Por que tantos professores estão desistindo de suas carreiras em Hong Kong?

Imagem de inmediahk.net. Usada sob permissão.

A matéria a seguir é a versão em traduzida de um relatório chinês publicado em Hong Kong com base no portal on-line de notícias inmediahk.net, em 18 de setembro de 2022. O artigo é republicado pela Global Voices sob um acordo de parceria de conteúdo com o inmediahk.net.

Ao menos 4.000 professores deixaram sua profissão no ano letivo de 2020/2021, segundo o Gabinete de Educação de Hong Kong. O número reflete um aumento de 70% de pedidos de demissão em comparação com os 2.380 do ano anterior. É esperado que mais professores mudem seus planos de carreira no próximo ano devido à repressão aos professores e à severa intervenção governamental na sala de aula. 

O êxodo em massa de professores aconteceu depois da promulgação da Lei de Segurança Nacional (NSL) em 30 de junho de 2020, junto com a introdução do currículo da segurança nacional e a exigência de um novo “voto de lealdade”. 

O Gabinete de Educação alegou que o êxodo em massa foi “uma escolha pessoal” e que o governo iria enfrentar o problema fortalecendo a administração escolar e fornecendo oportunidades de promoção para jovens professores. Ele não abordou nenhuma preocupação a nível de regulamento.

Para descobrir o que compeliu milhares de professores a deixar suas carreiras, repórteres da inmediahk entrevistaram alguns ex-professores sobre suas experiências. 

Um ambiente livre e democrático para crianças

Alan, 53 anos, havia ensinado física e matemática desde 1992 antes de partir no final de 2020. Àquela altura, ele era o chefe do departamento de física, com um salário de HKD 90.000 (aproximadamente US$ 11.500). No entanto, ele estava determinado a deixar Hong Kong:

I don’t want my children to grow up in such an environment.

Não quero que meus filhos cresçam em um ambiente assim.

Ele vendeu sua casa e se mudou para a Inglaterra com sua mulher e seus filhos de 15 e 18 anos.

Ele sempre viu a docência como um compromisso para a vida inteira, mas depois dos protestos de extradição anti-China em 2019, ele previu a erosão da liberdade na cidade. Antes de partir, havia visto muitas reclamações direcionadas a professores.

Em meados de 2020, alguns políticos pró-Pequim e grupos em Hong Kong instalaram linhas diretas e sites que encorajavam o público a denunciar pessoas suspeitas de violar a NSL. Os supostos suspeitos incluíam jornalistas e professores escolares que em tese se envolviam em “má conduta profissional”. Essa iniciativa foi posteriormente assumida pela polícia de Hong Kong.

Para se integrar em seu novo lar na Inglaterra, Alan encontrou um emprego de meio período como recepcionista de hotel. Ele também trabalhou como tutor privado para estudantes em Hong Kong e no Reino Unido. Ele não se arrepende de abrir mão de sua carreira, enfatizando:

Seeing my children growing up in a democratic and free environment and having a happy school life is more important.

Ver meus filhos crescendo em um ambiente livre e democrático e ter uma vida escolar feliz é mais importante.

Escolas em Hong Kong não são mais educativas

Tiffany, 43 anos, professora responsável por questões administrativas em uma escola primária, também migrou para o Reino Unido. Ela explicou sua decisão:

After 2019, the school climate changed rapidly. The administration reminded teachers to be careful when teaching in class and writing on social media to avoid complaints. The environment was not educational.

Depois de 2019, o clima escolar mudou rapidamente. A administração lembrava professores de ser cuidadosos quando estivessem ensinando em sala e publicando em redes sociais para evitar reclamações. O ambiente não era educativo.

Entre 2019 e 2021, o Gabinete de Educação recebeu 502 reclamações sobre má conduta de professores, das quais 344 estavam ligadas aos protestos de 2019. Dentre os 189 casos comprovados, seis professores foram demitidos, 50 receberam cartas de reprimenda, 59 levaram advertências, 39 receberam advertências por escrito e 37 foram lembrados sobre as políticas da NSL.

