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Maior massacre em presídios brasileiros, Carandiru teve 111 mortos e é marcado por impunidade

Categorias: América Latina, Brasil, Direitos Humanos, História, Mídia Cidadã, Mídia e Jornalismo, Política
Massacre no Centro de Detenção de São Paulo, na época o maior da América Latina, completa 30 anos Imagem: Tuane Fernandes/Uso autorizado sob licença CC BY 2.0

Reunião da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em 2018, contou com familiares de vítimas do massacre do Carandiru | Imagem: Tuane Fernandes/ Uso sob licença CC BY 2.0 [1]

Em 2 de outubro de 1992 [2], uma briga entre presos durante uma partida de futebol próxima ao nono pavilhão do Complexo Penitenciário do Carandiru [3], em São Paulo capital, escalou para uma rebelião.

Horas depois, a Polícia Militar (PM), acionada para tentar controlar a situação, entrou no local com cães, armas pesadas e munição letal [4]. O resultado foi um saldo de 111 mortos, e a maior chacina [5] já registrada em uma prisão brasileira.

O até então maior presídio da América Latina tinha capacidade oficial para cerca de 3.250 [6] detentos, mas mais de sete mil viviam em seus pavilhões [7]. Entre as vítimas fatais, 89 [8] eram presos provisórios (ainda aguardavam julgamento).

Quatro anos após a Constituição Federal de 1988 [9], criada após duas décadas de ditadura militar [10], o caso Carandiru se tornou um marco. Passados 30 anos, familiares ainda buscam justiça [11] e nenhum responsável foi preso [12].

Um levantamento da Fundação Getúlio Vargas (FGV) [13], publicado pelo site Ponte Jornalismo, aponta que as famílias das vítimas esperam em média 22 anos por indenização.

A ação

Poucas horas depois [16] do início do motim entre presos naquele 2 de outubro de 1992, 341 policiais entraram no complexo penitenciário e foram ouvidos os primeiros disparos [17]. Segundo reportagens, a ação durou cerca de vinte minutos [18].

Ao podcast “Modus Operandi [19]“, o médico Drauzio Varella, que trabalhou por 10 anos dentro do Carandiru, contou [20]:

Você manda invadir um pavilhão às escuras, com colchão pegando fogo no meio da fumaça, por policiais que não conhecem a cadeia por dentro (eram policiais militares, estavam trabalhando na rua, pelotão de choque, outros), dá um cachorro na mão de cada um e dá uma metralhadora na outra mão: você acha que vai acontecer o quê?

Sobreviventes do massacre relataram [21] terem sofrido tortura, como mordidas dos cães da tropa, agressões por cassetete e coronhadas e que, despidos, foram obrigados a carregar e amontoar corpos dos executados.

O ex-detento Sidney Sales, réu-primário e um dos sobreviventes, contou ao jornal El País [22]:

Da forma como fomos surpreendidos pela tropa, qualquer um entrava em pânico […] Foi uma carnificina aquele dia, eu comparo o que aconteceu com Auschwitz, Camboja e outras tragédias que eu via só em filme ou livro […] Carreguei uns 25 corpos. Descíamos eles dos andares e amontoávamos no pátio.

Sidney Sales, ex-detento e sobrevivente do massacre, segura imagem dos corpos da reunião da CIDH | Imagem: Tuane Fernandes/Uso autorizado sob licença CC BY 2.0

Sidney Sales, ex-detento e sobrevivente do massacre, segura fotografia sensível dos corpos em reunião da CIDH | Imagem: Tuane Fernandes/Uso sob licença CC BY 2.0 [1]

Nenhum policial [11] foi morto na ação. Em 2013, mais de 20 anos depois, no julgamento inicial de 79 agentes indiciados pelo massacre, testemunhas disseram [23] que a polícia “pôs armas nas celas” para justificar os assassinatos.

De acordo com relatório [24] da Comissão Organizadora de Acompanhamento para os Julgamentos do Caso do Carandiru, a tropa entrou armada com fuzis, metralhadoras e pistolas automáticas, com o auxílio de cachorros treinados para proteção e ataque.

O perito criminal Osvaldo Negrini Neto, que assinou o laudo do Instituto de Criminalística (IC), descreveu a cena ao júri [25] como “infinidade de celas com balas [2]” e disse ainda:

A Polícia Militar disse ao delegado que não havia campo para perícia e que a perícia não devia ser acionada […] Não ter encontrado nenhuma cápsula impossibilitou individualizar as condutas (dos réus) […] A história estava escrita nas paredes.

Ainda segundo Drauzio Varella [26], não houve reação dos detentos, pois os policiais “entraram arregaçando em tudo que se movia e que não se movia”:

Imagina: você está lá preso, você tem uma faca na mão — faca eles tinham, muitas — e daí aparece na ponta da galeria um pelotão de policiais militares com metralhadora na mão e um cachorro. Você faz o que nessa hora? Você vai pra sua cela, esconde a faca e se esconde dentro da cela. Não tem nenhuma possibilidade de você enfrentar.

Os prisioneiros teriam jogado pelas janelas “canos, facas e qualquer objeto usado como arma que pudesse comprometê-los”, segundo o site Aventuras na História [27].

