- Global Voices em Português - https://pt.globalvoices.org -

Escritores e acadêmicos filipinos se opõem à censura literária

Categorias: Leste da Ásia, Filipinas, Arte e Cultura, Censorship, Literatura, Mídia Cidadã, Marcos watch: The first 100 days
Books reviewed by Komisyon sa Wikang Filipino [1]

Os cinco livros identificados como “subversivos” por alguns encarregados do Komisyon sa Wikang Filipino (Comissão de Línguas Filipinas). Foto: [1] Center for Media Freedom and Responsibility.

Uma ordem do governo interrompendo a publicação e distribuição de cinco livros batizados de “subversivos” pelas autoridades filipinas foi rescindida após uma forte resistência da comunidade literária e acadêmica das Filipinas contra a censura e a repressão.

A Komisyon sa Wikang Filipino [2] [Comissão de Línguas Filipinas] ou KWF, agência governamental subordinada ao gabinete executivo do presidente que se encarrega de promover, preservar e desenvolver as línguas do país, retirou a ordem após protestos apoiados pelos principais acadêmicos e escritores do país.

Logo após um programa de entrevistas na emissora de TV de extrema-direita Sonshine Media Network International (SMNI) acusar os livros de “subversão” e identificar os autores como “comunistas”, a Comissão proibiu os seguintes títulos no Memorando 2022-0663, no dia 9 de agosto:

  1. “Teatro Politikal Dos” [Teatro Político Dois] de Malou Jacob;
  2. “Kalatas: Mga Kwentong Bayan at Kwentong Buhay” [Cartas: Narrativas do Povo e Histórias de Vida] por Rommel B. Rodriguez;
  3. “Tawid-diwa sa Pananagisag ni Bienvenido Lumbera: Ang Bayan, ang Manunulat, at ang Magasing Sagisag sa Imahinatibong Yugto ng Batas Militar 1975-1979″ [Transmitindo o Significado das Obras de Bienvenido Lumbera: O Povo, o Escritor, e a Revista Sasisag no Estágio Imaginativo da Lei Marcial de 1975-1979] por Dexter B. Cayanes;
  4. “May Hadlang ang Umaga” [A Manhã Está Comprometida] por Don Pagusara; e
  5. “Labas: Mga Palabas sa Labas ng Sentro” [Afora: Performances Além do Centro] por Reuel M. Aguila.

Red-tagging é um termo usado nas Filipinas para se referir à prática [3] de classificar indivíduos como terroristas ou comunistas rebeldes “sem provas substanciais de condutas ilegais”.

A comissária da KWF para Programas e Projetos, Carmelita Abdurahman, e o comissário para Operações e Finanças, Benjamin Mendillo, escreveram o memorando, que também foi assinado por outros três comissários da KWF.

Livros “subversivos”?

No programa SMNI “Laban Kasama ang Bayan” [Luta com a nação], Lorraine Badoy,  ex-subsecretária de comunicações no governo de Rodrigo Duterte, e outros porta-vozes anticomunistas, identificaram [8] palavras específicas, diálogos e até mesmo referências encontradas nos cinco livros que condenaram como “terroristas”.

[9]

Captura de tela [9] da gravação do programa SMNI de 9 de agosto, que identificou cinco livros filipinos como subversivos.

Os porta-vozes anticomunistas destacaram trechos da premiada peça de Malou Jacob, Teatro Político Dois, que faz parte de uma coleção de cinco peças teatrais. Essas falas simplesmente descrevem a revolta popular EDSA, que derrubou o falecido ditador Ferdinand Marcos em fevereiro de 1986, como “a melhor coisa que aconteceu depois de quinze anos de lei marcial”.

[9]

Captura de tela [9] da gravação do programa SMNI de 9 de agosto, que identificou cinco livros filipinos como subversivos.

Também se destacaram trechos de “Kalatas”, uma coleção de vinhetas e reflexões do ficcionista e professor de literatura Rommel Rodriguez. O texto apenas menciona as realidades de alguns filipinos que organizaram a revolução armada contra o governo: “May umakyat ng bundok upang humawak ng Sandata” [Há aqueles que partem para as montanhas para levantar armas].

