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Cidade levanta bandeira de Bolsonaro, em meio à fumaça de queimadas na Amazônia

Categorias: América Latina, Brasil, Eleições, Etnia e Raça, Indígenas, Meio Ambiente, Mídia Cidadã, Política, Saúde, Brazil election 2022

Queimada no centro de Novo Progresso (PA) | Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real

Essa reportagem, escrita por Cícero Pedrosa Neto, foi publicada [1] no site da Amazônia Real [2] em 20 de setembro de 2022. Ela é republicada pelo Global Voices em um acordo de parceria, com atualizações e edições ao texto original.

Com mochilas nas mãos, a dona de casa Maria Margareth Silva, 67, eleitora de Jair Bolsonaro [3] (PL, Partido Liberal [4]), aguardava o ônibus na rodoviária de Novo Progresso [5]. Era manhã de 3 de setembro, embora não parecesse.

Sufocado por uma densa névoa de fumaça e fuligem, resultado da poluição das queimadas [6] nas florestas do seu entorno, o município do estado do Pará [7], norte do Brasil, vive dias que parecem noites. A grossa camada de materiais particulados e gases tóxicos torna o ar irrespirável. Ao conversar com a reportagem, Maria Margareth mal podia falar, tossia repetidamente.

“Vou passar uns dias na casa de uns parentes em Uruará (cidade vizinha) para fugir da fumaça”, disse ela. Ao contrário de outros moradores dali, ela diz que não consegue conviver com o efeito das queimadas.

Novo Progresso é um dos municípios líderes em focos de incêndios florestais, de desmatamento e de apoio ao presidente da República, visto como incentivador [8] da devastação na Amazônia.

“Chega nessa época do ano é desse jeito. A gente não consegue nem ver o céu. O sol é só aquela tocha vermelha…A gente respira com o ar apertado. Enquanto não vier a chuva vai ser assim”, diz, referindo-se ao início da estação chuvosa, normalmente em novembro.

Em Novo Progresso, não se vêem bandeiras de presidenciáveis que não sejam em apoio a Bolsonaro, e quase sempre ao lado da bandeira do Brasil, símbolo nacional usurpado [9] pelo ultranacionalismo reproduzido pelo presidente.

O município de Novo Progresso é o décimo que mais emite gases de efeito estufa no Brasil. São cerca de 580 toneladas de CO2 por habitante ao ano, segundo dados do Observatório do Clima [10]. Mais de 80 vezes a média da população mundial, que gira em torno de 7 toneladas ao ano por habitante.

“É como se cada morador de Novo Progresso tivesse mais de 500 carros rodando 20 quilômetros por dia com gasolina”, diz o relatório.

Fumaça na Amazônia

Focos de incêndio ao longo da vicinal Paraná, via de acesso à Terra Indígena Baú, do povo Kayapó, em Novo Progresso (PA) | Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real

Segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais [11]), de janeiro até 18 de setembro de 2022 foram registrados ​24.034 focos de queimadas no estado do Pará, superando 2020 (23.507 focos), e 2019 (15.776 focos).

Novo Progresso é uma das cidades responsáveis por exportar a fumaça tóxica [12] das queimadas da Amazônia para as regiões Sudeste e Sul [13] do País. Os moradores costumam dizer que na cidade há duas estações no ano: a da chuva e a do fogo.

A cidade ficou conhecida pelo “dia do fogo [14]”, um movimento orquestrado pelo WhatsApp, em 10 de agosto de 2019. Os autores – a maioria fazendeiros e grileiros (invasores de terras públicas) – queriam chamar a atenção de Bolsonaro para pedir o fim das fiscalizações do Ibama [15] (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) na cidade e nas Unidades de Conservação que estão em seu território.

Eles atearam fogo em uma vasta área de floresta, que se espalhou para municípios vizinhos. Em dois dias [16], o Inpe registrou 1.457 focos de queimadas no Pará. Em 2022, um novo “dia do fogo” [17], em 22 de agosto, chegou a 2.238 focos [18], segundo o instituto.