Tiffany recebeu uma reclamação de pais depois de pedir aos estudantes que completassem uma tarefa de casa que envolvia recortes de jornais. Os pais a acusaram de levar política para dentro da escola e questionaram sua orientação política.

Apesar de não ter recebido uma punição, ela previu que “as coisas iriam piorar”.

No ano letivo de 2020/21, elementos de segurança nacional foram introduzidos ao campus.

Todas as escolas públicas eram obrigadas a hastear a bandeira nacional diariamente e conduzir cerimônias de hasteamento de bandeira semanalmente durante o ano letivo de 2021/22. Para cumprir os critérios, a escola de Tiffany estabeleceu uma equipe de hasteadores e um esquadrão de escada. A escola escolheu cuidadosamente estudantes de famílias pró-governo para participar.

Em fevereiro de 2021, o Gabinete de Educação anunciou a implementação das Orientações Gerais do Currículo da Educação da Segurança Nacional para o ano letivo seguinte. Dois meses depois, em 15 de abril, o Dia da Educação da Segurança Nacional foi realizado pela primeira vez em todas as escolas primárias e secundárias.

Naquele dia, todas as outras aulas foram suspensas na escola de Tiffany. Professores foram para a sala de aula com apresentações de PowerPoint promovendo a Lei da Segurança Nacional.

Tiffany não teme que suas filhas sejam “alienadas”, já que ela as ensinou sobre acontecimentos atuais e as levou a manifestações no passado. No entanto, ela não quer vê-las vivendo em um ambiente hostil e cheio de conflitos. Ela lembrou suas filhas de evitar falar sobre protestos com seus colegas de sala ou mencionar slogans pró-democracia.

There are so many red lines. They will eventually learn how to “survive” and grow up, but I don’t want to see them just learning how to survive, I want them to learn freely. 

Há tantos limites. Com o tempo elas aprenderão a ‘sobreviver’ e crescerão, mas eu não quero vê-las aprendendo apenas a sobreviver, quero que aprendam livremente.

No verão de 2021, ela deixou Hong Kong e foi para o Reino Unido com suas filhas de 5 e 11 anos.

Ah Tien, que tinha mais de 20 anos de experiência de ensino, era responsável pela implementação da Educação da Segurança Nacional antes de deixar a escola neste verão.

Em fevereiro de 2021, o Gabinete de Educação divulgou a base curricular “Segurança Nacional: Medidas Específicas para Escolas” para 15 matérias escolares, exigindo que as escolas revelassem o seu currículo e submetessem novas bases curriculares para 2021/22 até o fim de agosto.

Limites e autocensura

Além de criar um plano de trabalho para o ano letivo seguinte, Ah Tien teve de revelar os materiais de ensino de seus colegas, formar uma equipe de educação de segurança nacional, organizar cerimônias de hasteamento da bandeira nacional diária e semanalmente, providenciar treinamento de educação da segurança nacional para outros professores e mais.

A autocensura se tornou uma prática comum nas escolas. Por exemplo, ao ensinar Estudos Gerais, seus colegas escolhiam cuidadosamente tópicos que são “politicamente corretos”.

As “Medidas Específicas” afirmam especificamente que “professores não devem defender posições políticas pessoais, transmitir valores distorcidos ou fazer comentários provocativos”. Ela simplesmente parou de falar sobre seus sentimentos pessoais em sala, como sua opinião sobre a repressão do movimento estudantil em 4 de junho de 1989, na praça Tiananmen, em Pequim.

Ela decidiu mudar sua trajetória de carreira no verão de 2022:

I am so fed up with the fear of stepping into red lines and making mistakes.

Estou muito farta de ter medo de ultrapassar os limites e cometer erros.

Professores jovens também estão deixando o setor educacional. Dentre eles estão Keung e S.

