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Bolsonaro celebra independência do Brasil com coração de imperador falecido e com forças armadas

Categorias: América Latina, Brasil, Eleições, História, Mídia Cidadã, Política, Brazil election 2022

Presidente Jair Bolsonaro em um evento bicentenário pela Independência do Brasil, em Brasília, a capital do país desde 1960| Imagem: Alan Santos/Presidency of the Republic/CC 2.0 [1]

O conto da independência do Brasil [2] vai — mais ou menos [3] — assim: Dom Pedro I [4], um português da realeza que desafiou sua família e decidiu ficar [5] na América do Sul, em vez de voltar para a Europa, proclamou “Independência ou morte”, marcando o processo que fez o país se tornar um império autônomo. Só 67 anos depois que o Brasil seria uma república [6].

Neste 7 de setembro, durante as comemorações bicentenárias pela independência do Brasil, o discurso do presidente Jair Bolsonaro, do Partido Liberal (PL), tratou mais de si e de seu governo do que da história do país. Ele mencionou comparações entre as primeiras-damas e sua esposa Michelle [7], recomendou a uma grande multidão de apoiadores que homens solteiros deveriam cuidar de princesas e liderou um canto de “imbroxável”, uma palavra que o New York Times traduziu como “jamais frouxo”, [8] enquanto o The Guardian optou por “imperturbável [9]“.

No meio de uma campanha presidencial [10], com Bolsonaro concorrendo à reeleição, o sentimento geral parece ser de que as comemorações oficiais com a presença das Forças Armadas foram sequestradas [11]. As multidões eram compostas principalmente por partidários de Bolsonaro, enquanto nos palcos oficiais faltavam representantes de outros poderes.

O chefe do Senado brasileiro, o senador Rodrigo Pacheco [12], explicou sua ausência dizendo que não estava claro para ele onde as comemorações oficiais terminavam e onde começava a campanha de Bolsonaro. O presidente não compareceu [13] à sessão do Congresso Nacional em homenagem ao bicentenário, um dia depois de participar de eventos em Brasília e no Rio de Janeiro.

A menos de duas semanas das eleições gerais, Bolsonaro ainda está atrás [15] do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas sondagens, por quase 16%.

O governo de Bolsonaro também vem batalhando na frente econômica. Apesar do recente crescimento do PIB [16], o número de pessoas com fome [17] aumentou durante seu mandato, com aumento também da inflação [18] – ele tem baixado os preços do gás [19] e prometido manter a ajuda financeira [20] como uma tentativa de reverter as pesquisas.

Alguns partidos da oposição denunciaram a confusão entre a campanha de Bolsonaro e o evento oficial à Justiça Eleitoral [21], e os ministros proibiram o presidente de usar as imagens do evento em sua campanha. Eles entenderam [22] que Bolsonaro deveria estar lá como chefe de Estado, não como candidato, e que isso feriu os princípios de isonomia. Entre as multidões, os apoiadores de Bolsonaro, que concorrem ao Congresso e ao governo do estado, foram vistos fazendo campanha em várias cidades.

Presidente Jair Bolsonaro em um evento para o bicentenário da independência do Brasil, com sua esposa, Michelle Bolsonaro | Imagem: Estevam Costa/PR/CC 2.0

Medo do golpe

Com os recentes discursos de Bolsonaro atacando o STF, as urnas eletrônicas e a transparência nas eleições — ele até convidou embaixadores estrangeiros [23] para apresentar caso (sem provas [24]) em que as eleições poderiam ser fraudadas — as pessoas temiam que um golpe pudesse ser tentado no 7 de setembro. No ano passado, os bolsonaristas tentaram invadir [25] o prédio do STF, o que levou a um reforço nas medidas de segurança este ano.

O resultado foi uma demonstração da força do presidente, com milhares nas ruas, inflamando sua base. Não houve golpe, mas Bolsonaro conseguiu acrescentar mais um capítulo à sua narrativa que consiste também em descreditar os números das pesquisas [26].

Como afirmou a revista The Economist [27] em um número de capa deste mês intitulado “O homem que seria Trump”, muitas ações sugerem que “[Bolsonaro] parece estar lançando as bases retóricas para reclamar fraude eleitoral e negar o veredito dos eleitores”.