A reportagem flagrou o avanço do fogo sobre os limites da Terra Indígena do povo Kayapó, nas proximidades da aldeia Kamau.

“Todo ano a gente reúne os guerreiros para impedir o fogo de entrar no nosso território. É difícil, a gente tenta conversar com os fazendeiros, mas eles não escutam. Olha aí como ficou”, conta Bepdjyre Kayapó, liderança da aldeia Kamau, apontando para a área queimada que invadiu a divisa do território indígena.

Nem a placa da Fundação Nacional do Índio [19] (Funai) que assinala o início da TI escapou do fogo.

Placa da Funai atingida pelo fogo nos limites da TI Baú | Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real

“Eles [Funai] não têm estrutura para controlar até onde o fogo vai queimar. Aí acaba entrando na terra indígena, obrigando os moradores a ficarem de prontidão, esperando sempre pelo pior”, diz uma fonte ouvida pela reportagem, que não quis ser identificada.

Há anos, outros territórios protegidos em áreas que se sobrepõem ao território [20] de 38 mil quilômetros do município, sofrem com o avanço sistemático de grileiros, madeireiros e garimpeiros.

Nessa época, uma nuvem de fumaça toma conta das ruas, das casas, das escolas, dos hospitais, sem lugar para escapar. As pessoas evitam vestir branco, e a fuligem chega às casas das famílias e às roupas no varal.

O ar quente, resultante das queimadas, atinge a garganta, a traquéia e os pulmões. A tosse e o cansaço respiratório já começam a ser sentidos nas primeiras horas de estadia na cidade.

Clima de desespero

De janeiro até 18 de setembro de 2022, Novo Progresso registrou 3.083 focos de queimadas, segundo o Inpe.

“Parece que todo mundo resolveu queimar no final de agosto, início de setembro. Acho que as pessoas estão com medo e indo com tudo pra cima da floresta sem levar em consideração o dia de amanhã”, afirma a pesquisadora Ane Alencar [21].

”Pode ser um reflexo do processo eleitoral que a gente está vivendo”, diz, referindo-se ao cenário desfavorável para Bolsonaro nas eleições.

O presidente terminou o primeiro turno [22] atrás do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT, Partido dos Trabalhadores), com uma diferença de 6 milhões de votos [23]. No Pará [24], Lula recebeu 52,2% dos votos, e Bolsonaro 40,2%. Em Novo Progresso, porém, o atual presidente ficou bem à frente, com 79,6% contra 17,5%.

“O triunfalismo do agronegócio, entusiasmado com o Bolsonaro de 2019, foi substituído pelo desespero de fazer tudo rápido e no máximo de extensão possível, face às perspectivas de derrota dele nas urnas”, diz Alfredo Wagner Berno de Almeida [25], coordenador do grupo de pesquisa Nova Cartografia Social da Amazônia [26].

O pesquisador aponta também outro fator para compreender por que Novo Progresso prefere Bolsonaro. Localizada numa posição estratégica do mapa, ela está incluída no traçado de um grande projeto de transportes, a Ferrogrão [27].

A ferrovia de 933 quilômetros, que ainda não saiu do papel, é vendida como uma solução para o escoamento da produção do agronegócio, ligando a cidade de Sinop, no Mato Grosso, ao epicentro da produção de soja e milho, em Itaituba, no Pará, às margens do Rio Tapajós.

Delírio bolsonarista

Placa ao longo da BR-63 pede a intervenção do presidente Jair Bolsonaro para não deixar construir um posto da Polícia Rodoviária Federal | Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real

No “inferno” de Novo Progresso, é possível ouvir a voz de Bolsonaro nas esquinas, oficinas e feiras, em vídeos recebidos pelo WhatsApp e descarregados em sinais de Wi-Fi de estabelecimentos privados – o serviço de telefonia na região é precário. A senha do Wi-Fi? Em mais de um caso, “Bolsonaro 2022”.