Keung era professor de ciência e computação. Apesar de as duas matérias não terem elementos de segurança nacional muito fortes, ele também sentiu os efeitos colaterais:

When teaching energy and natural resources, we have to cite examples from China and highlight “ecological security” and “resource security” from a nationalistic point of view. As for computer class, the focus is on “cybersecurity,” and we have to teach the students to be responsible for their online speech and fact-checking.

Ao ensinar sobre energia e recursos naturais, nós temos de citar exemplos da China e destacar a ‘segurança ecológica’ e a ‘segurança de recursos’ de um ponto de vista nacionalista. E na aula de computação, o foco é a ‘segurança cibernética’, e temos de ensinar os estudantes a ser responsáveis por seu discurso on-line e pela verificação de fatos.

Como as escolas precisam entregar relatórios regularmente sobre os resultados das aulas, os professores precisam incluir elementos de segurança nacional em seus materiais de ensino e nas atividades de casa dos estudantes.

Em novembro de 2021, o Gabinete de Educação entregou uma nova base curricular de “Valores da Educação” para todas as escolas públicas ou subsidiadas. Ela se especializa em fortalecer a identidade nacional dos estudantes e em cultivar valores como respeito às leis, empatia e trabalho árduo. Na escola de Keung, os professores são responsáveis por implementar o currículo em sala. 

Do I really want to execute this? I find it difficult to talk about something I don’t believe in. I really don’t want to be the one doing this… last year, you could just avoid sensitive topics, in 2021/22, you have to take an active role [in the national security education]. 

Eu realmente quero executar isso? Acho difícil falar de algo em que não acredito. Realmente não quero ser quem fará isso… No ano passado, podíamos apenas evitar tópicos sensíveis; em 2021/22, temos de assumir um papel ativo [na educação da segurança nacional].

Apesar da boa perspectiva de carreira, Keung decidiu se demitir e mudar seu caminho.

Do mesmo modo, S., que ensinou chinês por 5 anos, não conseguiu se convencer a implementar o currículo. Ele planeja se demitir e estudar no exterior em 2023.

Sob a base curricular da educação da segurança nacional, a nova versão do livro de história chinesa para estudantes do nível médio adicionou elementos de Lei Básica, incluindo a afirmação de que “Hong Kong faz parte do território chinês desde tempos antigos”. Portanto, Hong Kong está deliberadamente marcada no mapa da dinastia Chin (259–210 A.C.), já que o primeiro imperador Chin realizou uma expedição militar para Baiyue,  que no mapa de hoje está no sul da China e no norte do Vietnã.

S. lembrou que quando pisou na sala de aula, ele planejou ler o texto e acabar com o trabalho, mas com o tempo, não conseguia dizer uma palavra.

Não há espaço para deliberação ou meio-termo

Além de apresentar a base de educação da segurança nacional, todos os professores deveriam participar de seminários de treinamento relacionados, fornecidos pelo Gabinete de Educação. Durante essas palestras, S. sofria dores no estômago e na cabeça. Ele chorava silenciosamente durante o treinamento:

My body doesn't work, and I could not bear such a kind of nonsense and absurdity, I simply can't take it.

Meu corpo não funcionava e eu não conseguia suportar tantas coisas absurdas e sem sentido, eu simplesmente não aguento.

Em resposta às críticas do setor educacional, o Gabinete de Educação enfatizou que não há espaço para deliberação ou meio-termo em um artigo publicado em seu site em fevereiro de 2021:

…schools should point out that safeguarding national security is the responsibility of all citizens, there is no room for debate or compromise; at the same time, students should cultivate the concept of common safeguarding national security and a sense of responsibility.

‘…as escolas deveriam destacar que proteger a segurança nacional é responsabilidade de todos os cidadãos, não há espaço para debate ou meio-termo; similarmente, os estudantes deveriam cultivar o conceito de proteção comum da segurança nacional e um senso de responsabilidade.

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