Impunidade

Nos julgamentos [28] de policiais, as penas variaram entre 48 a mais de 630 anos. Entre 2013 a 2014 ocorreram [29] cinco júris populares, condenando 74 deles pelos homicídios de 77 detentos.

Em 2001, o Coronel Ubiratan Guimarães, identificado como comandante da ação, foi condenado [30] em 632 anos de prisão, e pode recorrer [31] em liberdade.

No ano seguinte, famoso pelo episódio, o coronel foi eleito deputado estadual em São Paulo com mais de 50.000 votos. Ele foi assassinado em casa [30] em 2006, num caso que segue sem solução [32].

Em 2012, o advogado dele, Vicente Cascione [33], afirmou ao site G1 [34] que não houve massacre no presídio:

Os presos que se renderam e não foram para cima [dos policiais] foram salvos e socorridos. Todo mundo fala no número de mortos. Ninguém fala do número de poupados, quase 2 mil (…) Morrem 100 por opção. É um confronto, meu Deus do céu.

Com recursos na Justiça [28] por parte dos acusados, o Tribunal de Justiça de São Paulo anulou todos os cinco julgamentos de PMs, mas a decisão foi revertida [28] pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ [35]). Em 2022, o Superior Tribunal Federal (STF) manteve a decisão do STJ [36].

O promotor do caso, Márcio Friggi, disse ao G1 [28] na véspera do aniversário de 30 anos do massacre:

Não se discute mais culpa. Eles são culpados, foram condenados. Essa decisão não muda mais. Agora, só se discute no Tribunal de Justiça de São Paulo questões relacionadas à pena […] Fica nítido nos autos, depoimentos de presos e esclarecimentos do perito que fez a cena do crime, indicando que o propósito foi abater.

Em agosto deste ano, um projeto que anistia os policiais militares processados ou punidos pela atuação no Carandiru [37] foi apresentado pelo deputado federal Capitão Augusto (PL [38], Partido Liberal), do partido do presidente Jair Bolsonaro, e aprovado em uma comissão da Câmara dos Deputados. Ele deve passar [37] por outras instâncias e pelo plenário para ser aprovado.

O deputado diz [37] que as ações da PM serviram “para conter a violência dos rebelados e, assim, cumprir sua missão de manter a ordem pública”.

O Padre Gianfranco Graziola, da Pastoral Carcerária [39], grupo ligado à Igreja Católica Apostólica Romana, criticou a proposta em uma conversa com o Global Voices via WhatsApp:

O Estado é punitivista, não respeita o ser humano e, aprovando o projeto de lei que anistia os policiais, quer dizer que quer cancelar a memória, quer cancelar a história […] Isso é uma expressão da barbárie que nós vivemos e de uma ideologia em que o ser humano é violado em seus direitos fundamentais, na sua essência.

Para o padre, o sistema carcerário não melhorou desde o massacre: o Brasil “tem uma situação pior, de maior precariedade”, com um sistema ligado ao lucro:

Há uma mercantilização do sofrimento alheio, da dor alheia. E, nisso, aumenta a brutalidade, aumenta o descaso, aumenta também a possibilidade da sociedade fiscalizar/adentrar no sistema penitenciário.

Um ano após o caso, foi criado [40] dentro das prisões de São Paulo o Primeiro Comando da Capital (PCC [41]), que é hoje o maior grupo criminoso do Brasil e tem atuação em outros países.

Segundo reportagem da Folha de São Paulo [42], no início do PCC, os criadores afirmavam que o objetivo da facção era “combater a opressão” nos presídios e “vingar a morte dos 111 presos” do Carandiru.

Memória

Após o massacre, o nome Carandiru se tornou parte da memória coletiva brasileira, citado [43]em músicas, livros e filmes. “Diário de um Detento [44]“, do grupo de rap Racionais MC's [45], retrata o episódio pela visão de uma vítima.

Drauzio Varella, que iniciou sua atuação na prevenção e conscientização dos prisioneiros sobre HIV/AIDS, relatou suas experiências [46] em dois livros. Um deles, “Estação Carandiru [47]“, foi adaptado para o cinema [48] em 2003, com gravações feitas no próprio presídio.

Sidney Sales, ex-preso, publicou [49] suas memórias em “Paraíso Carandiru: a história do homem que, levado ao inferno, encontrou a porta do céu”.

Dez anos depois [50] do massacre, dois pavilhões foram implodidos. Em 2018 [50], outros três foram demolidos e a Prefeitura de São Paulo deu início ao tombamento das estruturas restantes.

Lembrando os 30 anos do Carandiru, a Frente Estadual Pelo Desencarceramento São Paulo [51], reivindicou o fim das prisões em uma carta e um vídeo-manifesto [52], onde afirmam que o Brasil vive uma “democracia dos massacres”, lembrando outros episódios ocorridos desde então.

“Nossa história é de resistência e estamos aqui em memória das 111 vidas perdidas no Carandiru”, diz o documento.

Em números totais, o Brasil tem uma das maiores populações carcerárias do mundo. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ [53]), o país passou de 900.000 presos [54] durante a pandemia da COVID-19.  Segundo dados recentes [55], o país tem hoje cerca de 660 mil presos.