Por vários séculos, as mulheres ucranianas foram obrigadas a permanecer dentro da esfera privada: elas não podiam herdar propriedade, representar-se em tribunais, trabalhar ou assumir posições no governo. Esta é possivelmente uma explicação histórica para não haver formas gramaticalmente femininas para tais posições. No entanto, gradualmente, a diferença entre os direitos dos homens e das mulheres foi diminuindo e, eventualmente, o uso dos “feminitivos” tornou-se relevante e necessário.
Os feminitivos são característicos da língua ucraniana, que possui três gêneros gramaticais: masculino, feminino e neutro. Isto permite a formação de feminitivos adicionando um sufixo a um substantivo já existente que é masculino em termos de gênero gramatical. A língua ucraniana conta com mais de 13 desses sufixos, mas cerca de 4 a 6 são os mais produtivos, incluindo -к, -иц- (-its), -ин- (-in), -ес- (-es), seguido pelo som ‘a’ ou ‘ya’. Por exemplo: «студент» (estudante, pronunciado como stoodent) com um feminitivo torna-se «студентка», pronunciado como stoodentka.
A história dos feminitivos
Os primeiros feminitivos em ucraniano surgem durante a Idade Média, e podem ser encontrados em alguns dos textos da literatura ucraniana mais antiga, como o «Руська правда» (A Verdade Russa) do século 11, ou o épico do século 12 «Слово о полку Ігоревім» (O Conto da Campanha de Ígor). No século 16, os feminitivos aparecem em dicionários, incluindo o primeiro dicionário ucraniano impresso chamado «Лексиса», compilado por Lavrentiy Zizaniy, que data de 1596 e contém sete feminitivos. O número aumentou com o tempo. Entre os séculos 17 e 19, os feminitivos eram usados principalmente na forma oral, embora os principais escritores ucranianos, como Taras Shevchenko e Lesya Ukrainka, os usassem com frequência em suas poesias.
A partir do início do século 20, à medida que as mulheres assumiam novas profissões, os feminitivos se tornavam mais frequentes nos dicionários. No Dicionário da Língua Ucraniana, de Dmytro Yavornytsky, encontram-se as seguintes palavras: домовласниця (senhoria), злочинниця (criminosa) e здільниця (artista em versão feminina). Dicionário de Boris Grinchenko (1907–1909) já conta com 935 feminitivos. Outro dicionário russo-ucraniano de Ahatanhel Krymsky (1924–1933) acrescenta palavras como делегатка (delegada), демократка (democrata em versão feminina), законодавиця (legisladora), e muitos outros.
De acordo com os acadêmicos Ivan Ogienko e Mikhail Ginzburg, os feminitivos foram removidos da língua ucraniana durante o período soviético, a partir da década de 1930, quando as autoridades pretendiam assimilar o ucraniano ao russo. A língua russa é dominada por substantivos masculinos que descrevem profissões, e conta apenas com quatro sufixos que podem produzir feminitivos. Além disso, os feminitivos em russo muitas vezes têm uma conotação negativa.
Feminitivos na Ucrânia de hoje
No início dos anos 2000, as pessoas na Ucrânia começaram a reconsiderar suas atitudes em relação ao desenvolvimento de sua língua, e isso incluiu o uso ativo de feminitivos. Uma explicação para isso é a generalização dos movimentos feministas, que instrumentalizou um retorno ao uso de feminitivos ao descrever profissões. A primeira versão ucraniana dos sete volumes de Harry Potter na tradução de Viktor Morozov iniciada em 2002 incluiu tais feminitivos, como «професорка Макґонеґел» (professora McGonagall), ou дракониха/драконка (dragão-fêmea).
Em 2012, o professor Anatoly Nelyuba publicou um dicionário chamado «Словотворчість незалежної України 1991—2011» (“A criação de palavras na Ucrânia independente, 1991-2011″) que descreve os feminitivos que apareceram na imprensa ucraniana durante esse período.
E, em 2019, a Ucrânia adotou uma nova ortografia que incluía recomendações e regras para a formação de feminitivos, que os tornou oficialmente parte da língua ucraniana normativa. Portanto, se, antes disso, os feminitivos eram usados apenas na linguagem verbal ou poética, e em dicionários, agora podem ser usados em todos os domínios linguísticos, inclusive na comunicação científica e oficial.
Assim, em 2020, com base nas regras da nova ortografia, o Ministério do Desenvolvimento Econômico, Comércio e Agricultura permitiu oficialmente o uso de feminitivos para qualquer cargo em sua categorização de profissões. Em 2021, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, assinou uma lei que alterou o nome do “Dia dos Defensores da Ucrânia” (“День захисника України”) para o “Dia dos Defensores e Defensoras da Ucrânia” (“День захисника і захисниць України”). Este é o único caso em que feminitivos foram introduzidos no nome de qualquer celebração oficial na Ucrânia.
De acordo com uma pesquisa do Instituto de Informação em Massa, 63% dos jornalistas ucranianos usam constantemente feminitivos em seus conteúdos de mídia. Outros 15% observaram que não há um forte pedido por parte de seus editores para usar feminitivos, enquanto 12% disseram que nem todas as profissões permitem a formação de feminitivos. E apenas quatro% mencionaram que não usam nenhum feminitivo em seu conteúdo.
Por que razão alguns ucranianos se opõem aos feminitivos?
A dra. Olena Masalitina lista três razões pelas quais algumas pessoas se recusam categoricamente a usar feminitivos. Primeiro, uma pessoa pode não estar familiarizado com feminitivos, ou pode ser um russófono. A língua russa tem menos feminitivos e sufixos que permitem a criação de formas femininas, assim, quando esta pessoa fala ucraniano, pode achar que a presença de tantos feminitivos soa artificial ou incomum. De acordo com pesquisas sociológicas conduzidas pelo grupo Rating, 51% dos ucranianos falam ucraniano na vida diária, no trabalho e em casa, enquanto 36% falam ucraniano e russo e, 13% apenas russo.
Em segundo lugar, muitas vezes, as próprias mulheres não querem ser abordadas com feminitivos, pois pensam que isso representa uma forma de discriminação, diz o dr. Masalitina: “Se olharmos no dicionário ucraniano, veremos que há metade dos masculinitivos em comparação com feminitivos. Claro, torna-se evidente que a sociedade tem desprezado as mulheres por vários séculos. E permanece assim porque não se passou muito tempo desde que as mulheres ganharam os mesmos direitos que os homens. E tal reação é apenas uma confirmação inegável de que vivemos em um mundo patriarcal. No entanto, se uma mulher se sente desconfortável quando fala especificamente sobre ela com o uso de termos femininos, então não há necessidade de forçar ou ficar indignada. Vale a pena respeitar a posição dela, dando-lhe o direito de decidir por si mesma”.
Por fim, algumas pessoas adoram ser controversas, e a questão dos feminitivos é definitivamente ideal para isso.