- Global Voices em Português - https://pt.globalvoices.org -

“São valores, lutas de uma vida que podem ser perdidas. A democracia está em risco”, diz autor brasileiro Itamar Vieira Jr.

Categorias: América Latina, Brasil, Arte e Cultura, Eleições, Etnia e Raça, Literatura, Mídia Cidadã, Política, Brazil election 2022

Itamar Vieira Junior, autor do fenômeno literário ‘Torto Arado’ | Imagem: Adenor Gondim/Editora Todavia

Poucos dias antes do primeiro turno das eleições presidenciais do Brasil, com o candidato de extrema-direita Jair Bolsonaro enfrentando o ex-presidente de esquerda Luiz Inácio Lula da Silva, no fim de setembro, o autor brasileiro Itamar Vieira Júnior [1] subiu em um palco, diante de um grande público e endossou a candidatura de Lula.

Ele explicou como as bibliotecas públicas fizeram dele um leitor, e o que aprendeu com seus pais, em meio a uma infância pobre. “Eu tive o privilégio de escrever uma história que encontrou muitos leitores. Uma história sobre o interior da Bahia, que ainda mostra a ferida da escravidão em nossos dias, e que ainda há trabalhadores explorados no campo e nas cidades”.

“Torto Arado” [2] é a história de duas irmãs no estado da Bahia, e as suas vidas com o eco de um acidente ocorrido na infância. O livro se encerra com uma mensagem: “sobre a terra há de viver sempre o mais forte”.

“O mais forte é o povo, é o Brasil, e é por isso que iremos votar em Lula e que somos pela democracia”, disse Vieira no evento [3] do, agora, presidente eleito [4].

Nascido na periferia de Salvador, na Bahia, Vieira, 43, é um fenômeno literário em terras brasileiras. “Torto Arado” já vendeu mais de 400.000 cópias, [5] foi traduzido para vários idiomas [6], além de ter a sua capa tatuada por fãs e de ganhar uma série na HBOMax [7].

O livro foi publicado primeiro em Portugal em 2019, após vencer um prêmio literário [8] de prestígio, chegando aos leitores brasileiros alguns meses depois, quando se tornou um sucesso.

Mesmo como um autor reconhecido e bem-sucedido, Vieira, que também é geógrafo, se manteve em seu emprego como servidor público no Incra [9], o Instituto Nacional para Colonização e Reforma Agrária no Brasil, responsável [10] por políticas fundiárias e pela reforma agrária.

A organização foi uma das instituições enfraquecidas sob o governo Bolsonaro [11], assim como a Fundação Nacional do Índio (Funai [12]) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama [13]).

Vieira disse para a Global Voices em uma conversa por vídeo, que a decisão de manifestar publicamente o seu voto em Lula foi inspirada por outro escritor brasileiro, Raduan Nassar [14].

Após anos evitando entrevistas e afastado da escrita, Nassar voltou a aparecer publicamente em 2016 para se manifestar contra o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff [15]. Ele também apareceu ao lado de Lula antes de sua prisão — as sentenças acabaram posteriormente sendo anuladas [16].

Nesta entrevista para a GV, Vieira fala sobre o seu trabalho, sua obra e sobre o cenário no Brasil antes e depois das eleições de 2022:

Itamar Vieira Júnior em evento pró-Lula em setembro, dias antes do primeiro turno das eleições | Captura de tela/PT Facebook [3]

Global Voices: Você comentou que escreveu uma história que encontrou muitos leitores, o que não esperava. “Torto Arado” foi o livro mais vendido no ano passado, virou um fenômeno literário, a que você credita isso?

Itamar Vieira Júnior (IVJ): Para quem escreve sempre é difícil falar sobre isso, mas eu fico com as impressões que os leitores compartilham comigo. Embora o Brasil seja um país diverso, com muitas origens, é uma história que ainda assim comunica um pouco da nossa história coletiva, que de alguma maneira não foi contada como deveria, tanto pela historiografia oficial, quanto pelas artes mesmo. Esse movimento é mais recente, com honrosas exceções do passado. Talvez seja uma vontade que os brasileiros têm de conhecer o próprio país.

GV: Como foi o processo de pensar essa história e seu convívio com ela?

IVJ: A primeira inspiração eram as histórias familiares que se contavam. Meu pai, meus avós tiveram origem no campo, em comunidades do Recôncavo na Bahia, e essas histórias sempre fizeram parte da minha vida. Mas, também, foi muito estimulada pela literatura brasileira da primeira metade do século 20, os autores do ciclo do Nordeste, por exemplo, escreveram com muita propriedade sobre os conflitos fundiários – Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, José Lins do Rêgo, João Cabral de Mello Neto. Foi assim que nasceu o mote inicial, a história das duas irmãs, numa propriedade rural e a relação que elas tinham com o pai.

