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A história dos impopulares projetos hidrelétricos turcos no sudeste da Anatólia

Categorias: América do Norte, Turquia, Desenvolvimento, Economia e Negócios, Meio Ambiente, Mídia Cidadã, Green Voices

Mapa dos projetos hidrelétricos GAP criado pela Iniciativa para Manter Hasankeyf Viva [1]. Creative Commons.

O artigo a seguir faz parte de uma série sobre o projeto da barragem de Ilisu, na Turquia, e a inundação de Hasankeyf.

Em 1931, Musafa Kemal Atatürk, o fundador da república turca, visitou Diyarbakır, a maior cidade de maioria curda do sudeste da Anatólia. Percebendo a diferença na qualidade de vida da região em comparação com o oeste da Turquia, ele anunciou seu objetivo [2] de “ver fábricas, agricultura irrigada, estradas, vilas com eletricidade, casas com habitantes saudáveis e florestas verdejantes” o mais breve possível, porque “a civilização e a vida de Istambul também devem ser trazidas para cá”.

Imagem da Wikipedia Commons [3] da região do sudeste da Anatólia, coberta pelo GAP. CC BY-SA 4.0 [4]

Quarenta anos depois, essa visão foi realizada com o Güneydoğu Anadolu Projesi [5] (Projeto de Desenvolvimento do Sudeste da Anatólia ou GAP, na sigla em turco). Baseado na estrutura administrativa da Autoridade do Vale do Tennessee (AVT) [6] nos Estados Unidos, o GAP tem como objetivo aproveitar o potencial dos rios da região para capturar energia, irrigar campos e estimular os investimentos. Até 2017, 74% dos projetos de energia e 26% dos projetos [7] de irrigação na competência do GAP foram completados. Mas os benefícios econômicos, assim como os impactos culturais e ecológicos do projeto na região, ainda são pouco claros. 

O Projeto de Desenvolvimento do sudeste da Anatólia 

O Projeto de Desenvolvimento do Sudeste da Anatólia (GAP) foi esboçado pela primeira vez pelo ministro da Indústria e Tecnologia da Turquia nos anos de 1970 [6]. Ele incluía a construção de 22 represas e 19 plantas de energia hidrelétrica que produziriam anualmente 27 bilhões kWh de energia e irrigariam 1,7 milhões de hectares de terras. Nos anos de 1980 e 1990, o escopo do projeto foi expandido de modo a cobrir educação, transporte, indústria e a redução da desigualdade.

Os Estados Unidos tiveram impacto na concepção e na implementação do GAP desde o início. As intenções utópicas [2] do projeto de “colocar outra grande civilização em cima de todas as civilizações anteriores na Anatólia”, foram mobilizadas principalmente pelos métodos de Planejamento da Bacia dos Rios [8]. Isso significava desenvolver todo o ecossistema do rio, baseado em uma análise de cálculo de custo-benefício. O objetivo era solucionar demandas de competição por recursos hídricos pela administração central e foi importado e desenvolvido pela primeira vez pela Autoridade do Vale do Tennessee (AVT). Em uma entrevista de 2014, um membro do parlamento de Istambul observou [2] que o modelo da AVT era “o maior exemplo nessa escala de todos os tempos” que “havia transformado uma grande área geográfica de deserto em paraíso, não apenas fisicamente, mas com instituições educacionais, estabelecimentos culturais e novas cidades”.

Ao longo dos anos de 1950, o Departamento de Recuperação dos Estados Unidos, agência responsável pela maioria dos projetos de infraestrutura pública, treinou engenheiros turcos [9] nos métodos norte-americanos de desenvolvimento de infraestrutura. Süleyman Demirel, um dos pais fundadores do GAP [10] e presidente da Turquia de 1993 a 2000, atribuiu grande parte de sua motivação pelo projeto de desenvolvimento ao programa de dois anos com o Departamento Americano de Recuperação nos anos de 1940. Em suas memórias, Demirel escreveu [2], “Eu fui o primeiro engenheiro turco enviado aos estados ocidentais nos EUA pelo governo para aprimorar meu conhecimento e minhas habilidades em 1949. Lá, eu vi muita coisa e tive a oportunidade de aplicar em meu país. Quando eu vi a represa de Hoover, no rio Colorado em Nevada… me sentei em uma pedra e fiquei observando por três dias”.

Mas os próprios projetos de hidrologia norte-americanos não estavam a salvo de críticas. A represa de Hoover, que Demirel observou em 1949, está passando pela pior seca em 12 séculos, ameaçando [11] deixar mais de 40 milhões de pessoas sem água potável ou eletricidade. Projetos de infraestrutura ao longo do rio Colorado, que é o curso de água mais regulado no mundo, tem sido grandemente responsável [12] pela “mais trágica das perdas ambientais” no mundo.

