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Revisão da política de cotas nas universidades traz receios de retrocessos no Brasil

Categorias: América Latina, Brasil, Direitos Humanos, Educação, Etnia e Raça, Juventude, Mídia Cidadã

Lei de Cotas aumentou participação de alunos negros nas universidades públicas I Imagem: Magno Borges/Agência Mural

Este texto é de autoria de Ira Romão, publicado originalmente [1] em junho de 2022, pela Agência Mural [2]. O artigo é reproduzido aqui em acordo de parceria com o Global Voices.

Em vigor há quase uma década e marco de mudanças [3] no cenário da educação brasileira, a Lei de Cotas [4] poderá passar por uma revisão em 2022.

O texto da lei estabelece a reserva de vagas em universidades e instituições federais do país para alunos da rede pública de educação, que se identificam como pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência, e a reavaliação está prevista no artigo 7º da própria norma.

A lei, que entrou em vigor em 2012, impulsionou a presença de estudantes deste perfil nas instituições de ensino do país, em que 54% da população [5] se identifica como negra — entre 2012 e 2016, o aumento de estudantes que se enquadram nas cotas foi de 39% [6], segundo uma pesquisa do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira). 

A revisão obrigatória tem como base a análise do funcionamento do sistema e os impactos que foram produzidos a partir dele. Entretanto, a possibilidade de mudanças ou descontinuidade da política, sobretudo em ano eleitoral, preocupa defensores das cotas, que avaliam não ser o momento ideal para isso.

O que é a Lei de Cotas?

A Lei de Cotas estabelece que, em todo o Brasil, nos espaços federais — de ensino superior e técnico de nível médio –, no mínimo 50% das vagas devem ser destinadas a alunos que tenham cursado o ensino médio em escola pública. Dessas vagas, 50% devem ser destinadas a estudantes oriundos de famílias com renda de até um salário mínimo e meio por indivíduo. Atendido esses dois critérios sociais, devem preencher as vagas indivíduos autodeclarados pretos, pardos, indígenas ou pessoas com deficiência (PCDs). Este último grupo foi incluído em 2016, pela Lei 13.409 [7]

A distribuição das cotas raciais é feita conforme a proporção dessas pessoas no estado em que a instituição de ensino está inserida.

Para usufruir das cotas, pretos, pardos e indígenas devem apresentar uma autodeclaração, e em algumas instituições, precisam ainda passar por uma comissão de avaliação. Já as pessoas com deficiência têm que apresentar a autodeclaração e um laudo médico.

Em 2012, ano em que a lei foi aprovada, as três universidades federais do estado de São Paulo (Unifesp, UFABC e Ufscar) somavam 2.252 alunos que se autodeclararam pretos, pardos ou indígenas, quantidade equivalente a cerca de 6,5% dos matriculados nas três instituições.

Já em 2020, de acordo com dados mais recentes do Censo da Educação Superior [8], realizado pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), a quantidade de alunos PPI (pretos, pardos e indígenas) nas federais de São Paulo era de 16.656 — 28,4% dos mais de 58 mil estudantes matriculados.

Além disso, a norma integra um conjunto de ações afirmativas previstas no decreto nº 4.886/03 [9], que são voltadas a grupos excluídos da sociedade como modo de reparação – buscando, assim, eliminar desigualdades e segregações. No Brasil, essas ações vêm sendo regulamentadas há cerca de duas décadas.

Em 2003, a Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) foi a primeira instituição de ensino a ter um sistema de cotas no vestibular, reservando 50% das vagas para estudantes que tinham cursado o ensino médio em escolas da rede pública.

No ano seguinte, a UnB (Universidade de Brasília) se tornou a primeira instituição federal com política de ações afirmativas no vestibular, com reserva de vagas [10] para negros e indígenas.

“A Lei de Cotas é uma tentativa muito importante de inclusão de figuras pretas, indígenas, periféricas, de baixa renda e pessoas com deficiência nos espaços de educação, onde historicamente houve ausência delas pela estruturação que o racismo se deu na sociedade”, define Débora Dias, 24, co-vereadora do coletivo Quilombo Periférico [11], de São Paulo.

Defensores das cotas avaliam avanços

O professor e sociólogo Djalma Góes, 51, avalia que as políticas de ações afirmativas não chegam a transformar a realidade, mas possibilitam o acesso de grupos historicamente excluídos. “Embora previstos em leis, esses serviços (educação, saúde, etc) não estão à disposição [desses grupos]”, explica.

Ele defende que, para ocorrer uma revisão da política de cotas, antes, é preciso promover e atingir a “equidade que se espera” nos espaços de educação.

