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Abrir rotas marítimas da Ucrânia não é o suficiente para diminuir a pressão sobre produtos e alimentos no Oriente Médio e Norte da África

Categorias: Oriente Médio e Norte da África, Arábia Saudita, Argélia, Bahrein, Egito, Emirados Árabes Unidos, Iêmen, Irã, Iraque, Israel, Jordânia, Kuwait, Líbano, Líbia, Marrocos, Omã, Palestina, Qatar, Rússia, Síria, Tunísia, Ucrânia, Desastre, Desenvolvimento, Economia e Negócios, Guerra & Conflito, Meio Ambiente, Mídia Cidadã, Saúde, Green Voices

Uma safra de grãos [1]” de Ian Sane, licenciada sob CC BY 2.0. [2]

A Rússia e a Ucrânia são dois dos pilares mais essenciais do comércio global de alimentos, produzindo 25% da oferta global de trigo [3]. Mais de 160 dias depois que a Rússia invadiu a Ucrânia, a escassez de alimentos, produtos e energia mergulhou muitas economias em todo o mundo em recessões, particularmente no Oriente Médio, onde alguns países estão entre os maiores importadores mundiais desses produtos.

Em média, a Ucrânia colhia anualmente 80 milhões de toneladas métricas de grãos [4] (trigo, milho, cevada). Isso é o suficiente para alimentar 200 milhões de pessoas por um ano. A invasão russa reduziu a colheita para menos da metade [5] de sua capacidade de grãos. O bloqueio naval do Mar Negro fez com que grande parte dos grãos da Ucrânia não pudesse sair do porto. Em março, os preços dos alimentos atingiram a maior alta em 10 anos e as Nações Unidas alertaram para escassez de alimentos [6] no próximo ano.

Após meses de negociações, em 1º de agosto, um navio que transportava 26 mil toneladas de grãos deixou o porto de Odessa; o primeiro navio a fazê-lo desde o início da guerra. O acordo obtido em 22 de julho em Istambul, entre a Ucrânia e a Rússia, garante a passagem contínua de grãos para fora da Ucrânia. Isso é um bom sinal principalmente para países do Oriente Médio e Norte da África, onde muitos estados importam mais de 80% de seu abastecimento nacional de grãos da Ucrânia, e são mais vulneráveis ao aumento dos preços dos alimentos.

Contudo, as rotas livres não diminuirão a crescente crise alimentar. A destruição russa de terras agrícolas e máquinas pesadas causou mais de US$ 4,3 bilhões [7] em danos à indústria agrícola. Mais de 6 milhões de aves de criação morreram e meio bilhão de dólares em grãos foram roubados. Alguns estimam que mais da metade das terras cultiváveis da Ucrânia estão sob ocupação [8].

Em uma entrevista em vídeo à Global Voices, David Rundell, diplomata por trinta anos no Oriente Médio e autor de “Vision or Mirage: Saudi Arabia at the Crossroads”, traduzido livremente como “Visão ou Miragem: Arábia Saudita na Encruzilhada”, explicou o impacto distribuído da guerra sobre países da região: “Há muito pouco interesse em todo o Oriente Médio de entrar no meio de um combate que eles não acreditam ser deles. Há muito mais preocupação sobre o impacto que a guerra terá na estabilidade política. Muitas nações estão vendo o que aconteceu no Sri Lanka e estão preocupadas que eventos semelhantes ocorram em sua própria região”.

Esta análise está em consonância com pesquisas amplas de comportamento em todo o Oriente Médio e Norte da África. Em uma pesquisa regional do Arab News-YouGov [9], 66% dos entrevistados não tinham posição sobre a guerra, 18% apoiavam a Ucrânia e 16% apoiavam a Rússia.

Rundell enfatizou o impacto da escassez de produtos na região: “muitos países da região são muito sensíveis ao preço do trigo, do óleo de semente de girassol e do petróleo. Todos estes itens foram adversamente afetados pela escassez ou aumento dos preços globais. No momento, diversos governos estão tentando manter os subsídios que têm e isso está levando a enormes déficits orçamentários”.

Quase todos os países da região são duramente atingidos pela guerra.

A guerra infligiu choques inflacionários sem precedentes na economia egípcia. Quase não há turismo da Ucrânia e da Rússia [10], que normalmente representam 30% dos visitantes do Egito. As indústrias de manufatura e construção foram as mais afetadas devido ao aumento dos preços [11] da energia e do material. O Egito, que recebe 80% de seu trigo da Ucrânia e da Rússia, foi forçado a procurar outros países para importação de grãos [11], e o custo do pão aumentou 50% [10] desde o início da guerra. Como resultado, o Canal de Suez elevou as taxas [11] de pedágio e o banco central desvalorizou a moeda [10] em 14% para ajudar a economia em dificuldades.

Espera-se que a insegurança alimentar se torne ainda mais aguda no Iêmen, que importa 40% de seu trigo da Ucrânia e da Rússia. Outra expectativa esperada é a acentuada exacerbação [12] da crise humanitária no país, que começou com a guerra civil em 2015. O preço do trigo subiu 35% desde o início da guerra, e em certos momentos, o grão desapareceu completamente dos mercados [12].

A Líbia importa 90% de seu trigo [13] da Ucrânia e da Rússia. Em todo o quadro, os preços do pão, arroz e cuscuz subiram mais de 30% [14]. A guerra adicionou mais de um ponto percentual às pressões de inflação do país [14], elevando a taxa global para 9%.

