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“Essa gente”: comentários da ministra francesa suscitam dúvidas sobre a homofobia no governo

Categorias: Europa Ocidental, França, Ativismo Digital, Direitos Humanos, Direitos LGBT, Governança, Lei, Mídia Cidadã, Política, Protesto

Foto por Guillaume Paumier [1], publicado com licença CC BY 2.0 [2] no Flickr.

O governo do presidente francês Emmanuel Macron (centro-direita, liberal), que foi reeleito em abril de 2022, está enfrentando atualmente reações negativas sobre comentários homofóbicos e posturas expressas por alguns de seus membros.

Em 13 de julho de 2022, seis organizações anti-homofóbicas francesas apresentaram denúncia [3] contra a atual ministra das Autoridades Locais, Caroline Cayeux, apenas alguns dias depois de ser nomeada. As organizações denunciaram os comentários que ela fez como senadora em 2013, quando disse que o casamento entre pessoas do mesmo sexo era um “capricho” e que ia “contra a natureza [4]“.

Quando questionada sobre isso no canal de TV Public Sénat em 12 de julho de 2022, Caroline Cayeux disse [5] que “obviamente mantinha” suas declarações passadas enquanto tentava se justificar:

Je vais vous dire quand même que j’ai beaucoup d’amis parmi tous ces gens-là et franchement, c’est un mauvais procès qu’on me fait, et ça m’a beaucoup contrariée.

Direi que tenho muitos amigos entre toda essa gente e, francamente, estou sendo alvo de um julgamento injusto, e isso me perturbou muito.

A queixa legal apresentada ao Ministério Público de Paris refere-se [6] a um “insulto público a um grupo de pessoas devido à sua orientação sexual por uma pessoa que detém autoridade pública”, que pode levar até [7] uma sentença de prisão de três anos e uma multa de EUR 75.000 (cerca de USD 75.000).

O advogado Étienne Deshoulières, que representa os autores, disse [8] na emissora France Info:

Une personne de l’envergure d’une ministre ne peut plus, en 2022, dix ans après le vote de la loi sur le mariage pour tous, dire que l’homosexualité est un dessein contre nature.

Uma pessoa com a posição de ministra não pode, em 2022, dez anos após a lei que autoriza o casamento entre pessoas do mesmo sexo ter sido votada, dizer que a homossexualidade vai contra a natureza.

Reações on-line da comunidade LGBTQ+

Nas redes sociais, os membros da comunidade LGBTQ+ rapidamente condenaram as palavras da ministra usando a hashtag #CesGensLà (#EssaGente):

O usuário do Twitter @Le_placard_ [9]observou que, apesar de sua reputação progressiva, a homofobia ainda está muito presente na sociedade francesa:

Todos os dias, ‘Essa gente’ é lembrada de que a luta não acabou. Seja por meio de atos ou palavras, seja por um estranho na rua ou por um ministro. A nossa liberdade e igualdade é uma luta diária. #EuSouEssaGente

O Youtuber Chez Papa Papou [14], um defensor do LGBTQ+ que divulga vídeos sobre sua experiência em uma casa homoparental, pediu a demissão de Caroline Cayeux:

#EssaGente não entende porque, em 2022, a homofobia ainda não é um fator desqualificante para se tornar e permanecer como Ministro da República.
#CayeuxDemissão

A ministra Cayeux mais tarde pediu desculpas e expressou arrependimento, mas as reações negativas não pararam. Funcionários do governo tentaram fazer o controle de danos, enfatizando o “direito de cometer um erro [18]” e transmitindo as desculpas da ministra [19]. Mas sua comunicação não conseguiu convencer muitos membros da comunidade LGBTQ+:

Como assim, o debate está encerrado? A sua colega cospe na cara de milhões de pessoas e acha que vamos parar por aí porque ela tuitou duas frases ditadas pelos seus 15 conselheiros? Isto é uma brincadeira! Continue, #CayeuxDemissão!
[Em resposta a:]
– Observações de Caroline Cayeux consideradas homofóbicas
‘Ela teve a oportunidade de esclarecer seus comentários ontem, acho que o debate está agora terminado’, diz Olivier Véran, porta-voz do governo.

Cécile Coudriou, ex-presidente da Anistia Internacional da França, questionou o exemplo que o governo está dando aos seus cidadãos:

Eu também sou #EssaGente, naturalmente, e dia após dia eu defendo a dignidade das pessoas LGBT+ com Anistia França e Anistia.
Os comentários de Caroline Cayeux provam que, na França, a exemplaridade nem sempre é a regra a nível governamental.

Em um artigo de opinião, o editor-chefe da revista LGBTQ+ Têtu apontou [27] que a posição do governo era “obscura”:

Proclamer un gouvernement allié des personnes LGBTQI+ ne consiste pas à y faire entrer des réactionnaires notoires en croisant les doigts pour qu'ils se taisent […] Un gouvernement allié des personnes LGBTQI+, c'est un gouvernement entièrement composé d'allié·es des LGBTQI+. Nous ne sommes ni “ces gens-là”, ni une option.

