Autoritarismo digital em Bangladesh: lei draconiana usada como arma para silenciar dissidência durante pandemia

Imagem via EngageMedia. Usado com permissão.

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Este artigo faz parte da Pandemic of Control , uma série que visa aprofundar o discurso público sobre a ascensão do autoritarismo digital na região Ásia-Pacífico em meio à COVID-19. A Pandemic Control é uma iniciativa da EngageMedia, em parceria com a CommonEdge. Esta versão editada do artigo de Zayed Siddiki é republicada na Global Voices sob uma parceria de conteúdo.

Na última década, Bangladesh não viu apenas a digitalização e o crescimento econômico, mas também o agravamento da situação dos direitos humanos e um crescente autoritarismo. A organização Repórteres Sem Fronteiras descreve o atual governo como “mais autoritário e pronto para reprimir a liberdade de imprensa”. Com os críticos amordaçados, atualmente não há oposição política efetiva no país, o que reflete a longa luta de Bangladesh para manter uma democracia frágil desde a independência em 1971.

Durante os primeiros dias da pandemia, os cidadãos se manifestaram nas redes sociais e na mídia convencional sobre a resposta ineficaz do governo e a corrupção dos dirigentes do partido governante. As pessoas criticaram a aplicação desigual das normas de confinamento, a corrupção na compra de equipamentos de proteção, os desvios dos pacotes de ajuda humanitária e a falta de informações sobre a detecção de casos.

Essas questões criaram uma enorme controvérsia. Com exceção da detenção de alguns líderes locais ligados à corrupção, a resposta do governo foi perseguir qualquer um que criticasse. Instrumentos legais foram aplicados com vigor contra jornalistas, acadêmicos, cidadãos comuns, funcionários e médicos que falavam sobre essas questões. Foi usada uma lei opressora, a Lei de Segurança Digital (DSA), para identificar e punir essas vozes dissidentes.

Uso da Lei de Segurança Digital para silenciar a dissidência

Antes que a DSA entrasse em vigor, a liberdade de expressão em Bangladesh já estava sob ataque da Lei de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC). Aprovada em 2006, a lei contém o polêmico artigo 57, que autoriza o processo contra quem publicar conteúdo eletrônico considerado falso, obsceno, difamatório ou que “tende a perverter ou corromper” o público. A sociedade civil e as organizações de direitos humanos disseram que o artigo 57 aperta o cerco à liberdade de expressão nas plataformas digitais.

A DSA foi promulgada em 2018, substituindo a Lei de TIC. Mas a DSA é considerada mais repressiva e draconiana do que a lei que substituiu e é profundamente mais problemática por três razões:

  1. Artigos imprecisos da lei que podem levar à criminalização da expressão legítima de pensamento ou opinião;
  2. Amplos poderes concedidos a autoridades — como o poder de prender pessoas e fazer buscas em locais sem mandado, com base apenas na suspeita de que um crime foi cometido por meio de mídia digital;
  3. Disposições que permitem a remoção ou bloqueio de conteúdo e apreensão e busca de dispositivos sem salvaguardas suficientes.

De 2012 a 2020, mais de 2.000 casos foram registrados sob a lei TIC e a DSA. Destes, apenas 2% levaram a condenações, sugerindo que a lei foi usada mais como um instrumento para perseguir vozes dissidentes.

A ARTICLE 19 deu o alarme sobre o número crescente de condenações e prisões com base na DSA devido a comentários de redes sociais. De acordo com um relatório de abril de 2022 do Center for Governance Studies, pelo menos 2.244 pessoas foram acusadas ​​de violar a DSA, entre janeiro de 2020 e fevereiro de 2022. Durante esse período, 842 pessoas foram presas. O que mais impressiona no relatório é a indicação dos membros do partido no poder usando a DSA para atingir a mídia e políticos opositores. Dos acusados, ​​​​​​cujas profissões são conhecidas, 30,98% eram políticos e mais de um quarto eram jornalistas.