Captura de tela [9] da gravação do programa SMNI de 9 de agosto, que identificou cinco livros filipinos como subversivos.

“Tawid-diwa sa Pananagisag ni Bienvenido Lumbera”, do estudioso Dexter Cayanes, é uma tese publicada sobre o falecido Lumbera, reconhecido com o título de Artista Nacional Filipino pela Literatura. O livro, entretanto, foi identificado apenas por mencionar os líderes comunistas rebeldes Jose Ma Sison e Julieta de Lima. Até mesmo citações da crítica de arte marxista Alice Guillermo e outras obras acadêmicas como “Marxismo e História Literária” foram apresentadas como prova de subversão.

[9]

Captura de tela [9] da gravação do programa SMNI de 9 de agosto, que identificou cinco livros filipinos como subversivos.

O diálogo da peça de teatro “May Hadlang ang Umaga” de Don Pagusara [10], que retrata a circunstância histórica dos filipinos que falam sobre a adesão à luta armada contra a ditadura, também foi identificado como subversivo. Pagusara, ex-preso político durante a ditadura, é um dramaturgo e poeta que escreve em ceubano e por diversas vezes foi premiado.

Captura de tela [9] da gravação do programa SMNI de 9 de agosto, que identificou cinco livros filipinos como subversivos.

A simples exibição das realidades sociais do aprisionamento de ativistas, fome, violência e pobreza (“gutom, dahas, kahirapan”) durante a era da lei marcial, em uma das obras do premiado dramaturgo e professor Reuel Aguila no livro “Labas” também é se oferece como prova de terrorismo.

Autores se posicionam

Em resposta a essas acusações, os cinco autores fizeram uma declaração conjunta escrita em filipino [11] para pedir a retirada das falsas alegações contra eles.

Os autores afirmam [12] que as tentativas dos porta-vozes anticomunistas de classificarem as suas obras como comunistas são, de fato, o verdadeiro ato de terrorismo, semeando medo na comunidade literária e acadêmica: 

Naniwala kaming hindi nabasa mismo ng mga nagpaparatang ang kabuuan ng lima naming libro. Naniniwala kaming isang uri ng karahasan ang pigilang maipakita ang iba’t ibang danas ng mga Pilipino. Naniniwala kaming isang uri ng terorismo ang magtakda kung ano lamang ang maaaring isulat at paano isulat ang mga ito.

Acreditamos que os acusadores não leram nossos livros na íntegra. Acreditamos que impedir a exposição da diversidade de experiências dos filipinos é uma forma de violência. Acreditamos que é uma forma de terrorismo ditar o que pode ser escrito e como escrevê-lo.

Rodriguez enfatizou [13] que “Kalatas” e suas outras obras literárias tinham como objetivo dizer a verdade sobre a realidade das pessoas que tomavam as armas ao invés de encorajar os leitores a lutar contra o governo:

They were taken out of context because after all, it is so easy to say they are subversive because they contained such words. Am I the only one who used ‘revolution’ and ‘weapon’? No. Many people in history have used them.

Foram retirados do contexto porque, no fim das contas, é muito fácil dizer que são subversivos porque continham tais palavras. Sou o único que usou ‘revolução’ e ‘arma’? Não. Muitas pessoas ao longo da história usaram.

Pagusara disse [10] que a censura de suas obras causa um efeito arrepiante na ampla comunidade de escritores, artistas, trabalhadores culturais, acadêmicos e estudiosos. Ele explicou que “May Hadlang ang Umaga” é baseado em suas experiências reais como ativista e prisioneiro político durante a lei marcial no regime de Marcos:

May Hadlang ang Umaga is a fictional play written in the 1980s based on the life of political prisoners held in custody at the Youth Rehabilitation Center, a former maximum security prison at Fort Bonifacio in Taguig City. It was actually archived in my mini library when KWF Chairman Arthur Casanova offered that the book be published.

