Em julho de 2020, o Meta (então Facebook) anunciou a derrubada de uma rede de perfis, páginas e grupos ligados ao presidente brasileiro Jair Bolsonaro e ao partido sob o qual foi eleito em 2018, o Partido Social Liberal (PSL), de direita.
De acordo com a gigante da internet, essa rede composta por 33 contas do Facebook, 14 páginas, um grupo e 37 contas do Instagram incluíam contas duplicadas e falsas usadas para “evitar a aplicação de políticas, criar pessoas fictícias fingindo ser repórteres, publicar conteúdo e gerenciar páginas que se passavam como veículos de notícias”.
O conteúdo publicado por essa rede girava em torno de “notícias e eventos locais, incluindo política e eleições, memes políticos, críticas à oposição política, organizações de mídia e jornalistas”, e notícias sobre a pandemia do coronavírus. Alguns dos conteúdos publicados já haviam sido removidos devido à violação das normas comunitárias do Facebook, especialmente no que se refere a discurso de ódio.
Esta não era uma rede qualquer. A investigação da Meta identificou ligações com figuras partidárias e com funcionários dos gabinetes do presidente Jair Bolsonaro e seus filhos, o deputado federal Eduardo Bolsonaro e o senador Flávio Bolsonaro. Em outras palavras, essa rede complexa e infratora identificada pela Meta estava sendo operada a partir dos escritórios de funcionários eleitos, incluindo o político de mais alto escalão do país: o presidente.
Quase toda a família está envolvida: Carlos Bolsonaro, vereador do Rio de Janeiro, é visto como o cérebro por trás da estratégia de redes sociais de Bolsonaro, acredita-se que ele seja o comandante-chefe de uma complexa operação de ataques e campanhas de difamação.
Ainda que a Meta tenha removido a rede, o estrago já estava feito. A confirmação de que os servidores públicos produziram estes ataques contra os críticos e as instituições democráticas — o que o DFRLab do Conselho Atlântico, que investigou a rede a pedido do Facebook, considerou um potencial uso indevido de fundos públicos — aponta para um cenário de ataques políticos institucionalizados.
Por um lado, as investigações da polícia e do Supremo Tribunal sugerem a existência de uma rede elaborada que produz ataques nas redes sociais contra rivais políticos e instituições democráticas que exercem o seu papel na contenção de abusos autoritários. Por outro lado, essa infraestrutura já não é necessária, visto que seus apoiadores sentem-se encorajados e autorizados a promover ataques sem que haja qualquer estrutura de comando.
Um novo relatório publicado pela Agência Pública na véspera das eleições revelou que esta eleição teve pelo menos 75 episódios de violência eleitoral, incluindo duas vítimas e oito incidentes com armas de fogo.
O “Gabinete do ódio”
A rede derrubada pela Meta em julho de 2020 faz parte do que hoje é popularmente conhecido como Gabinete do ódio. Já em outubro de 2019, apenas 10 meses após a posse de Bolsonaro, um comitê de investigação do Congresso começou a investigar assessores presidenciais acusados de contribuir para a propagação de notícias falsas e ataques contra rivais políticos de dentro do palácio presidencial.
Desde então, muito se soube sobre o funcionamento deste grupo. Uma investigação da Suprema Corte sobre manifestações antidemocráticas realizadas para o fechamento da Suprema Corte, do Congresso e do retorno da ditadura militar, aberta em abril de 2020, mostrou correlação entre alvos investigados e funcionários públicos suspeitos de fazerem parte do Gabinete do Ódio.
Foi no âmbito dessa investigação que ex-aliados de Bolsonaro que se tornaram seus inimigos revelaram mais detalhes sobre o funcionamento deste gabinete. A rede é coordenada por três aliados presidenciais, que ordenam outros assessores (a nível federal e estadual) que divulguem postagens ofensivas em páginas e grupos por eles administrados.
