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Mudança climática ameaça agricultura e culturas indígenas na Amazônia brasileira

Categorias: América Latina, Brasil, Desastre, Etnia e Raça, Indígenas, Meio Ambiente, Mídia Cidadã, Green Voices

Indígenas vendem produtos de suas culturas em mercado local | Foto: Paulo Desana/Agência Pública

Esse artigo, escrito por Ana Amélia Hamdan, Paulo Desana e Daniela Villegas, foi publicado originalmente pela Agência Pública [1] no dia 29 de julho de 2022 e é republicado aqui sob um acordo de parceria com a Global Voices, traduzido por Liam Anderson.

É domingo de manhã e membros do povo indígena tuyuka, que vivem em São Gabriel da Cachoeira [2], no noroeste do estado brasileiro do Amazonas, estão prontos para receber os visitantes no mercado semanal. Porém, tudo é preparado muito antes, com as culturas plantadas em uma área cultivada na floresta próxima à cidade, onde cultivam mandioca, banana, abacaxi, açaí, cará, entre outros.

Enquanto os visitantes chegam, algumas mulheres da etnia tuyuka, que dá nome ao mercado, trabalham a massa da mandioca, que será colocada no forno para ser transformada em beiju [3].

Também são servidos pratos tradicionais como a quinhapira — caldo de peixe com pimenta e tucupi (suco extraído da raiz da mandioca) — e, às vezes, até mesmo formigas, que são comuns na cozinha regional. Sem esquecer do caxiri, a bebida fermentada que anima as danças tradicionais. Toda essa variedade vem do Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro, que une o conhecimento da agricultura nas roças, jardins e florestas e tem como base o equilíbrio dos ciclos da natureza e a manutenção de uma cultura que envolve trocas, rituais e bênçãos.

Esse sistema está sob constante pressão da mineração ilegal, dos sistemas econômicos insustentáveis, da proposta de lei PL 191 [4], que permitiria a mineração e outras atividades extrativistas em terras indígenas, e da crise climática.

“No ano passado, perdemos duas áreas cultivadas justamente porque o verão não chegou na época que esperávamos. Apenas plantamos poucas bananas, mas não conseguimos plantar mandioca”, disse a agricultora tuyuka Florinda Lima Orjuela, uma das pessoas envolvidas no mercado, ao descrever partes das etapas desse sistema. “Quando se vê uma mudança nesse ciclo, todo o processo de plantio, de queima, é interrompido”.

Relatos como o de Florinda são cada vez mais frequentes no município, onde 23 povos indígenas vivem [5] em cerca de 750 comunidades e assentamentos. Localizado no Rio Negro, São Gabriel e seus moradores têm sofrido particularmente com as inundações sem precedentes que vêm atingindo o estado do Amazonas nos últimos anos.

Além das inundações, os principais efeitos relatados pelos povos indígenas são a imprevisibilidade das estações, o aumento das temperaturas e as alterações nos ciclos ambientais, que afetam diretamente a produção de alimentos da população local. Muitos deles começaram a mudar os lugares onde cultivam e a administrar mais de um lote, além de alterar suas horas de trabalho devido ao sol mais forte. A questão é por quanto tempo essa adaptação será suficiente.

O que os povos indígenas têm observado na vida cotidiana está de acordo com o último relatório [6] do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas [7] (IPCC) da ONU, que pela primeira vez, deu o alerta sobre as perdas irreversíveis para os modos de vida dos povos indígenas da Amazônia.

A pesquisadora e bióloga Patrícia Pinho, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), é uma das autoras do relatório e explicou que a população indígena é mais vulnerável a mudanças climáticas.

“Na Amazônia, a biodiversidade está intrinsecamente ligada ao território, à cultura, ao modo de vida. Quando há erosão ou choques no território, perde-se o conhecimento tradicional. Não sabemos mais quando o ciclo ocorrerá, quais espécies devem ser plantadas, quando se dará a floração”.

Mulher indígena trabalha a massa da mandioca | Foto: Paulo Desana/Agência Pública

Mães da roça

O Sistema Agrícola Nacional [8] do Rio Negro foi reconhecido como parte do patrimônio cultural brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Natural (Iphan) em 2010. Nesse tipo de agricultura, uma área de floresta anteriormente usada para cultivo é cortada, deixada para secar e depois queimada. Nas clareiras, as culturas são plantadas por cerca de três anos, e após esse período as áreas são gradualmente abandonadas.