A pandemia viu o uso preciso da DSA contra jornalistas e vozes críticas. Cidadãos de todas as esferas da sociedade foram alvos, incluindo um menino de 15 anos que criticou o primeiro-ministro nas redes sociais. Outros casos notáveis ​​incluem:

  • A prisão e tortura do cartunista Ahmed Kabir Kishore, que foi detido em maio de 2020 por uma série de imagens intitulada “Life in the Time of Corona”, publicadas no Facebook. As caricaturas eram uma sátira da resposta do governo à pandemia. Kishore foi libertado em março de 2021 após 10 meses de detenção. Ao ser libertado, ele não conseguia andar e estava mentalmente abalado. Ele também reclamou que lhe foi negado tratamento médico na prisão.
  • A prisão e a morte na prisão do escritor Mushtaq é mais notória; ele foi preso em maio de 2020 por supostamente difundir fake news sobre a pandemia. Durante a sua detenção, ele teria sido torturado antes de falecer em fevereiro de 2021.
  • Minhaz Mannan Emon, diretor da Bolsa de Valores de Daca, e Didarul Bhuiyan, ativista e coordenador da página do Facebook “Rashtrachinta” (Pensamentos sobre o Estado), foram presos por divulgar supostos boatos sobre a resposta do governo à pandemia. Eles foram acusados ​​​​de manchar a imagem do Estado e do fundador do país. No entanto, não havia acusações específicas contra Minhaz. De acordo com o boletim de ocorrência, Minhaz havia conversado em particular com um acusado no WhatsApp e no Facebook Messenger, embora haja registro dos detalhes da conversa.

Como resultado, a DSA cultivou uma cultura de medo e autocensura entre os cidadãos. Membros da sociedade civil, jornalistas, ativistas políticos e cidadãos comuns agora são forçados a pensar duas vezes antes de escrever ou fazer comentários on-line. Houve vários protestos e ações de ativistas pedindo a revogação da lei draconiana, mas o governo não agiu em relação a esses apelos.

Vigilância em massa usando passes de movimentação e coleta de big data

Além da DSA, outra ferramenta na agenda cada vez mais autoritária do governo é uma tentativa de controlar a movimentação dos cidadãos. Em abril de 2021, a polícia de Bangladesh lançou um “aplicativo de Passe de Movimentação” que permitia a movimentação externa durante os rígidos confinamentos impostos na época. Para se cadastrar, era necessário usar o aplicativo ou acessar o site movementpass.police.gov.bd e fornecer o número do telefone celular, nome, data de nascimento, data e horário da movimentação, fotografia e carteira de identificação. Uma pessoa tinha direito a um máximo de cinco passes por dia para saídas de emergência, como ir ao hospital, comprar remédios e gêneros alimentícios.

Nos cinco primeiros dias de implementação, mais de 600.000 passes foram emitidos. Os passes precisavam ser apresentados nos postos de controle; a não apresentação do passe resultava em multas e punições imediatas, como detenção e prisão. O sistema gerou confusão e caos, e centenas foram multados e presos por violar as regras do confinamento. Também causou controvérsia, pois quem não tinha smartphone ou conexão à internet não podia emitir passes. A implementação das regras de confinamento também variava, pois os cidadãos comuns enfrentavam rígidas restrições, enquanto aqueles que apoiavam o governo tinham vantagens.

Esse tipo de coleta de dados tem grandes implicações para os direitos digitais. Em um relatório de mídia, o especialista em tecnologia da informação, Sumon Ahmed Sabir sinalizou o risco da vigilância em massa por meio da coleta de dados; um risco ainda mais intensificado se um terceiro puder acessar os dados. Além disso, o advogado da Suprema Corte, Jyotirmoy Barua, destacou que a polícia não tem autoridade para controlar a movimentação das pessoas e que o sistema só servia para ampliar o processo de vigilância em massa.

Também não há lei em Bangladesh para proteger dados pessoais, embora uma Lei de Proteção de Dados esteja atualmente sendo elaborada. Contudo, isso também foi um ponto polêmico. Analistas apontaram que o projeto de lei contém brechas que, em vez de proteger os cidadãos, pode suprimir ainda mais os direitos digitais, especialmente quando já existe uma cultura de vigilância em massa por parte do Estado.

O sistema de passe de movimentação foi abolido durante o segundo confinamento restrito em julho de 2021. Porém, continuam as preocupações sobre o retrocesso democrático do país e a instrumentalização das leis para suprimir os direitos e as liberdades das pessoas. Como esses casos demonstraram, a pandemia deu ao governo um pretexto para censurar a liberdade de expressão, perseguir os críticos e conter a dissidência, acelerando o que tem sido um retorno ao autoritarismo em Bangladesh.

Zayed Siddiki é um premiado cineasta independente, defensor dos direitos humanos e profissional de comunicação para o desenvolvimento que mora em Daca.

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