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Igualdade para transgêneros ucranianos: um longo caminho a percorrer, agora complicado pela guerra

Categorias: Europa Oriental e Central, Rússia, Ucrânia, Direitos Humanos, Direitos LGBT, Esforços Humanitários, Governança, Guerra & Conflito, Mídia Cidadã, Migração e Imigração, Mulheres e Gênero, Relações Internacionais, Saúde, Pride 2022: Community resistance, Russia invades Ukraine

Captura de tela do site da ONG ucraniana para pessoas trans “Cohort”

A última invasão da Ucrânia pela Rússia em fevereiro de 2022 [1]virou milhões de vidas ucranianas de cabeça para baixo. Nenhuma comunidade foi poupada; isso significa que as vidas dos ucranianos transgêneros também foram profundamente afetadas pela destruição, os fluxos de deslocamento forçado, a vida no exílio e a necessidade de se adaptar a uma realidade nova e em rápida mudança.

Anastasiia Yeva Domani, foto usada com permissão.

A Global Voices conversou com a ativista transgênero Anastasiia Yeva Domani, que lidera a ONG ucraniana “Cohort [2]” para saber sobre como a comunidade reinventa sua vida cotidiana e como enfrenta novos desafios. Um progresso significativo foi alcançado no final de 2016, [3]quando a legislação para a transição foi simplificada e o Ministério da Saúde removeu certos requisitos obrigatórios para avaliação psiquiátrica, esterilização coerciva e comparecimento obrigatório à Comissão Estadual de Avaliação.

No entanto, como explica Domani, mesmo antes da guerra que começou em fevereiro deste ano, a vida cotidiana apresentava sérios desafios para as pessoas trans que vivem na Ucrânia:

В Украине трансгендерность до сих пор считается психиатрическим расстройством и транс*люди для прохождения медицинского и юридического перехода должны получить клинический диагноз, чтобы иметь возможность сменить документы. В связи с патологизацией государство через нормативные акты ограничивает в правах и возможностях трансгендерных людей при наличии такого диагноза – например практически невозможно усыновить ребенка, служить в армии, иметь зарегистрированное огнестрельное оружие, запрещены некоторые профессии и службы.

Na Ucrânia, ser transgênero ainda é considerado um transtorno psiquiátrico, e as pessoas transgênero que desejam passar pela transição médica e legal precisam obter um diagnóstico médico para poder alterar seus documentos de identidade. Por causa desse processo de medicalização, o estado ucraniano usa leis para limitar os direitos e as oportunidades das pessoas trans: é quase impossível adotar uma criança, servir no exército, registrar armas particulares, e ter acesso a certas profissões e serviços é proibido.

Domani também explica que restrições semelhantes se aplicam a outros aspectos da vida cotidiana, como se registrar em hotéis ou aeroportos, principalmente se houver uma diferença visível entre a aparência geral de uma pessoa trans e o gênero mencionado em sua identidade. Tais situações, geralmente, evoluem para casos de transfobia, humilhação pública e conflitos:

В медицинских учреждениях чтобы получить услугу транс люди сталкиваются с проявлением трансфобии на стадии регистратуры, в очереди к врачу и во время самого приёма, – зачастую медперсонал свысока общается с транс людьми, могут отказать в помощи под предлогом, что не знают как лечить или делать диагностику “таким” пациентам и отфутболивают в другую клинику, а там происходит схожая история.

Nas instituições médicas, as pessoas transgêneros muitas vezes enfrentam casos de transfobia quando tentam se registrar, ou enquanto esperam na fila para ver um médico e até mesmo durante a consulta. Muitas vezes, a equipe médica se comporta de forma arrogante e pode até recusar o atendimento sob o pretexto de não saber atender ou fazer um diagnóstico para ‘essas pessoas’, e encaminhá-las para outra instituição médica onde a mesma história se repete.

Os espaços públicos também são lugares perigosos para os transgêneros, aponta Domani, pois muitas vezes são identificados, seguidos e alvejados em marchas e manifestações, e às vezes são agredidos fisicamente por pessoas transfóbicas. Além disso, a polícia ucraniana muitas vezes não está disposta a investigar a violência contra a comunidade:

Полиция категорически не замечает преступлений, совершенных на почве ненависти и имеющих признаки ксенофобии, гомофобии и трансфобии, часто такие нарушения закона проходят как хулиганство.  В связи с этим многие пострадавшие транс люди даже не пытаются судиться с насильниками, не имея веры в справедливое наказание.

A polícia não toma conhecimento de crimes de ódio motivados por xenofobia, homofobia e transfobia; muitas vezes esses crimes são tratados como casos de vandalismo. É por isso que muitas vítimas nem se preocupam em considerar ações judiciais contra seus agressores, por não acreditarem que a justiça será feita.