Os homens cortam uma área florestal e, junto com as mulheres, realizam a queimada. As mulheres então se encarregam do espaço. Elas escolhem o que plantar — mandioca, banana, açaí, bacaba, cupuaçu, pimenta — e o que vai alimentar a família. Os povos indígenas as veem como “mães da roça”.

Carina Viriato da Silva, uma agricultora do povo baniwa e moradora da comunidade Yamado, localizada em frente a principal orla marítima de São Gabriel, descreveu dois exemplos dos efeitos das mudanças climáticas em seu cotidiano. Ela conta que, depois da colheita da mandioca, as mulheres costumam mergulhar a raiz na água para amolecê-la. Porém, com o tempo, isso deixou de ser possível. Cada vez mais água entrava nos igarapés (pequenos cursos d'água na floresta) e a mandioca começou a ser levada pela força da água.

A pimenta, que é um alimento essencial na cultura baniwa, pois está no centro de um complexo sistema de trocas de mudas que envolve relações familiares e matrimoniais, também foi afetada. “Quando uma mulher se casa e vai à casa de seu marido, a planta de pimenta deve ir junto com ela. Esse é o nosso costume, por isso, não pode faltar pimenta. Se não tivermos pimenta, ninguém sequer come”, disse Carine.

Esse problema se deve principalmente ao aumento das temperaturas, o que interfere no crescimento da planta. Isso foi explicado pela agricultora Diva de Souza, que fala a língua indígena baniwa e preferiu que Carine falasse por ela.

“Ela viu sua avó mudando a planta de pimenta já grande de lugar. Quando se move uma grande planta de pimenta, ela tem raízes para que possa obter nutrientes de baixo. Mas agora, quando você transfere a planta de pimenta para outro lugar, ela não aguenta as temperaturas e começa a secar”.

Mudanças na pesca 

Enquanto as mulheres cuidam da roça, os homens são responsáveis pela pesca, e os peixes também não escaparam das mudanças. O agricultor e vigia Alcir Ricardo, marido de Carine, diz que as mudanças nos padrões de chuva não estão permitindo que os peixes engordem.

“Na nossa cultura, quando começa a chover, inicia-se a piracema [9] (período de reprodução de alguns peixes). Então, em junho, os peixes estão gordos”. O problema, explicou ele, é que com os padrões de chuvas alterados, os musgos que antes apareciam só em junho apareceram em maio, mais cedo do que o esperado. Os peixes começam a alimentar-se dessas plantas e não engordam. “Portanto, o peixe ainda não está gordo, e se chove antes do tempo, ele ficará magro”, resumiu.

Alcir Ricardo, indígena do povo baniwa, mostra o lixo que chega à comunidade Yamado pelo rio Negro | Foto: Paulo Desana/Agência Pública

Rosivaldo Miranda, da etnia piratapuya, vive na comunidade Açaí-Paraná na Terra Indígena Alto Rio Negro, localizada no baixo rio Uaupés, que também fica na bacia do Rio Negro. Ele percebeu outra mudança importante: que até mesmo os vermes encontrados dentro das bromélias estão diminuindo.

Normalmente eles vivem nas margens dos rios, e quando o nível da água do rio está prestes a subir, eles se refugiam nas flores das bromélias que estão no alto das árvores. A instabilidade dos padrões de chuva e inundações parece estar interferindo nesse processo, algo que somente quem vive na floresta percebe.

Eventos extremos são cada vez mais frequentes

As observações dos povos indígenas sobre as mudanças nos ciclos ambientais também coincidem com os registros mais regulares de eventos extremos na Amazônia. A medição do nível das águas do rio Negro em Manaus começou em 1902. A maior enchente havia sido registrada em 1953, até ser superada em 2009.

Esperava-se que grandes enchentes como essas ocorressem uma vez a cada 50 anos. No entanto, o recorde foi batido em 2012 e novamente em 2021, segundo dados do Serviço Geológico do Brasil (CPRM). Em 2022, o nível da água atingiu 29,76 metros, o quarto maior desde o início das medições.

Luna Gripp, pesquisadora da CPRM, disse que eventos extremos estão se tornando mais frequentes e maiores, como mostra a situação no estado do Amazonas. Ela pede soluções regionais, incluindo a consulta aos povos indígenas e comunidades ribeirinhas no desenvolvimento de políticas públicas, a fim de reduzir os impactos negativos e elaborar propostas de adaptação.

“Os povos indígenas sabem o que fazer quando o rio sobe muito”, afirma. “Devemos apoiar suas decisões”.