“Na medida em que houver de 50% a 56% de negros, pessoas com deficiência e indígenas inseridos na universidade pública, talvez a lei tenha cumprido o papel e possa se falar em equidade. Aí sim será necessária uma revisão”, ressalta.

Em 2016, o artigo 7º da Lei de Cotas foi alterado. Embora a revisão da lei tenha sido mantida para o período de dez anos, não consta a quem cabe tal responsabilidade. Antes, estava sinalizado que a tarefa seria promovida pelo Poder Executivo. 

Além da falta de clareza em relação ao órgão competente para isso, Góes aponta outras questões que indicam que não seja a melhor hora para a lei passar por uma análise — a começar pelos dados que devem ser utilizados como base da revisão, conforme consta no artigo 6º do texto. O professor, porém, diz desconhecer que esses dados existam.

Legislação completa 10 anos no mês de agosto | Imagem: Magno Borges/Agência Mural

A co-vereadora Débora Dias também concorda que não seja o melhor momento para a norma passar por uma revisão, já que o país está em ano eleitoral e passa por uma “ascensão de conservadorismo [12]”, na qual a revogação das cotas raciais é um dos pontos colocados em pauta.

Projetos de lei em tramitação na Câmara dos Deputados, como o PL nº 4125/21 [13], visam alterar o sistema de cotas. A proposta revogaria os artigos 3º e 5º da lei e a reserva de vagas baseadas em cor ou raça. Assim, as cotas para ingresso no ensino superior seriam destinadas exclusivamente a estudantes de baixa renda.

Dias acredita que uma mudança negativa no sistema traria “perdas imensas” para o acesso dos jovens ao ensino superior, que já enfrentam dificuldades por conta do atual cenário político e pandêmico.

“Em 2020 e 2021 houve baixa significativa no número de inscritos no Enem [14] (Exame Nacional do Ensino Médio). Ao mesmo tempo, ocorre o avanço da reforma do ensino médio [15], por conseguinte a reforma trabalhista e a reforma previdenciária, que fecham um dos piores cenários para ser jovem no Brasil”, diz.

A própria experiência dela é exemplo da importância de chegar ao ensino superior e está cursando ciências sociais na Universidade Federal de São Paulo. 

“Minha bisavó foi uma mulher preta que não estudou e trabalhou como empregada doméstica. Minha avó e minha mãe também”, conta. “Rompo com essa lógica de existência dentro da minha família. Sou a primeira que ingressa no ensino superior em uma universidade pública”. 

Bolsa permanência

O teólogo e filósofo Frei David Santos avalia que a cota é uma medida radical para “tentar mudar uma situação imposta pela classe dominante e que se perpetua no tempo” — o Brasil foi o último país do Ocidente a abolir a escravidão [16], apenas em 1888.

Embora a reserva de vagas no ensino superior tenha ajudado a população afro-brasileira a ocupar as universidades, a lei por si só não é suficiente para reparar os danos da desigualdade social e racial no país.

“São vários os desafios que nos impedem de ocupar lugares de poder. Isto devido a crueldade do sistema que não nos quer nesses espaços. Podemos identificar que um dos desafios é o econômico”, aponta Frei David.

Ele é diretor executivo da ONG Educafro Brasil, que já auxiliou mais de 100 mil pessoas negras e de baixa renda a ingressar no ensino superior. Além das cotas nas universidades, também é necessário incluir na lei a bolsa permanência, que corresponde a bolsas de alimentação e moradia aos estudantes, diz ele.

“São tantos os atravessamentos que atingem a população negra no Brasil que é preciso dar todos os suportes necessários para que esses jovens consigam concluir a graduação de forma digna”, avalia.

“Ninguém consegue estudar com fome ou em situação de rua. Portanto, lutamos fortemente para que essa pauta da permanência seja atendida. Não podemos negar que este é um fator que impede nossos jovens de permanecerem na universidade”.

Instituído em 2013, o Programa de Bolsa Permanência [17] (PBP) é mantido pelo governo federal e destina a concessão de bolsas para estadia de estudantes de graduação em instituições federais de ensino superior e que estejam em situação de vulnerabilidade socioeconômica, em especial alunos indígenas e quilombolas.

As inscrições no programa são realizadas através do Ministério da Educação e não estão vinculadas à Lei de Cotas.

O futuro das cotas

A Agência Mural entrou em contato com a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, da Presidência da República, para questionar se a revisão ocorrerá no mês de agosto e se a pasta possui dados sobre os impactos e resultados gerados pela lei, mas não obteve resposta até a publicação da reportagem.

Também está em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 1.788/21, que visa transferir a revisão da política de cotas para o ano de 2042.