Mesmo nas situações mais aleatórias, como candidatar-se a um emprego ou alugar um apartamento, as pessoas trans são recebidas com recusa ou, às vezes, até com acusações de terem roubado a identidade de outra pessoa. É por isso que é fundamental obter um documento de identidade que reflita o gênero adotado pela pessoa transgênero e alterar de acordo outros documentos, como diplomas e carteiras de motorista, para ter os mesmos direitos que outros cidadãos, explica Domani. A pandemia acrescentou seus próprios desafios, pois muitas pessoas transgênero trabalhavam em empregos de baixa qualificação dos quais provavelmente seriam demitidas e, portanto, tiveram que voltar para casa, onde muitas vezes enfrentam a violência.

Mudar a legislação é fundamental

A ONG de Domani, Cohort, concentra-se na advocacia, por meio de grupos de trabalho que visam mudar a legislação. Isso levou, em novembro de 2021, ao primeiro fórum ucraniano para pessoas transgênero. A prevenção do HIV também é uma prioridade para a comunidade, pois as pessoas trans têm necessidades específicas que exigem serviços personalizados: em 2022, um novo programa foi estabelecido em nível nacional para incluir membros da comunidade na elaboração de serviços adequados.

Domani acrescenta que a decisão da Ucrânia de se candidatar à União Europeia (UE) também afeta a comunidade:

Мы приняли решение фокус внимания сосредоточить на выполнении критериев к стране-кандидату ЕС в сфере прав человека, делая акцент в нашей деятельности и общении с государственными органами на обеспечение наших прав.

Decidimos nos concentrar no cumprimento dos critérios de adesão na área dos direitos humanos, enfatizando na nossa comunicação com o estado ucraniano a necessidade de resguardar os nossos direitos.

O impacto da guerra

É claro que a guerra afetou profundamente a comunidade: todos os planos foram suspensos e mais de 70% da comunidade deixou a Ucrânia, enquanto apenas uma ONG permanece ativa na Ucrânia. De acordo com Domani:

Потеряна целевая аудитория, в том числе стала неактуальной база данных френдли врачей, которых мы, активисты, обучали по работе с транс людьми, теперь заново необходимо искать медицинских специалистов, особенно таких востребованных как психиатр, гинеколог, эндокринолог, семейный врач.

Perdemos nosso público-alvo; nosso banco de dados de médicos amigos, que treinamos como ativistas para trabalhar com pessoas trans, não é mais relevante. Agora precisamos mais uma vez encontrar novos médicos, psiquiatras, ginecologistas, endocrinologistas, médicos de família que são os mais necessários.

Há também uma crescente sensação de incerteza porque o tratamento hormonal se tornou indisponível ou muito caro, o que traz sérias consequências para a saúde física e mental, acrescenta.

No geral, ela não é otimista. Ela acredita que a maioria dos que partiram não retornará; eles estão reconstruindo suas vidas no exterior, onde têm forte apoio dos países anfitriões [4], desde tratamento hormonal até aulas de idiomas. Ela também acredita que as principais prioridades agora incluem ajuda humanitária para aqueles que ficaram na Ucrânia, pessoa por pessoa, assim como apoio jurídico.

Многие транс люди сейчас потеряли работу и доход, находятся в шелтерах и других временных убежищах, часть боится выходить на улицу, чтобы не получить повестку в военкомат на медкомиссию, это как страшный сон для многих из сообщества.

Muitos perderam seus empregos e fontes de renda, vivem em abrigos e outros refúgios temporários; muitos têm medo de sair nas ruas, pois seriam chamados para passar pela comissão médica do exército. É tudo um grande pesadelo para uma grande parte da comunidade.

Como imaginar o futuro?


A visão de Domani para a comunidade inclui vários passos importantes: adesão à UE, ratificação da Convenção de Istambul [5], que permitiria direitos iguais para a comunidade LGBTQ+ da Ucrânia, incluindo, se não o casamento gay, pelo menos as uniões cívicas.

Ela menciona a necessidade urgente de ter um protocolo médico unificado para pessoas trans. Também é crucial reconhecer a comunidade como um fator-chave na luta contra o HIV/AIDS na Ucrânia e fazer com que a comunidade estruture os serviços de que mais precisa nesta área. Ela conclui:

В любом случае нас ждет появление новых лиц среди транс*активистов, новых, зачастую молодых лидеров и лидерок, которые будут видимы, уважаемы в самом сообществе и иметь амбиции достигать цели.

De qualquer forma, veremos novos rostos surgindo entre ativistas trans, incluindo jovens que se tornarão visíveis, respeitados pela comunidade e ousados o suficiente para alcançar seus objetivos.

 


 

Imagem cortesia de Giovana Fleck.

Para obter mais informações sobre este tópico, consulte nossa cobertura especial Rússia invade a Ucrânia. [1]