Mas ao longo do tempo ela foi mudando. Eu fui trabalhar como servidor público, há mais de 16 anos, no Maranhão e depois na Bahia, diretamente com trabalhadores rurais, com indígenas e quilombolas, com comunidades tradicionais ribeirinhas e aprendi muita coisa sobre esse mundo. Acho que a história ganhou mais densidade, profundidade e pude contá-la da melhor maneira possível.

Capa brasileira original de “Torto Arado | Imagem: editora Todavia

GV: Como foi seu convívio com essa história?

IVJ: Acho que quase 25 anos, porque eu era adolescente quando a história surgiu. Inclusive o título é desse momento. Eu comecei a escrever e escrevi 80 páginas, que depois se perderam em alguma mudança, mas essa história continuava a me habitar. Fui estudar, fui para a universidade, fui trabalhar e aí a vida vira um tumulto, eu não tinha tempo para dar atenção a essa história. Como a literatura com o passar dos anos foi fazendo mais parte da minha vida, cada vez mais, essa vocação gritou mais alto à medida que fui me tornando mais velho. Foi assim que essa história foi amadurecendo.

Quando eu terminei [meu percurso acadêmico], eu decidi me dedicar com mais afinco à literatura, eu já tinha dois livros de contos publicados, e aí eu escrevi esse romance, então, os originais foram parar em Portugal, concorrendo ao Prêmio LeYa. O livro surgiu por isso, depois despertou o interesse da editora Todavia no Brasil. O livro foi publicado em 2019, em Portugal, meses depois aqui e aos poucos foi encontrando leitores, foi acontecendo.

GV: O livro termina com a frase: “Sobre a terra há de viver sempre o mais forte”. O que isso significa em um país de dimensão continental como o Brasil, onde conflitos por terra seguem matando por todo o país?

IVJ: Eu trabalho com camponeses há mais de 16 anos, o forte e o fraco são categorias que existem com muita frequência nesse meio. A planta está forte, o chão está fraco. Eu penso na nossa história colonial, nessa história de violência que o Brasil viveu ao longo dos séculos, de imaginar sempre quem é o forte. Muitas vezes, na voz dessas pessoas, o forte é quem tem poder econômico, quem tem a fazenda, quem é o proprietário. É curioso e, ao mesmo tempo, paradoxal. Se a gente for olhar a nossa história, de violência contra os povos indígenas, contra a população da diáspora negra, é uma história de muitas atrocidades, e como essas pessoas sobreviveram?

A história de “Torto Arado, no fundo, é uma história de força, de coragem, é mostrar que os sobreviventes é que são os mais fortes. Aquelas personagens são sobreviventes de uma história que nem começa com elas, uma história ancestral, de muita violência. Mas elas sobreviveram e não deixaram a terra a despeito de tudo. Foi pensando nisso que essa frase é o desfecho dessa história.

GV: Você fez dois testes de DNA para descobrir suas origens. O que te levou a isso e o que mudou para você?

IVJ: Eu sou um homem mestiço. A família de meu pai tem uma ascendência negra e indígena, a de minha mãe, branca e negra. A família da minha mãe tem ascendência ibérica, portugueses do norte de Portugal, região do Minho, pessoas que migraram para o Brasil fugindo da pobreza e chegaram nos anos 1910 em Salvador. Sobre essa parte da família, tínhamos muitas informações, conseguíamos fazer a árvore genealógica, e isso para mim era marcante, porque eu não tinha o mesmo sobre os outros ancestrais. Era como se soubesse apenas uma parte da minha história.

Esses testes foram se tornando mais baratos, e eu não pensei duas vezes, quando eu pude fazer. Se eu não posso afirmar com toda a certeza, sei pelo menos de que região da África vieram meus ancestrais negros, da Costa da Mina, entre Serra Leoa e Nigéria. A história indígena e negra brasileira sofreu um apagamento brutal, histórico.

Essa questão da identidade é complexa, porque eu sempre me enxerguei como um não branco, mas falar não branco é trazer a centralidade do branco na minha vida e não é bem assim. Claro, tenho ancestralidade branca, como boa parte dos brasileiros, mas se a gente pensar a história da colonização nas Américas é uma história de violência, violência sexual inclusive, contra mulheres indígenas e negras.

[O teste] resgatou um pouco da minha história que estava perdida, diluída na minha cor mais clara, e me devolveu uma identificação que também é política, muito importante neste momento que vivemos.

GV: Você trabalha há anos como servidor público do Incra. O que aprendeu e o que pode nos contar sobre isso?

IVJ: Trabalhar no campo me deu uma medida de como esse país é diverso. Acho que, no campo brasileiro, as nossas mazelas estão de alguma maneira registradas, são parte da paisagem, então, fica muito mais fácil compreender o que é esse país. Trabalhei com várias coisas ao longo desse tempo, com alfabetização de jovens e adultos, acompanhando projetos, com assistência técnica de trabalhadores rurais, aplicando crédito, participei de campanhas de documentação da trabalhadora rural, com regularização de territórios quilombolas.