Afirmar ser um governo aliado a pessoas LGBTQI+ não significa nomear conservadores bem conhecidos, esperando que eles mantenham a boca fechada […] Um governo aliado a pessoas LGBTQI+ é um governo inteiramente feito de aliados LGBTQI+. Nós não somos ‘essa gente’, nem somos uma opção.

Outros ministros enfrentam reações negativas em relação a posições homofóbicas

Em uma carta aberta [28] à primeira-ministra Elisabeth Borne, 17 organizações sem fins lucrativos pediram a renúncia de três outros membros do governo, além da de Caroline Cayeux.

O atual ministro do Interior, Gérald Darmanin, que foi nomeado em 2020, está sob escrutínio por seu apoio passado [29] ao “Manif pour tous”, um movimento de protestos contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo na França. Em 2013, ele twittou [30] que, como prefeito, ele não oficializaria nenhum casamento entre dois homens ou duas mulheres.

O recém-nomeado Ministro da Transição Ecológica, Christophe Béchu, também está enfrentando reações negativas. Em 2013, quando era senador, comparou [31] o casamento entre pessoas do mesmo sexo com incesto. Alguns anos depois, como prefeito, ele teve cartazes de uma campanha de conscientização sobre a AIDS removidos de sua cidade sob o pretexto de que eles estavam perto de uma escola e eram “deliberadamente provocantes [32]“.

Sébastien Lecornu, o ministro das Forças Armadas desde maio de 2022, também está sendo criticado por sua oposição ao casamento entre pessoas do mesmo sexo no passado. Em 2012, como candidato a prefeito, declarou [33]: “O comunitarismo gay me irrita tanto quanto a homofobia”.

O histórico misto da França em questões LGBTQ+

A França acabou de celebrar [34] o 40º aniversário da descriminalização da homossexualidade, que remonta a 4 de agosto de 1982. Em 1999, o Parlamento francês estabeleceu [35] o Pacto de Solidariedade Civil (PACS), reconhecendo legalmente as uniões civis entre indivíduos do mesmo sexo, antes de introduzir, em 2001, medidas legais [36] contra a discriminação em razão da orientação sexual. Em 2013, a França foi o 9º país [35] da União Europeia a permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Além do sinal preocupante que essas recentes nomeações do ministério estão enviando para a comunidade LGBTQ+, alguns estão preocupados que o histórico de Emmanuel Macron em questões LGBTQ+ tenha ficado longe de ser excelente durante seu primeiro mandato presidencial (2017–2022).

Durante o primeiro mandato de cinco anos de Macron, duas leis importantes para os direitos LGBTQ+ — a lei que dá acesso à reprodução assistida por medicamentos para casais lésbicos e a lei que proíbe o uso da chamada “terapia de conversão” — foram repetidamente adiadas e só foram promulgadas após forte defesa de grupos de pressão, e acabaram sendo insatisfatórias [37]. Pessoas transexuais ainda são excluídas [38] da reprodução assistida. Os ativistas também denunciam [39] a falta de progresso em relação aos direitos das pessoas intersexo, já que a França se recusou a proibir mutilações genitais em crianças intersexo, uma prática que foi condenada pelo Defensor dos Direitos [40] (autoridade constitucional independente da França responsável pela defesa dos direitos e liberdades individuais), bem como pelas Nações Unidas [41].

Enquanto isso, os atos de violência anti-LGBTQ+ na França estão aumentando cerca de 15% a cada ano [42] e dobraram desde 2016, de acordo com o Ministério do Interior. Entre esses crimes, a difamação e os insultos são os mais comuns, seguidos da violência física.

O registro de Emmanuel Macron em seu primeiro mandato presidencial foi sancionado por um declínio [37] na classificação da França no Índice Rainbow, o relatório anual da ILGA-Europa [43] dos direitos LGBTQ+ nos países europeus. Dos 49 estados, a França passou de 6º lugar em 2018 para 9º em 2019 e 13º em 2020 e 2021.

Embora as questões LGBTQ+ estivessem ausentes [44] da agenda de reeleição de Emmanuel Macron em 2022, seu governo agora está tentando lidar com a crise anunciando [45] a nomeação iminente de um embaixador para os direitos LGBTQ+, bem como o estabelecimento de um fundo de 3 milhões de euros para apoiar os centros LGBTQ+ em toda a França.

Agora, se isso sinaliza mudanças significativas ou simplesmente um ato de comunicação política e “pinkwashing [46]” ainda precisa ser determinado. Mas muitos ativistas LGBTQ+ estão duvidando [47] da sinceridade do governo e estão preocupados com o futuro dos direitos LGBTQ+ na França.