterano DJ de dancehall Bounty Killer, que teve sua música proibida no passado, acrescentou:

Bounty Killer, rei do dancehall

[Exato, mas a rádio precisa continuar sendo a rádio, então não posso discordar. Tive músicas minhas proibidas no passado quando sequer havia internet, mas isso não afetou as músicas, na verdade as tornou mais populares. São os DJ que amam acompanhar o que anda tocando nas festas e nas ruas. A rádio deve manter seu formato, nem toda música foi feita para a rádio, é simples.]

Depois de todos os debates, acusações, provocações e reclamações, a diretriz fará alguma diferença na taxa de criminalidade da Jamaica? A principal pesquisadora de um centro de estudos jamaicano espera para ver:

I look forward to the empirical research that is going to show whether or not there has been any measurable change in any of these activities following the ban

— Diana Thorburn 🇯🇲 (@DRThorburn) October 11, 2022 [46]

Estou ansiosa pela pesquisa empírica que mostrará se houve ou não alguma mudança mensurável em qualquer dessas atividades após a proibição.