Tenho consciência da importância de tudo que é feito nesses lugares para a nossa segurança alimentar, para a preservação ambiental. Porque, se a gente for olhar, no Brasil, as grandes propriedades produzem commodities, que podem ser importantes para a balança comercial, mas a gente não come commodity. O Brasil é um país que produz mais de 270 milhões de toneladas de grãos por ano, é mais de uma tonelada por habitante, mas temos 33 milhões passando fome, porque as pessoas não comem soja pura. Isso me deu uma medida da importância do que é o campo para o nosso país, tanto para conhecer a nossa história, quanto para projetar um país e um futuro que seja possível para todos, aliando preservação ambiental e produção de alimentos.

GV: Reforma agrária é algo que parece sempre ficar para depois, era um dos temas defendidos por João Goulart [17], quando ocorreu o golpe militar em 1964, [18] por exemplo. Como você vê a importância dessa questão no Brasil hoje? E acha que há como avançar nela?

IVJ: Eu acho, ainda acredito. Eu vejo a história de outros países, México, Egito, Moçambique, vários países fizeram a reforma agrária. E ela não é algo que você faz uma vez e o problema está resolvido. É uma política pública contínua, que deve ser feita ao longo do tempo. É uma cláusula pétrea da nossa Constituição, a função social da propriedade – é um bem econômico, mas ela precisa ter uma função social. A gente sabe dos problemas que tem o agronegócio, mas ele é muito diverso. Tem aqueles que são inimigos do país, de fato, que desmatam, mas tem os que são conscientes, porque isso é exigido pelos compradores das nossas commodities.

Acho que o Brasil não pode abrir mão do agronegócio, não é algo que está no nosso horizonte, mas pode aliar essas duas maneiras de desenvolvimento social. É possível existir o agronegócio e preservação ambiental, e é possível também o agronegócio nas pequenas e médias propriedades. Agora, é preciso ter um equilíbrio e é aí que o Estado é imprescindível.

GV: Você conheceu lideranças que foram assassinadas e chegou a sofrer ameaças também, não? Pode falar mais sobre isso? 

IVJ: Tem sempre risco. Eu mesmo já recebi ameaças veladas, pessoas dizendo para não aparecer mais ali, fazendeiros descobrindo meu telefone e ligações de assédio ostensivo. Essa violência ocorre contra servidores, mas a gente tem a proteção do Estado, eu já fiz operações com acompanhamento da polícia. Mas uma pessoa comum, uma liderança de comunidade, quase nunca pode fazer isso. A gente passou por anos críticos, esses últimos anos foram de grande violência. Essa história de morte no campo nos acompanha desde sempre, mas ela não pode ser banalizada. Estamos no século 21, é inadmissível que aconteça ainda hoje, e que boa parte desses crimes não se chegue a uma solução, o que termina favorecendo que novos crimes aconteçam. Nesse governo, então, nem se fala.

Parece que eles se sentem autorizados a fazer isso – carros de servidores foram queimados na Amazônia, unidades do ICMBio queimadas por garimpeiros, madeireiros, parece que viramos criminosos por tentar cumprir a legislação, fazer aquilo que é correto. Nosso trabalho é pragmático, delimitado, tudo tem embasamento jurídico, normas, leis, decretos derivados da Constituição. Não é nada da nossa cabeça, vontade própria. É um momento muito crítico.

GV: Manifestar apoio a Lula interferiu em algo em seu trabalho?

IVJ: Eu não estou fazendo uma manifestação institucional, estou me manifestando como cidadão, como qualquer outro cidadão. Algum dia pode aparecer algum questionamento, mas até o momento, não. O tempo pede, urge que todos tenhamos um posicionamento muito claro. Não é uma questão de um candidato ou outro que está disputando, não é uma eleição normal. São valores, lutas de uma vida que podem ser perdidas. A democracia está em risco e uma parte da população compreendeu isso.

Eu nasci no período da ditadura, eu vi meu pai e minha mãe votarem pela primeira vez para presidente em 1989. Meu pai tinha mais de 30 anos. E eu lembro de toda a emoção que eles estão vivendo, panfletando, isso é muito importante. É uma luta histórica que a gente não pode deixar que se perca. Muitos perderam a vida nessa luta, a gente tem que ter apreço. Pode ser uma democracia imperfeita, mas ela ainda é melhor do que qualquer outra coisa. Foi nela que conseguimos alguns avanços importantes na nossa história.

GV: O que está em jogo nas eleições deste ano no Brasil?

IVJ: Eu acho que estamos diante de dois projetos: um projeto imperfeito, mas que ainda assim é civilizatório, e um projeto que só nos entrega violência e barbárie. Então, é importante, inclusive para a existência do Brasil e dos brasileiros, que a gente abrace nosso país nesse momento, para que a gente batalhe para não retroceder.