May Hadlang ang Umaga é uma peça ficcional escrita na década de 1980 baseada na vida de presos políticos mantidos sob custódia no Centro de Reabilitação Juvenil, uma antiga prisão de segurança máxima no Forte Bonifácio, na cidade de Taguig. Na verdade, [o livro] estava arquivado na minha mini biblioteca quando o presidente da KWF, Arthur Casanova, ofereceu que o livro fosse publicado.

O presidente da KWF, Arthur Casanova, que foi pressionado a renunciar por supostamente permitir a publicação dos livros em questão, negou as acusações em um comunicado [14]. Ele afirmou [15]que os cinco livros, de fato, passaram pelo processo de revisão regular da comissão para publicação, dizendo que o conteúdo dos livros se enquadra dentro dos limites de liberdade de expressão e liberdade acadêmica.

Solidariedade e resistência

Um manifesto coletivo [16] assinado por mais de 30 associações culturais, educacionais e linguísticas, organizações e departamentos universitários expressou apoio aos autores e suas obras censuradas. O comunicado afirma [17] que os livros podem citar textos considerados subversivos ou revolucionários pelo Estado: 

Bahagi ng akademikong kalayaan ng mga manunulat, guro, mananaliksik at ng lahat ng mga mamamayan ang pagbabasa, pagsusuri, pagsipat, pag-cite, pagsangguni at paggamit sa KAHIT ANONG BABASAHIN, SINUMAN ANG SUMULAT AT SINUMAN ANG NAGLATHALA.

A liberdade acadêmica de escritores, professores, pesquisadores e de todos os cidadãos inclui escrever, analisar, investigar, citar, referenciar e usar qualquer texto, sem importar quem foi que escreveu.

O Departamento de Língua e Literatura Filipina da Universidade das Filipinas, onde Aguila e Rodriguez são membros do corpo docente, apontou [18] a ironia da censura dos cinco livros escritos em filipino durante o Buwan ng Wika [Mês do Idioma] por meio comissão governamental encarregada de promover o idioma nacional.

O Congresso de Professores e Educadores pelo Nacionalismo e a Democracia (CONTEND), uma organização de professores ativistas e trabalhadores acadêmicos da Universidade das Filipinas, contextualizou [19] o recente caso de censura de livros na longa história de red-tagging do país:

This incident cannot be divorced from other attacks on academic freedom in the past few years under the Duterte regime and attempts to distort history from the Marcos camp. We remember the purging of historical and political books tagged by the state as “subversive” from state university libraries, the red-tagging of certain bookstores, and the banning of websites and media outfits that cover the realities of the Filipino people.

Este incidente não pode ser dissociado de outros ataques à liberdade acadêmica nos últimos anos sob o regime de Duterte e as tentativas de distorcer a história da doutrina de Marcos. Lembramos a eliminação de livros históricos e políticos das bibliotecas de universidades estaduais,  classificados como “subversivos” , o red-tagging de certas livrarias e a proibição de sites e veículos midiáticos que fazem reportagens sobre as realidades do povo filipino.

Em 21 de setembro de 2022, os comissários da KWF Alain Russ Dimzon, Angela Lorenzana e Hope Sabapan-Yu retiraram oficialmente suas assinaturas do Memorando nº 2022-0663 por meio da Resolução nº 27. A emissão da nova resolução veio à tona em uma sessão do Congresso das Filipinas, quando os legisladores ativistas da Coalizão Makabayan (Pró-Pessoas) pressionaram sobre a questão da censura de livros durante a audiência para propor o orçamento da KWF para 2023.

France Castro, representante do Partido da Aliança dos Professores no Congresso, disse [20] que essa oposição contra a censura de livros “não teria sido possível se não fosse o clamor do povo e a forte condenação das pessoas contra os ataques à liberdade acadêmica, de imprensa e de expressão”.

O autor leciona na Universidade das Filipinas, no Departamento de Língua e Literatura Filipina.  Também é membro do Congresso de Professores e Educadores pelo Nacionalismo e a Democracia.