O GAP cobre [13] 9 províncias: Adıyaman, Batman, Diyarbakır, Gaziantep, Kilis, Mardin, Siirt, Şanlıurfa e Şırnak, localizado [13] na bacia do Eufrates-Tigre e nas planícies superiores da Mesopotâmia, e compõe cerca de 20% das terras irrigáveis e 33%e todo potencial energético do país.

Naquela época, as justificativas para o projeto de desenvolvimento estavam focadas, principalmente, em reavivar o legado histórico, na oportunidade econômica e integração social. Nos anos iniciais, os arquitetos do projeto frequentemente louvavam a história da região [2] como “casa da invenção da cidade, da escrita, da roda, da domesticação de animais, da agricultura da irrigação e desenvolvimentos revolucionários similares na história”. Em 1989, Ali İhsan Bağış escreveu em um artigo intitulado “Projeto do Sudeste da Anatólia: O berço da civilização regenerado”, que o desenvolvimento da região trará um “renascimento da prosperidade que a Mesopotâmia viveu milhares de anos atrás, acompanhado de tecnologia moderna”.

Em 1993, o então primeiro-ministro Süleyman Demirel disse que a infraestrutura do GAP era necessária [2] para “ativar os recursos do país e canalizá-los para o bem-estar da população. Nada vem da inação. Recursos sempre existiram. O importante é combiná-los com o conhecimento, ciência e tecnologia, como produtos do intelecto humano”.

O custo do projeto GAP [14] e gastos por setores ao final do ano de 2001 (milhões de dólares em 2002). Creative Commons.

A causa da “inação” foi veementemente atribuída aos habitantes da região. Seus estilos de vida foram descritos como atrasados e ignorantes. O plano de ação social do GAP, publicado em 1999, observou que [2] a “estrutura social e cultural tradicional”, que incluía uma “estrutura semifeudal na agricultura, modos tradicionais de criação de animais e semi ou mesmo total nomadismo”, dominavam a região. A dependência dos povos locais de um intrincado sistema de instituições antigas como tribos, xeques e proprietários de terra em relação à produção e à organização social foram descritas como barreiras ao desenvolvimento social [2]. Além dessas nuances locais, os autores do relatório também admitiram que havia uma falta de engajamento abrangente ou de consulta com a população local. Em vez de engajamento com a comunidade, os planejadores do GAP em Istambul enfatizaram a necessidade de métodos de desenvolvimento econômico tecnocráticos e “top-down” [2] para tirar a região do “atraso”.

Em 2011, o ministro do Desenvolvimento da Turquia,  Cevdet Yılmaz, afirmou a visão utópica [2], “marchamos em direção a um GAP em que usamos nosso potencial ao nível máximo, em que construímos cidades mais ricas e melhores, em que temos um ambiente mais diverso e colorido com universidades, sociedade civil, mídia e atividades culturais e artísticas, em que nosso povo, especialmente os jovens e as mulheres, participam muito mais da vida social e econômica”.

Mas tal abordagem era cara, e a oposição ao projeto GAP foi iminente. Em 2014, um parlamentar curdo de Mus [2] alegou que o governo turco “buscava tornar a região inabitável por meio da política de construir grandes represas e PEHs (Plantas Energéticas Hidrelétricas) e da morte da diversidade de plantas e animais [na região do GAP]”. Outro parlamentar de Sanhurfa declarou [2], “o estado destruiu tudo, a história de Hasankeyf, só para gerar alguns kilowatts de eletricidade a mais, mas as perdas superaram os ganhos da geração de energia”.

Os planejadores do projeto rejeitaram tais críticas. Um engenheiro das Obras Hidrelétricas Estatais lamentou que os ativistas estivessem [2] “contra tudo” e disse que sacrifícios deveriam ser feitos. Outro engenheiro do GAP, em resposta às críticas internacionais ao projeto, observou, [2] em 2014, que “sempre que a Turquia buscava políticas que serviam aos interesses do Ocidente, o Ocidente generosamente dava crédito. Mas quando a Turquia não faz isso, o Ocidente começa a reclamar que as represas destroem a cultura, o meio ambiente”.

Outros como um ex-coordenador do GAP admitiram [2] os inevitáveis danos ao desenvolvimento, aceitando que a construção de infraestrutura foi “dolorosa” e “poderia ter impactos desproporcionais em cada grupo [da sociedade]”. Enquanto o coordenador reconheceu a perda de propriedades, terras e cemitérios durante as inundações, tais perdas eram inevitáveis frente ao projeto de desenvolvimento. E essas perdas não se restringiam apenas a Turquia, continuou o servidor público: “todo projeto de desenvolvimento tem impactos similares… já que a meta é aumentar a qualidade de vida [do povo], é bem normal perder uma geração em projetos de desenvolvimento similares”.