Por causa das queimadas, postes e cabeamentos de fibra óptica, que transmitem o sinal de internet aos quase 26 mil habitantes, foram atingidos. Novo Progresso vivia o drama de um isolamento comunicacional forçado, enquanto a reportagem esteve por lá.

A imagem do presidente foi fundida à logomarca dos comércios locais, autopeças, postos de combustíveis, bares e restaurantes. Seu rosto também está nos veículos 4×4 e SUVs que circulam em alta velocidade, levantando poeira e deixando o ar ainda mais irrespirável.

Mesmo com dezenas de cientistas, satélites e consequências visíveis atestando que Novo Progresso é um símbolo da devastação da Amazônia, impera na cidade a ideia de que os dados não passam de “narrativas”. Foi esse o termo utilizado por Agamenon Meneses, presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Novo Progresso, e investigado [28] pela Polícia Federal como um dos responsáveis por organizar o “dia do fogo” em 2019, ao falar com a reportagem.

Isso aí é uma farsa muito grande, muita conversa fiada, muita invenção, muita narrativa, entendeu? […] Todo ano tem uma estatística de desmatamento e se você considerar essa quantidade, já tinha acabado a mata amazônica; já tinha acabado tudo.

[…]

Desmatamento há, uns pequenos pedaços de área que a pessoa quer implementar pasto, dentro do limite constitucional de 20%. Aí, quando queima essa área, cria uma fumaceira danada, porque é abafado, não corre vento.

Um antigo morador de Novo Progresso disse à reportagem que existe uma “fé em Bolsonaro”, que faz com que os agropecuaristas locais liderados por Agamenon acreditem que o presidente irá mudar as leis ambientais brasileiras e que multas aplicadas pelos órgãos de fiscalização serão anistiadas por ele.

Apoio total

Gado no meio de uma área queimada ao longo da vicinal Paraná, via de acesso à TI Baú, do povo Kayapó
(Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)

Segundo o secretário municipal de Meio Ambiente de Novo Progresso, João Maria dos Santos, não há desmatamento e queimadas fora do normal neste ano. Ele defende mudanças na legislação ambiental do País e a redução das áreas de reservas ambientais e indígenas no município.

A Amazônia Real também questionou o governo do Pará sobre as queimadas em Novo Progresso e as políticas ambientais, uma vez que o governador Helder Barbalho é o representante dos governadores da Amazônia Legal [29] em assuntos climáticos, mas não obteve resposta. Barbalho foi reeleito e apoia Lula [30].

A reportagem também tentou contato com o Ibama, mas não teve resposta até a publicação.

Impunidade

Focos de incêndio ao longo da vicinal Paraná, via de acesso à TI Baú, do povo Kayapó, em Novo Progresso (PA) (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)

Durante o governo Bolsonaro, Novo Progresso alcançou níveis históricos de destruição. Entre 2019 e 2021, o município registrou cerca de 972 quilômetros quadrados de desmatamento, o equivalente a 97,2 mil campos de futebol, segundo dados do Inpe.

A pesquisadora Ane Alencar, do  Ipam (Instituto de Pesquisas da Amazônia), explica que desmatamento e queimadas são práticas indissociáveis e subsequentes: uma antecede a outra. Ou seja, o desmatamento resulta nas queimadas e, consequentemente, nos incêndios florestais que ganham proporções maiores entre agosto e setembro todos os anos na região.

“Novo Progresso é um dos epicentros de desmatamento e queimadas na região, um território onde aparentemente o crime compensa”, analisa Ane Alencar, referindo-se ao descumprimento do Código Florestal Brasileiro [31].

O cenário, porém, não está limitado ao município que, em setembro, ocupava a 5ª posição em focos de queimadas entre 10 municípios da Amazônia Legal.

A Amazônia registrou suas piores médias de queimadas em 2022, desde que o Inpe iniciou o monitoramento dos focos de calor na Amazônia, em 2012.