A parceira da Global Voices, Agência Pública, afirma que, em Brasília [28], tratores utilizados nas manifestações foram trazidos e pagos por empresários do setor agrícola. No Rio [29], os ônibus que levaram pessoas ao evento foram patrocinados por cristãos conservadores que têm feito campanha para Bolsonaro dentro das igrejas.

Com repórteres nas ruas, a Agência Pública também registrou [30] 52 pôsteres e cartazes diferentes usados por manifestantes, 23 deles tinham mensagens que eram pró-golpe ou atacavam a segurança e a transparência do processo eleitoral. Uma das mensagens, relata a Agência Pública, dizia: “Queremos o presidente Bolsonaro no poder. Intervenção militar no Judiciário, Legislativo e uma nova Constituição criminalizando o comunismo. Já!!!”

Seus repórteres [31] encontraram Jason Miller, ex porta-voz de Donald Trump, que estava promovendo sua plataforma de rede social Gettr [32] durante o evento em Copacabana, no Rio. Ele negou ser apoiador de Bolsonaro, e afirmou que o Brasil é seu segundo mercado. “O Gettr não é político, é sobre liberdade de expressão, embora muitos políticos o usem”, afirmou.

Arrival of the relic with D. Pedro 1st's heart at Brasilia | Photo: Estevam Costa/Presidency of the Republic of Brazil/CC 2.0

Sequestrando o dia da Independência

Em preparação para a data, o governo de Bolsonaro trouxe o coração de Dom Pedro [33], que foi preservado em um frasco e mantido em uma igreja na cidade do Porto [34], Portugal, conforme os desejos do imperador/rei [35] falecido. Isso lembrou algo feito durante a ditadura militar [36] — um regime frequentemente defendido [37]por Bolsonaro — para celebrar o 150º aniversário da independência em 1972, quando os ossos de Dom Pedro [38] foram trazidos ao Brasil para serem enterrados aqui.

A antropóloga Lilia Schwarcz, que publicou um livro sobre o “sequestro” das imagens do Dia da Independência, disse à Deutsche Welle [39] que a celebração parecia nostálgica de um passado nem sempre narrado com precisão e esvaziado de conteúdo relacionado aos próprios cidadãos. Ela diz:

A coincidência dos 200 anos da Independência com o período das eleições é terrível para a República, sobretudo sob o jugo, sob o mando de um governo retrógrado e pretensamente populista e nacionalista. (…) São duas datas capitais numa República: a celebração de sua formação enquanto nação soberana e o momento quando o povo pratica sua soberania diante da República.

A repórter Lola Ferreira, do noticiário UOL, capturou uma imagem que mostrava como o dia não era apenas uma celebração do governo de Bolsonaro, mas também incluía muitos que se opunham a ele.

Enquanto as pessoas de moto se dirigiam para o local onde Bolsonaro apareceria no Rio, jovens negros em um ônibus público gritavam com eles. Ferreira relatou mais tarde que o grupo foi parado e revistado [43] pela polícia apenas dez minutos depois que ela tirou a foto. Uma pesquisa recente [44] mostra que Lula tem uma liderança sobre Bolsonaro entre os eleitores negros.

Ao contrário da narrativa bolsonarista de que a data histórica havia sido esquecida até que ele assumiu o cargo, a data é lembrada desde 1995 em um protesto agora tradicional chamado “O Grito dos Excluídos [45]”, que também realizou atos em todo o país, organizados por movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra [46].

Em contraste com o discurso eleitoral do presidente, no 200º aniversário da independência do Brasil, as pessoas que vivem nas ruas de São Paulo, a cidade mais populosa da América Latina, o mesmo lugar onde a independência foi declarada [53] dois séculos antes, refletiram sobre o significado da dita independência:

Belisa de Souza, mulher de 32 anos em São Paulo, disse [54] à BBC:

Primeiro, porque o nosso governo hoje em dia não deixa a gente independente. A gente não tem como lutar por nós mesmos. As pessoas aqui precisam de barracas para dormir, entende? Eu não tenho barraca. Eu durmo no chão. Então, como eu sou independente?