Isso permitia que postagens ofensivas ou hashtags contra o Supremo Tribunal Federal e seus membros se espalhassem maciçamente em questão de minutos, explicou a deputada federal Joice Hasselman, que foi uma das aliadas mais próximas de Bolsonaro durante sua campanha. Ela acrescentou que o grupo constrói narrativas em torno dos ataques.
Em fevereiro de 2022, a Polícia Federal entregou um relatório parcial ao Supremo Tribunal, no qual se detalhou ainda mais a estrutura dessas “milícias digitais” encarregadas de coordenar ataques contra políticos rivais, instituições democráticas e a disseminação de “notícias falsas”.
O relatório fazia parte de uma investigação da Suprema Corte (apelidada de “inquérito das milícias digitais”) instaurada em 2021, depois que a Procuradoria-Geral da República solicitou que outra investigação (a que investiga manifestações antidemocráticas) fosse arquivada.
No documento, a Polícia Federal informou ao Supremo Tribunal que esta milícia digital opera através da existência de um gabinete de ódio: “um grupo que produz conteúdos e/ou promove postagens em redes sociais atacando pessoas (alvos) previamente eleitas pelos integrantes da organização, difundindo-as por múltiplos canais de comunicação nas redes sociais”.
Para Denisse Ribeiro, Comissária da Polícia Federal, responsável pela investigação, existe uma linha clara separando as ações do grupo e a liberdade de expressão, visto que o grupo se envolve em atos criminosos com o objetivo de “manipular a audiência distorcendo dados, levando o público a erro e induzindo-o a aceitar como verdade aquilo que não possui lastro na realidade”.
Ataques generalizados
O impacto dessa “legitimação dos ataques políticos” pode ser visto em todo o país e tornou-se ainda mais visível durante o período da campanha eleitoral de 2022.
A noção de que tais ataques provêm de alguns dos mais altos funcionários do país pode ter criado uma espécie de passe livre ou isenção para civis atacarem e assediarem violentamente políticos dos quais não gostam, bem como jornalistas e outros civis com os quais discordam.
Estes ataques são assimétricos, afetando as mulheres da política numa escala incomparável. Um relatório produzido pela MonitorA, um projeto de monitoramento de violência de gênero on-line desenvolvido pelos grupos AzMina, InternetLab e Núcleo Jornalismo, identificou que duas mulheres que atualmente são candidatas à presidência receberam mais de 6,6 mil tuítes ofensivos em apenas dois dias após participação em debate presidencial televisionado.
Por duas semanas, a proeminente jornalista política Vera Magalhães tornou-se alvo de repetidos ataques de Bolsonaro e seus aliados, uma demonstração clara de como os ataques do presidente geram uma onda posterior de novos ataques.
Durante o debate presidencial de 28 de agosto, após uma pergunta feita por Magalhães sobre as vacinas e a forma como o governo lidou com a pandemia, o presidente disse que a jornalista “dorme pensando [nele]” e “é uma vergonha para o jornalismo”. No dia 7 de setembro, durante manifestações pró-Bolsonaro que ocorreram em todo o país no dia do Bicentenário da Independência, o rosto de Magalhães foi estampado em um banner em uma das manifestações com a mesma frase proferida por Bolsonaro. No dia 13 de setembro, durante o debate para o governo do Estado de São Paulo, o deputado estadual Douglas Garcia, aliado de Bolsonaro, repetiu mais uma vez a frase enquanto a filmava. Ela teve que deixar o evento sob escolta policial.
As perspectivas são terríveis ao passo que ataques que antes eram restritos a espaços on-line começam a se traduzir em violência na vida real. Uma pesquisa realizada pelo Observatório da Violência Política e Eleitoral, vinculado à Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), revelou que casos de violência política, tais como o assassinato de um militante do PT por bolsonarista, cresceu 335% desde 2019, quando Bolsonaro assumiu o poder.
Resta saber se o novo governo, o qual as pesquisas de opinião sugerem que será liderado pelo ex-presidente Lula, de esquerda, será capaz de desarmar o clima de violência política generalizada e os ataques contra vozes dissidentes e a imprensa.
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