Já a Argélia é a mais isolada dos impactos adversos da guerra. O país importa 3% de seu trigo da Ucrânia e da Rússia, e os suprimentos domésticos são suficientes para superar a escassez [13] até o final de 2023.

Por outro lado, a Tunísia importa aproximadamente 54% de seu trigo da Ucrânia [15] e da Rússia. O país já deve US$ 300 bilhões aos exportadores ucranianos de trigo. O agravamento das perspectivas econômicas, o aumento da inflação, a disparada dos preços dos alimentos e a crise hídrica [16] têm o potencial de desestabilizar significativamente a nação ainda mais.

Mais de 80% do trigo do Líbano vem da Ucrânia e da Rússia. As Nações Unidas informaram [17] que o “número de pessoas que precisam urgentemente de apoio aumentou 46%”.  A economia do país deve contrair 6% [17] em 2022, após quedas de dois dígitos em 2021 e 2020. A escassez de alimentos e o aumento dos preços da energia pressionaram ainda mais [17] os 2,2 milhões de cidadãos vulneráveis do Líbano, 200 mil refugiados palestinos e 1,5 milhão de refugiados [18] sírios. Os hospitais estão sofrendo [17] com a falta de funcionários, suprimentos médicos e energia. O país enfrentou quatro crises consecutivas em dois anos: recessão econômica, pandemia da COVID-19, a explosão do porto de Beirute, e agora a guerra na Ucrânia. Atualmente, mais de 80% da população vive abaixo da linha de pobreza [19].

Em 19 de julho, Vladimir Putin visitou o Teerã como um sinal de estabilidade contínua nas relações Rússia-Irã [20]. Agora que ambos os países estão limitados por sanções globais incapacitantes, competem pelos mercados de petróleo na Ásia. O presidente do Sindicato dos Exportadores de Petróleo e Gás do Irã anunciou [21] que as vendas para a China caíram 34% desde maio. Pressões semelhantes estão afetando o mercado siderúrgico de US$ 6 bilhões do Irã. A Rússia continua a ser um dos principais signatários do Plano de Ação Conjunto Global de 2015 (JCPOA) para a limitação da proliferação nuclear do Irã; em março, o ministro russo das Relações Exteriores, Sergey Lavrov, exigiu que os Estados Unidos assegurassem certas garantias [22] comerciais ou a Rússia se recusaria a apoiar o acordo.

O governo iraquiano se absteve de assumir uma posição sobre o conflito [23], votando em uma declaração da Liga Árabe, que não atribui culpa à Rússia e também abstendo-se da condenação do conflito russo na ONU. A Rússia tem mais de US$ 14 bilhões investidos em setores iraquianos de petróleo e gás [23], e o Iraque compra bilhões de armas russas anualmente [23]. O Iraque não compra produtos agrícolas russos ou ucranianos, mas o país importa 50% de todos os alimentos e foi prejudicado pelo aumento dos preços [23]. Em 8 de junho, o parlamento iraquiano aprovou a “Lei de Emergência para Segurança e Desenvolvimento Alimentar” [24], ampliando os subsídios existentes para alimentos e energia em um adicional de $25 trilhões de dinares iraquianos (cerca de US$ 17 bilhões).

Aproximadamente 90% dos suprimentos alimentares da Cisjordânia e de Gaza são importados. Mais de um terço [25] da dependência nacional está no trigo ucraniano. Um gerente de uma fábrica de farinha em Gaza observou [26] que a principal causa do aumento dos preços dos alimentos “… é a guerra Rússia-Ucrânia. Tínhamos estoques para dois a três meses, mas quando acabaram, fomos obrigados a comprar trigo a preços novos, e eram muito altos”.  A falta de infraestrutura agrícola eficaz, o controle sobre os recursos de irrigação e uma crise financeira provavelmente agravam a pressão sobre o fornecimento de alimentos [26].

O governo de Israel tem hesitado em apoiar, claramente, a Ucrânia [27]. A presença da Rússia na Síria e no Irã, ambas ameaças existenciais à nação, aproximou Israel de Moscou [27]. Como resultado, Israel não forneceu ajuda militar à Ucrânia e nem se juntou às sanções ocidentais contra a Rússia. A maioria dos israelenses apoia os ucranianos na guerra [28].

O aumento dos preços da energia tem sido uma bonança financeira [29] para os países exportadores de petróleo em todo o Golfo. Parte significativa da renda foi direcionada aos ministérios e projetos de segurança alimentar. A solidariedade ocidental em oposição à guerra tem sido recebida com respostas frias em toda a região [30], que mantém estreita aliança com a Rússia e a China. Em uma reunião com todos o xecado do Golfo em Jeddah, na Arábia Saudita, Biden observou: [30] “Não vamos sair e deixar um vazio a ser preenchido pela China, Rússia ou Irã, e vamos procurar construir neste momento com liderança ativa e com princípios americanos”.

Rundell conclui: “o resultado inevitável do colapso das economias e da agitação política no Oriente Médio e na África será uma migração maciça e ilegal para a Europa em uma escala muito maior do que a emigração anterior relacionada à guerra da Síria e da Líbia. Evitar esse resultado exigirá ações imediatas, em larga escala, bem coordenadas e multinacionais. Isso exigirá muito mais do que um aumento simbólico da ajuda externa que apenas aumentará o preço dos suprimentos de trigo existentes”.


Crédito da imagem: Cortesia de Giovana Fleck.

Para mais informações sobre este tema, confira nossa cobertura especial Rússia invade a Ucrânia [31].